"E nessa ideia de algo ainda não consumado
eu incluo coisas como civilização, sociedade, democracia e cidadania.",
disse eu três postagens atrás. Na seguinte, usando um texto de Rosely Sayão, procuro
evidenciar a não consumação da cidadania. Com a chegada do Dia do Silêncio (7 de maio), publiquei uma postagem alusiva a esse dia.
Nesta, lançando mão de um texto de Timothy Garton Ash, procuro evidenciar a não
consumação da civilização. Timothy é britânico, historiador, escritor e diretor
do Centro de Estudos Europeus. Seu texto foi publicado na edição de 11 de
novembro de 2005 do jornal O Estado de S.
Paulo, em uma coluna intitulada Opinião.
Para não desanimar leitores de pouco fôlego, mais uma vez recorro ao método
Jack: vamos por partes. Sendo assim, eis a primeira de duas postagens. Os
grifos são meus.
A tênue divisão entre anjo e macaco
Antes que nossa
atenção se desvie para outra manchete, vamos aprender a grande lição do
Katrina. Não se trata da incompetência do governo Bush, da escandalosa
negligência com os negros pobres dos EUA ou do nosso despreparo para enfrentar
grandes desastres naturais, embora tudo isso também se aplique. A grande lição é que a superfície de civilização sobre a
qual nos equilibramos é sempre muito fina. Um tremor e você cai, tentando se
agarrar e implorando por sua vida como um cão selvagem.
Você acha que os
saques, os estupros e o terror armado que emergiram em poucas horas em New
Orleans nunca teriam acontecido na bela e civilizada Europa? Pense outra vez.
Aconteceu em todo o continente europeu apenas 60 anos atrás. Leia as memórias
dos sobreviventes do Holocausto e do Gulag, o relato de Norman Lewis sobre
Nápoles em 1944 ou o diário anônimo de uma alemã em Berlim, em 1945,
republicado recentemente. Aconteceu de novo na Bósnia apenas dez anos atrás. E
isso não foi nem a "força maior" de um desastre natural. Os furacões
da Europa foram fabricados pelo homem.
O ponto básico é o
mesmo. Remova os sustentáculos elementares da vida civilizada e organizada –
comida, abrigo, água potável, segurança pessoal mínima – e em pouco tempo
voltamos a um estado natural hobbesiano, uma guerra de todos contra todos.
Algumas pessoas, durante uma parte do tempo, se comportam com solidariedade
heróica. A maior parte das pessoas, na maior
parte do tempo, se envolve em uma briga feroz por sobrevivência individual e
genética. Algumas se tornam anjos temporários, a maior parte volta a ser
macaco.
Sem comida, abrigo ou segurança mínima, voltamos ao estado de guerra
A palavra civilização, num de seus sentidos iniciais, se
referia ao processo de animais humanos sendo civilizados – com o que queremos
dizer, suponho, atingir um
reconhecimento mútuo de dignidade humana, ou pelo menos aceitar em princípio o desejo
desse reconhecimento. (Como o dono de escravos Thomas Jefferson fez, mesmo se
fracassou em praticar o que pregava.). Lendo Jack London outro dia, passei por uma palavra incomum: "descivilização". O processo oposto,
ou seja, aquele pelo qual as pessoas param de ser civilizadas e se tornam
bárbaras. O Katrina nos fala sobre a possibilidade sempre
presente de descivilização.
Há pistas disso até na
vida normal e cotidiana. A raiva de dirigir é um bom exemplo. Ou pense no que
significa esperar por um voo noturno que atrasa ou é cancelado. De início,
aqueles casulos de espaço pessoal cuidadosamente guardados que levamos de um
lado para outro conosco em salas de espera de aeroportos se desintegram em
partículas de solidariedade. Olhares de simpatia mútua sobre o jornal ou a tela
do laptop. Algumas palavras de frustração ou ironia compartilhada. Muitas
vezes, isso se transforma numa forte manifestação de solidariedade em grupo,
talvez dirigida contra as incorrigíveis equipes da British Airways, Air France
ou American Airlines. (Encontrar um inimigo comum é o único caminho garantido
para a solidariedade humana.).
Mas então correm
boatos de que há alguns lugares vagos em outro voo no portão 37. Colapso
instantâneo da solidariedade. Os anjos se tornam macacos. As velhas e enfermas
senhoras e as crianças são deixadas para trás com o estouro. Homens de terno
preto, com diplomas de Harvard e Oxford e modos impecáveis à mesa, se
transformam em gorilas selvagens no meio da floresta. Quando, depois de
eliminar a concorrência, eles conseguem seus cartões de embarque, se recolhem a
um canto, evitando o olhar dos outros. O gorila que consegue a banana. (Acredite,
sei do que estou falando; eu já fui esse macaco.). Tudo isso para evitar uma
noite no Holliday Inn, em Des Moines.
Continua na próxima quarta-feira
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