sexta-feira, 9 de abril de 2021

A fábula do gato vegetariano

"A fábula é um dos gêneros literários mais antigos. Existem fábulas de vários tipos: ficcionais, reflexões sobre questões cotidianas, moralizantes e satíricas. E há ainda aquelas que, de maneira inusitada para nós, ocidentais, provocam inquietação e convidam a pensar."
As palavras acima foram extraídas do livro "50 fábulas da China fabulosa". Considerando-a classificável no tipo "reflexões sobre questões cotidianas" ou entre as capazes de "provocar inquietação e convidar a pensar", para esta postagem escolhi A fábula do gato vegetariano.
A fábula do gato vegetariano
(Youxizhuren)
O gato achou que estava ficando velho demais para pegar ratos. Colocou um colar de monge ao redor do pescoço e saiu para passear. Os ratos ficaram muito surpresos com a mudança, pois monges geralmente não comem carne.
- O gato agora é vegetariano – gritou um deles, correndo para anunciar a novidade.
Depois de uma longa reunião, os ratos decidiram ir em cortejo agradecer ao gato por uma decisão tão sábia. Um pequeno grupo decidiu não participar da cerimônia de agradecimento, dizendo que podia se tratar de um truque do gato.
O cortejo já era esperado pelo gato e tudo saía conforme ele havia planejado. Ele partiu então para o ataque, agarrando três ratos, dos grandes, e devorou-os ali mesmo, na frente dos outros, que fugiram apavorados.
Os ratos reuniram-se novamente para discutir a situação. Um deles disse:
- Eu bem que avisei que podia ser um truque!
Houve quem não apreciasse esse comentário. Um rato que ali estava de visita explicou:
- Esse fato apenas comprova que os gatos vegetarianos são mais ferozes do que os carnívoros!
Depois disso, suspenderam a reunião para observar melhor o comportamento do gato.
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Tendo considerando-a classificável no tipo "reflexões sobre questões cotidianas" ou entre as capazes de "provocar inquietação e convidar a pensar", seguem algumas reflexões provocadas por A fábula do gato vegetariano.
Tudo começa com uma tentativa de enganar por meio de simulação, pois, assim como vestir uma camisa número 9 do time de futebol do Bayern Munich não torna alguém o melhor jogador do mundo, colocar um colar de monge não torna alguém um monge.
Porém o ardil do gato jamais surtiria efeito sem a estupidez dos ratos em acreditarem que basta mudar o rótulo para que o conteúdo passe a ser outro.
Apreciadores de novidades sem efeito comprovado, os ratos promoveram uma longa reunião que culminou na decisão de agradecer ao gato por algo não comprovado. Mas uma coisa ficou comprovada: ratos são facilmente enganados.
"Um pequeno grupo decidiu não participar da cerimônia de agradecimento, dizendo que podia se tratar de um truque do gato.", pois, infelizmente, o grupo dos lúcidos é sempre pequeno.
O equívoco da decisão foi comprovado pela devoração de três dos ratos representantes da maioria. E comprovada ficou também uma deplorável característica da maioria: a covardia. O gato devorou três ratos, dos grandes, obviamente um de cada vez, sem que os outros se unissem para enfrentar o gato. Infelizmente, uma atitude muito frequente é fazermos nada e ficarmos apenas torcendo para que não chegue a nossa vez. Atitude que não costuma trazer bons resultados, mas o fato é que a maioria é muito ativa em exercer sua passividade.
Os ratos fizeram mais uma reunião para discutir a situação. É impressionante como humanos, digo ratos, apreciam reuniões. Um dos que havia interpretado corretamente o que pretendia o gato, e cuja opinião foi desqualificada por ser minoria, lembrou que havia alertado para o equívoco da decisão tomada e "houve quem não apreciasse esse comentário". Não apreciar comentários sobre decisões equivocadas, apesar de alertas terem sido dados, é um comportamento muito apreciado, pelos humanos, digo, pelos ratos.
Um rato que estava de visita explicou:
- Esse fato apenas comprova que os gatos vegetarianos são mais ferozes do que os carnívoros!
Estar de visita e dar opiniões equivocadas que, obviamente, não contribuirão para a solução do problema, eis algo bastante comum no teatro corporativo! Ah! Os consultores!
"Depois disso, suspenderam a reunião para observar melhor o comportamento do gato", eis a frase final da fábula. E ao resolverem "observar melhor o comportamento do gato", os ratos fazem-me lembrar da técnica descrita por Robert Rabbin em O Sonho Americano. Denominada "baixar o volume", a técnica é por ele descrita assim: "Enfiar um chumaço de algodão nos ouvidos e passar três dias andando pela empresa e vendo o pessoal trabalhar. Ao cabo desse período, eu seria capaz de lhe dizer quais eram os valores que a empresa tinha de fato, com base na conduta das pessoas no trabalho."
Será que "observar melhor o comportamento" pode ser comparado a "passar três dias andando pela empresa e vendo o pessoal trabalhar"? Será que faz sentido afirmar que, se aplicada pelos ratos, a técnica de Robert Rabbin possibilitaria fazê-los enxergar que, apesar de ter passado a usar um colar de monge, os valores que o gato tinha de fato, ainda eram os de um gato?
Cecília Meireles dizia que é preciso aprender a enxergar para poder ver. Enxergar para ser capaz de ver como as pessoas são de fato, e não como elas querem nos fazer crer que são por meio das coisas que falam e / ou das roupas e dos adereços que usam.
De um livro intitulado "Criatividade em Propaganda", de Roberto Menna Barreto, copiei o seguinte trecho:
Uma senhora entrou em uma loja e falou com a vendedora:
- Eu gostaria de comprar uma camisola preta bem sensual e provocante.
- Minha senhora – respondeu a vendedora – podemos lhe vender uma camisola preta. O resto é com a senhora...
Adaptado para o teatro corporativo, onde passei toda a minha vida profissional, o episódio acima possibilita-me imaginar o hipotético (porém tremendamente possível) episódio apresentado abaixo.
Um indivíduo indicado para um cargo de chefia entrou em uma loja e falou com a vendedora:
- Eu gostaria de comprar um terno bem gerencial e elegante.
- Meu senhor – respondeu a vendedora – podemos lhe vender um terno. O resto é com o senhor...
Partindo de uma fábula, passando por um episódio em uma loja de roupas e chegando à adaptação de tal episódio para o teatro corporativo. Será que, à luz das reflexões provocadas por esse pequeno tour, faz sentido acreditar que roupas e adereços usados por uma pessoa sejam capazes de torná-la algo que ela não seja, nela desenvolvendo qualidades que ela não possui e / ou mudando os valores que ela preza?

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