"Viver é relacionar-se."
(Vimala Thakar [1921 – 2009], ativista
social indiana e professora espiritual, no título de um de seus livros)
Publicado na edição de 06 de
novembro de 2019 do jornal O Estado de S.
Paulo na coluna do astrólogo Oscar Quiroga, "A prioridade esquecida" é um texto pequeno que enxergo como capaz
de provocar grandes reflexões. Um texto em que tudo que nele é dito deve ser
lembrado durante todo tempo. E vamos ao texto!
A
prioridade esquecida
Pelo jeito
do andar da carruagem da história humana, para nós usufruirmos as
potencialidades disponíveis e conseguirmos expressar o melhor de nós, em
primeiro lugar teremos de, novamente, piorar bastante, até nos exaurirmos de
sofrimento, até não podermos mais aguentar a consciência de existirmos exilados
do lugar que merecemos, mas que temos de conquistar pelo empenho e pela nobre
intenção que oriente nossas ações. Cada um de nós suporta seu próprio quinhão
de uma ignorância intencional que nossa humanidade executa há centenas de anos,
nela se acomodando e erguendo as mãos ao céu em busca de proteção contra si
mesma. Essas mãos que se erguem em prece precisam se voltar na direção dos
semelhantes e com eles e elas começar a construir uma existência na qual a
proteção dos relacionamentos seja sempre a prioridade.
*************
Que
densidade, hein! Quantas coisas interessantes ditas em apenas três frases! Frases
que serão reproduzidas a seguir acompanhadas de algumas reflexões por elas
provocadas.
"Pelo jeito do andar da carruagem da história humana, para nós usufruirmos as potencialidades disponíveis e conseguirmos expressar o melhor de nós, em primeiro lugar teremos de, novamente, piorar bastante, até nos exaurirmos de sofrimento, até não podermos mais aguentar a consciência de existirmos exilados do lugar que merecemos, mas que temos de conquistar pelo empenho e pela nobre intenção que oriente nossas ações."
A postagem publicada neste blog
em 16 de abril de 2013 tem o seguinte título: Ducentésima
postagem ou Quanto pior melhor. Um estranho título cujo início tem a
finalidade de registrar a proeza de atingir a marca de duzentas postagens e o
final tem a intenção de espalhar a idéia de que - considerando que uma condição
sine qua non para que a imensa maioria da pretensa espécie inteligente
do universo disponha-se a abandonar suas equivocadas práticas é a
insuportabilidade das consequências dela advindas – chegar ao pior o quanto
antes é o melhor que poderá lhe ocorrer no que tange a provocar sua vontade de
começar a mudar seu comportamento. Ler a primeira frase do texto de Quiroga
me fez lembrar imediatamente da referida postagem.
"Ao falar em "(...)
existirmos exilados do lugar que merecemos, mas que temos de conquistar pelo
empenho e pela nobre intenção que oriente nossas ações.", Oscar Quiroga me
faz lembrar uma prática extremamente comum em finais de ano. Qual é a prática?
A de sair por aí desejando a todos um Feliz Ano Novo como se o simples fato de
desejar alguma coisa boa para alguém seja suficiente para que tal coisa seja
conseguida. Não, não é bem assim que as coisas acontecem. A maneira de se obter
qualquer coisa que preste está mais para o que diz Quiroga: "temos de
conquistar pelo empenho e pela nobre intenção que oriente nossas ações."
"Cada um de nós suporta seu próprio quinhão de uma ignorância intencional que nossa humanidade executa há centenas de anos, nela se acomodando e erguendo as mãos ao céu em busca de proteção contra si mesma."
O que seria uma ignorância
intencional? Seria uma ignorância conveniente? Um desconhecimento alegado com a
intenção de eximir-se de atuar em prol do bem comum ou contra algo que seja
prejudicial ao bem comum? No meu entender, sim.
"Buscar proteção contra si
mesma"! Que coisa sinistra, hein! Uma coisa sinistra que me faz lembrar a
seguinte frase de uma linda canção da Legião Urbana: "Nos perderemos entre monstros
da nossa própria criação." Sim, por mais que teimemos em não querer
acreditar, todos os males que - afligiram, afligem e afligirão - "nossa
humanidade" sempre - foram, são e serão – criados por ela mesma.
"Essas mãos que se erguem em prece precisam se voltar na direção dos semelhantes e com eles e elas começar a construir uma existência na qual a proteção dos relacionamentos seja sempre a prioridade."
Ao ler "Essas
mãos que se erguem em prece" me vem à mente um comentário que ouvi há muitos
anos na saudosa Livraria Sabedoria,
uma pequena livraria que ficava
situada na Rua Lélio Gama em frente ao prédio em que eu trabalhava. Comentário
que reproduzo a seguir com palavras minhas.
As pessoas
dizem ser devotas de São Isso ou Santa Aquilo, pois, equivocadamente,
imaginam que ser devoto significa poder pedir ao santo ou a santa de sua
devoção para solucionar por elas os problemas, na maioria das vezes, criados por
elas mesmas. Santa Ignorância! Não, ser devoto nada tem a ver com isso. O
verdadeiro significado de ser devoto de um santo ou de uma santa é procurar
viver do modo como ele ou ela viveram.
Viver do
modo como viveram o santo ou a santa de sua devoção, eis a recomendação feita
pelo autor do comentário feito na Livraria
Sabedoria. E ao falar em santo e em santa, após Oscar Quiroga ter falado em
"nossa humanidade" (ver a segunda de suas três frases), o método das
recordações sucessivas me faz citar aqui uma passagem de um livro de Roberto
Crema intitulado "Pedagogia
Iniciática – Uma
escola de liderança", já espalhada pela postagem intitulada
A Humana Idade, publicada em 12 de
setembro de 2011 (faz tempo, hein!), e reproduzida no próximo parágrafo.
"Gosto muito desta provocação, que sempre
evoco, do cientista e humanista Abraham Maslow, um dos pais da psicologia
humanística: 'Num certo sentido, apenas os santos são a
humanidade'. Ou seja, os demais não lograram o
desabrochar deste embrião de plenitude encarnado em nós. Se você quiser saber
quem são os verdadeiros seres humanos, recomendo que estude as existências de
seres humanos plenos, popularmente conhecidos como santos. É preciso estudar
seres humanos que deram certo."
"É preciso estudar seres humanos que deram certo.",
diz Roberto Crema. E ao estudá-los, creio que uma coisa que, dificilmente,
deixaremos de encontrar em suas vidas seja exatamente o que Oscar Quiroga
recomenda em suas palavras finais. "Deixar de erguer as mãos
em prece, pois elas precisam se voltar na direção dos semelhantes e com eles e
elas começar a construir uma existência na qual a proteção dos relacionamentos
seja sempre a prioridade."
"Construir uma existência
na qual a proteção dos relacionamentos seja sempre a prioridade.", eis a
finalidade dessa coisa chamada vida. Afinal, será que faz sentido duvidar que,
desde a chegada a esta dimensão, o prosseguimento da existência de todo e
qualquer ser dependerá sempre de relacionamentos? Portanto, se "Viver é
relacionar-se", como diz Vimala Thakar, será que viver bem é algo que dependerá
sempre de relacionar-se bem? E será que relacionar-se bem dependerá sempre da
proteção dos relacionamentos? No meu entender, sim. E no de vocês?
"Gostei demais do texto de Oscar
Quiroga, porém faria uma mudança em seu título. Em vez de A prioridade esquecida, o intitularia A prioridade não percebida. Por quê? Porque esquecer é uma coisa que
só pode ocorrer em relação a algo pelo qual se passou e, no meu entender, "proteção
de relacionamentos" é algo que nunca foi prioridade para "nossa
humanidade". Ou seja, em termos de proteção dos relacionamentos, a
situação de "nossa humanidade" não é de esquecimento, e sim de não
percepção. Não percepção que talvez possa ser explicada até mesmo por algo dito
por Oscar Quiroga: "Aquele quinhão de uma ignorância intencional que nossa
humanidade executa há centenas de anos, nela se acomodando e erguendo as mãos
ao céu em busca de proteção contra si mesma."
Nenhum comentário:
Postar um comentário