terça-feira, 3 de setembro de 2024

A palavra de quatro letras que os negócios esqueceram (I)

"Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração."

  (Vladimir Maiakovski [1893 - 1930], poeta, dramaturgo e teórico russo)
Após uma postagem chamando atenção para a imprescindibilidade de enxergarmos que "Ser humano é um esporte coletivo", segue a primeira parte de um artigo nos alertando quanto à outra imprescindibilidade: "reconectarmo-nos com o mais primitivo dos instintos humanos". Onde o encontrei? Na edição de 16 de agosto de 2024 do jornal Valor Econômico em um caderno intitulado EU& publicado na edição de sexta-feira. Seus autores? Lourenço Bustani e Fritjof Capra. A divisão em duas partes deve-se à intenção de não afugentar leitores de pouco fôlego e consequentemente evitar que eles sejam privados da leitura de um texto que, na minha insuspeita opinião, considero imperdível. Considerando a divisão do artigo e a intenção de estimular as pessoas a lê-lo, antecipei para o início desta postagem algo que, em publicações de artigos, é feito em seu final: a qualificação do(s) autor(es).
Lourenço Bustani é cofundador da Mandalah, consultoria global que desde 2006 trabalha em prol do propósito nos negócios. Conselheiro do Sistema B Brasil, Presidente do Conselho do Instituto Phaneros e Embaixador Global do Island of Knowledge.
Fritjof Capra, Ph.D., é físico teórico de sistemas, foi diretor fundador do Center for Ecoliteracy em Berkeley, Califórnia, e hoje é membro do Schumacher College no Reino Unido. Capra integra o Conselho da Earth Charter International, é autor de vários best-sellers internacionais, incluindo "O Tao da física", "A teia da vida" e "A ciência de Leonardo" e coautor do livro multidisciplinar "A visão sistêmica da vida".
Feito esse preâmbulo, segue a primeira parte do extraordinário artigo.
A palavra de quatro letras que os negócios esqueceram
Nossa hora da verdade é aqui e agora: ou nos reconectamos com o mais primitivo dos instintos humanos ou esta pode ser, de fato, nossa última dança.
Por Lourenço Bustani e Fritjof Capra, para o Valor
Seria preciso ser desinformado, apático ou estar em negação para não reconhecer que o mundo está literalmente em um ponto de ruptura. A vida está se tornando insuportável para um número crescente de pessoas, seja devido às consequências ambientais da nossa produção e consumo excessivos; à prevalência do ódio, intolerância e guerra; ou ao câncer da ganância, que continua a aumentar a lacuna entre aqueles que têm mais do que precisam e aqueles que não têm o suficiente.
Tivemos 300 mil anos desde o surgimento do Homo sapiens para realizar o potencial de sermos humanos, no entanto nossa negação coletiva da santidade da vida ainda sugere que somos um experimento civilizacional fracassado. Em vez de amar toda a vida, em qualquer forma que ela possa se manifestar, nós menosprezamos todas as formas de vida, exceto a nossa, como evidenciado pela enorme perda de biodiversidade acontecendo diante de nossos olhos. E não importa quais metas sejam definidas ou quais acordos sejam assinados, só mudaremos as realidades por meio do AMOR, aquela palavra de quatro letras que nunca encontrou um lugar nas vísceras do mundo dos negócios.
Martin Luther King Jr. bem disse: "Poder sem amor é imprudente e abusivo; amor sem poder é anêmico. É exatamente nesse conflito entre poder imoral e moralidade impotente que reside a maior crise do nosso tempo".
Nossa hora da verdade é aqui e agora: ou nos reconectamos com o mais primitivo dos instintos humanos ou esta pode ser, de fato, nossa última dança. Uma maneira de se reconectar é desafiar a noção, em ambientes de negócios, de que "pessoal" e "profissional" são e devem ser dimensões do "Eu" inteiramente diferentes, isoladas uma da outra.
Emoções, sentimentos, espontaneidade e vulnerabilidade raramente encontram um lugar no trabalho, onde prevalece uma fachada de resistência, autoconfiança e subserviência à entidade corporativa. Esse desligamento do que significa estar vivo é apenas um dos legados desumanizadores da mecanização do trabalho trazida pela Revolução Industrial. O amor por si mesmo se perde quando isso acontece.
Outra maneira de se reconectar é expurgar a ideia de que o papel de uma corporação é exclusivamente servir aos interesses daqueles que têm interesse financeiro naquela entidade, particularmente quando isso significa desconsiderar todos e tudo o mais que é impactado por suas atividades. Essa visão míope, fragmentada e retrógrada de geração de valor está, em última análise, enraizada na ganância predatória, que apregoa o bem-estar próprio em detrimento do bem-estar de tudo e todos. O amor de uns pelos outros também se perde quando isso acontece.
E outra maneira, ainda, de se reconectar é se posicionar contra o sequestro do tempo, tanto presente quanto futuro. Cinquenta anos atrás, a Securities and Exchange Commission estabeleceu que um intervalo de três meses seria a cadência da prestação de contas corporativa. Os resultados trimestrais se tornaram reis desde então, e com base neles uma empresa pode ir ao céu ou ao inferno.
A hegemonia do nosso curto-prazo, completamente fora de sincronia com os ciclos dos sistemas naturais dos quais os negócios dependem para sobreviver, produz um estado de ansiedade coletiva, no qual o sucesso é definido pelo quanto alguém pode agarrar agora, independentemente do que isso possa significar amanhã ou depois. Nossa persistente e teimosa ultrapassagem da biocapacidade da Terra, através da nossa veneração por gases de efeito estufa, é uma demonstração clara dessa distorção do tempo, em que vivemos hoje para morrer amanhã. O amor pelas gerações futuras se perde quando isso acontece.
Aqui está o ponto cego, como Otto Scharmer tão lucidamente pontuou muitos anos atrás: quando nos desconectamos dos sistemas naturais que nos mantêm vivos, dos outros e de nós mesmos, o resultado coletivo é ruim para todos. Ser alheio ao desperdício que produzimos, desconsiderar a situação daqueles que sofrem mais do que nós, perseguir o acúmulo material em vez da verdadeira autorrealização, tudo isso torna a vida mais dolorosa, mais escassa e mais difícil de navegar.
Não podemos esperar prosperar se renunciamos à teia na qual a vida se manifesta. A rede é um padrão comum à vida. Onde quer que vejamos vida, vemos redes. A ecologia, afinal, é essencialmente uma ciência de relacionamentos. Quem eu sou depende dos meus relacionamentos pessoais e profissionais com os outros, dos meus relacionamentos com ideias e tradições culturais, bem como dos relacionamentos genéticos com meus ancestrais.
O modo como fizemos negócios neste planeta nos últimos 500 anos é responsável em grande parte por nos colocar nessa confusão: uma orgia de interesses corporativos entrelaçados com uma sede política por poder que sequestrou o bem-estar dos habitantes do mundo e sacrificou as perspectivas daqueles que ainda estão por vir. Por décadas, o conluio entre marcas e seus anunciantes instigou o pior da natureza humana e incitou as pessoas a tomarem decisões de consumo ecocidas: comer alimentos ultraprocessados, comprar um carro maior, trocar seu telefone perfeitamente funcional todo ano (e se você não tiver os meios, apenas assuma uma dívida e faça isso de qualquer maneira). Porque o que importa no final do dia - de acordo com a lógica perversa do crescimento infinito - é que as marcas continuem vendendo e as pessoas continuem comprando.
Caímos em uma armadilha decorrente da nossa capacidade enquanto espécie de projetar o futuro: embora por um lado isso nos dê a capacidade de desejar, por outro acabamos canalizando esse desejo para o que não é necessariamente do nosso melhor interesse. Nosso amor por "coisas" adia continuamente a necessidade de encarar o vazio que estamos tentando preencher com o que consumimos. E ao amarmos as coisas erradas, esquecemos todas aquelas coisas dignas de amor, sendo a primeira delas a VIDA, em todas as suas formas.
Continua na próxima segunda-feira

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