Esta postagem apresenta parte de um artigo da
jornalista Dorrit Harazim publicado em sua coluna semanal no jornal O Globo, na edição de 3 de janeiro de
2016. Os parágrafos suprimidos na transcrição para a postagem focalizam um
episódio protagonizado por Chris Christie, governador do estado americano de
New Jersey e que, segundo Dorrit, ocorrera alguns domingos atrás, em um quiet car (vagão silencioso) de um trem
que partira de Washington para Nova York. A finalidade de tal supressão é – sem
prejudicar a ideia que pretendo espalhar - diminuir o tamanho da postagem e,
consequentemente, aumentar a probabilidade de sua leitura por uma quantidade
maior de pessoas.
Quietude
A ideia por trás dos quiet cars introduzidos em várias linhas
férreas americanas é estupenda, por civilizatória, democrática e regeneradora.
Não há prioridade para qualquer classe social, raça, religião, nacionalidade,
idade, sexo ou outra tribo. Tampouco é possível fazer reserva ou guardar lugar
para terceiros. O assento não custa mais caro do que nos demais vagões. Quem
consegue lugar num dos 45 assentos de um quiet
car (existe apenas um vagão silencioso por trem) costuma defender as normas
não escritas de quietude com paixão mais extremada do que as conquistas
constitucionais dos Direitos Civis.
As heresias mais
graves, ali, são óbvias: falar ao telefone ou deixar o celular tocar. Conversar
com amigos ou puxar conversa com quem está sentado ao lado é considerado
agressão física (em caso de emergência, seja breve e fale baixinho). Digitar
textos com o som do teclado ativado, ouvir música com fones de ouvido audíveis
pelo vizinho, folhear jornal estalando as páginas, abrir saquinho de batatas
fritas com espocar também não pode. Aliás, nada que emita ruído pode. Ou pelo
menos não deve ser tentado.
As heresias mais graves
nos 'quiet cars' nos Estados Unidos são óbvias: falar ao telefone ou deixar o celular
tocar
O desavisado que
entrar por engano num quiet car e não
perceber a súbita calmaria em relação ao mundo exterior receberá avisos
instantâneos: primeiro, olhares suplicantes e gestos moderados. Num segundo
tempo, a frase fatal: "Você está num quiet
car". A partir daí, ou o recém-chegado muda de atitude ou o que é para
ser um oásis silencioso se transforma numa gritaria igual à do mundo que levou
aqueles passageiros até então tão mansos a procurarem refúgio naquele vagão por
algumas horas de suas vidas.
Para aproveitar a
aparente quietude mundial que cobria o planeta e abrandava até as redes sociais
no final de ano no momento do envio antecipado deste texto, houve espaço para
listar aqui os nove tipos de silêncio elencados por um americano pouco
conhecido, Paul Goodman.
Goodman (1911 – 1972),
além de poeta, pensador, crítico social, romancista e psiquiatra cult nascido
no Village, era guru de Susan Sontag e adorado pela garotada dos anos 60, que o
apelidou de "o homem mais influente de sua geração de quem você nunca
ouviu falar". "Nenhuma voz foi tão convincente, genuína e singular em
nosso idioma desde D. H. Lawrence", escreveu Sontag no obituário do amigo.
"Sua voz era real".
Abaixo, em tradução livre,
a transcrição de um parágrafo de seu livro "Speaking and Language: Defence
and Poetry" ("A linguagem e o falar: Em defesa da poesia"), em
que Goodman lista os silêncios que lhe foram dados a conhecer ao longo da vida:
"Não falar e
falar são, ambos, duas maneiras de estar no mundo, e há gradações e formas para
cada uma. Há o silêncio apalermado de torpor ou apatia; o silêncio sóbrio
acompanhado de uma expressão solene, asinina; o silêncio fértil da consciência,
do pastoreio da alma, quando brotam pensamentos novos; o silêncio vivaz da
percepção, da prontidão à fala; o silêncio musical que acompanha a atividade
absorta; o silêncio que acompanha o ouvir outro falar, pega o desvio e o ajuda
a retomar o fio; o ruidoso silêncio do ressentimento e da autorrecriminação,
essa linguagem sonora e subvocal; o silêncio do choque; e o silêncio da
concordância pacífica com outras pessoas ou em comunhão com o cosmos".
Recomenda-se exercitar
alguns desses silêncios em 2016. E tentar eliminar um ou dois.
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"Não falar e
falar são, ambos, duas maneiras de estar no mundo, e há gradações e formas para
cada uma.", afirma Paul Goodman. Sim, por mais incrível que possa parecer ao
imenso contingente de animais
falantes que habitam esta dimensão deste planeta, "não falar"
é uma de duas maneiras de estar no mundo. Descobrir que "há gradações e formas
corretas para cada uma das duas maneiras", eis o que deve ser buscado. Gosto
demais da seguinte afirmação atribuída a Confúcio. "Se encontrais uma pessoa a quem vale a pena falar e não
lhe falais, perdeis a pessoa; se encontrais uma pessoa a quem não vale a pena
falar, e lhe falais, perdeis, isto é, desperdiçais as vossas palavras. Sábio é
o que não perde pessoas, nem palavras."
Mas pior do que não falar a quem vale a pena falar; e falar a quem não
vale a pena falar, creio que seja sair por aí falando sem ter o que dizer. "Às vezes as
pessoas dizem coisas só para encher o silêncio. Ou para chocar e provocar. Ou
como exercício. Aeróbica verbal. Musculação loquaz. Há inúmeras razões. Só
muito raramente as palavras são usadas estritamente por seus significados
denotativos.", eis um parágrafo extraído do livro Tópicos Especiais em Física das Calamidades, de Marisha Pessl.
Quantitativamente tenho uma discordância em
relação às afirmações de Marisha Pessl. "Às vezes as pessoas dizem coisas
só para encher o silêncio.", afirma ela. Em conformidade com o que vejo no
dia-a-dia, troco o "Às vezes" por "Na maioria das vezes".
Afinal, como ela mesma afirma na última frase do parágrafo, "raramente as palavras são
usadas estritamente por seus significados denotativos.". E ainda chamando
atenção para o aspecto quantitativo, destaco aqui a seguinte afirmação de
Dorrit Harazim: "existe apenas um vagão silencioso por trem.".
Portanto, independentemente de saber quantos vagões compõem cada trem, creio
que a existência de apenas um disponível para uso como quiet car já seja
informação suficiente para evidenciar a enorme disparidade entre a quantidade
de indivíduos conscientes e a de inconscientes nesta insana civilização (sic)
na qual sobrevivemos.
Civilizatória, democrática
e regeneradora! Eis a opinião de Dorrit Harazim sobre a ideia por trás dos quiet cars. "E nessa ideia de algo ainda
não consumado eu incluo coisas como civilização,
sociedade, democracia e cidadania.",
eis a minha opinião externada duas postagens atrás. Ou seja, até mesmo quando a
escolha da postagem a ser publicada é feita com base em uma data comemorativa,
e não na anterior, ela tem relação com as imediatamente anteriores. Será que
vale a pena teimar em não aceitar que na vida tudo esteja interrelacionado? Será
que vale a pena insistir em não querer enxergar a vida usando a visão sistêmica
tantas vezes defendida neste blog? Alguma vez vocês já ouviram um antigo ditado
segundo o qual "O pior cego é aquele que não quer ver"? Pois é.
Esta postagem é a
quarta que publico em alusão ao Dia do
Silêncio. Para quem quiser ler as anteriores, seguem os links para fazê-lo.
Dia do Silêncio (07.05.2014), Silêncio, por favor (14.05.2015) e Reflexões
provocadas por "Silêncio,
por favor" (21.05.2015).
Dorrit Harazim termina
seu excelente artigo recomendando que em 2016 exercitemos alguns dos nove tipos
de silêncio elencados por Paul Goodman; e que tentemos eliminar um ou dois. Eu
termino esta postagem reiterando suas recomendações e acrescentando uma. Que a identificação
dos silêncios a serem exercitados e dos a serem eliminados seja feita em algum dos
raros momentos de quietude que vocês consigam encontrar em meio a essa correria
frenética em que vivemos, pois a identificação correta do que fazer com cada
tipo de silêncio requer que ela seja feita em silêncio. Compreendido?
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