Continuação de sexta-feira
Obviamente, a "descivilização"
em New Orleans foi mil vezes pior. Não posso evitar a
sensação de que vai haver mais disso, muito mais, à medida que nos
aprofundarmos no século 21. Há muitos problemas no ar que podem levar a humanidade
ao retrocesso. A ameaça mais óbvia são mais desastres naturais como resultado
de mudanças climáticas. Se este cataclismo for interpretado por políticos
americanos como John McCain – para usar a frase que eles sem dúvida usarão –
como um "chamado" para alertar os americanos sobre as consequências
de os EUA continuarem a bombear dióxido de carbono como se não houvesse amanhã,
então o Katrina terá um sentido.
Mas já poderá ser
tarde demais. Se estiverem corretas as recentes indicações de que não só as
calotas polares, mas também o permafrost na Sibéria estão degelando (degelo
que, por si só, agravaria o efeito estufa), então seremos lançados numa espiral
descendente que não poderá ser detida. Se isso ocorrer, se grandes partes do
mundo forem atormentadas por tempestades, enchentes e mudanças de temperatura
imprevisíveis, o que houve em New Orleans parecerá brincadeira de criança.
Em certo sentido,
esses também seriam furacões feitos pelo homem. Mas há
ainda as ameaças mais diretas dos humanos em relação a outros humanos. Até agora, os
ataques terroristas causaram ultraje, medo, algumas restrições de liberdades
civis e os abusos de Guantánamo e Abu Ghraib, mas não resultaram em histeria em
massa ou bodes expiatórios.
Muito menos em
Londres, a capital mundial do fleuma. Mas suponhamos que isso seja apenas o
começo. Suponhamos que ocorra a detonação, por um grupo terrorista, de uma
bomba suja ou até de uma pequena bomba nuclear em uma grande cidade. O que
fazer? Algo que tem quase tanta força quanto
uma enchente é a pressão da migração em massa do sul pobre e superpovoado do
planeta para o norte rico. (Não acidentalmente, os populistas que são contra a
imigração normalmente usam a metáfora da inundação.). Se desastres naturais ou
políticos deslocassem ainda mais milhões de pessoas, nossos controles de
imigração poderiam um dia se mostrar como os diques de New Orleans.
Mesmo com os atuais
níveis de imigração, os encontros resultantes – especialmente aqueles entre
imigrantes muçulmanos e os atuais residentes europeus – estão se revelando
explosivos. Como os civilizados vão ficar? Da forma como alguns europeus e
alguns imigrantes muçulmanos estão falando uns sobre os outros, eu vejo avançar a sombra de um novo barbarismo europeu.
E então há o desafio
de acomodar as potências emergentes, especialmente a Índia e a China, no
sistema internacional. Principalmente no caso da China, onde os líderes
comunistas usam o nacionalismo diversionista para se manter no poder, há um
perigo de guerra. Nada
"desciviliza" mais rapidamente e de forma garantida do que a guerra.
Então, nem se preocupe
com o "choque de civilizações" de Samuel Huntington. Isso, como diz o
ditado russo, foi muito tempo atrás e, de qualquer forma, não era verdade. O que está sob ameaça aqui é simplesmente a civilização, a
fina crosta que colocamos sobre o magma da natureza, incluindo a humana. New Orleans abriu um
pequeno buraco pelo qual vemos o que sempre esteve por trás. A cidade, conhecida como Big Easy (algo como "grande
moleza"), nos mostra a grande dificuldade que é preservar essa crosta.
No estilo de pregação
política, podemos considerar o Katrina um apelo para enfrentar esses desafios
seriamente, o que significa que os grandes blocos e potências do mundo –
Europa, EUA, China, Índia, Rússia, Japão, América Latina, ONU – precisam
atingir um novo nível de cooperação internacional. Mas, numa análise sóbria,
podemos arriscar uma conclusão mais pessimista: que por volta do ano 2000 o
mundo atingiu um alto ponto na difusão de civilização, para o qual as futuras
gerações podem olhar com nostalgia e inveja.
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"Acredite, sei do
que estou falando; eu já fui esse macaco.", afirma Timothy Garton Ash, na
penúltima frase da postagem
anterior. Que macaco é esse? Em conformidade com o pensamento de Timothy e
entremeando palavras dele com algumas minhas, respondo que esse macaco é aquele que diante de situações em que poucos conseguirão ser bem-sucedidos, depois de eliminar a
concorrência (recorrendo inclusive a ações desprovidas de todo e qualquer
escrúpulo), ao conseguir a banana, se recolhe a um canto, evitando o olhar dos
outros. E nós? Será que também já fomos esse macaco?
"A maior parte das pessoas, na maior parte do tempo,
se envolve em uma briga feroz por sobrevivência individual e genética. Algumas se tornam
anjos temporários, a maior parte volta a ser macaco.", eis mais duas
perturbadoras afirmações de Timothy. Será que pertencemos a essa maior parte?
Será que vale a pena refletirmos sobre o que é dito em A tênue divisão entre anjo e macaco? O que vocês acham?
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