"Cada um, ao nascer, traz sua dose de amor. Mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos resseca o solo do coração."
(Vladimir Maiakovski [1893 - 1930], poeta, dramaturgo e teórico russo)
Após uma postagem chamando
atenção para a imprescindibilidade de enxergarmos que "Ser humano é um
esporte coletivo", segue a primeira parte de um artigo nos alertando quanto
à outra imprescindibilidade: "reconectarmo-nos com o mais primitivo dos
instintos humanos". Onde o encontrei? Na edição de 16 de agosto de 2024 do
jornal Valor Econômico em um caderno
intitulado EU& publicado na
edição de sexta-feira. Seus autores? Lourenço Bustani e Fritjof Capra. A
divisão em duas partes deve-se à intenção de não afugentar leitores de pouco
fôlego e consequentemente evitar que eles sejam privados da leitura de um texto
que, na minha insuspeita opinião, considero imperdível. Considerando a divisão
do artigo e a intenção de estimular as pessoas a lê-lo, antecipei para o início
desta postagem algo que, em publicações de artigos, é feito em seu final: a
qualificação do(s) autor(es).
Lourenço
Bustani é cofundador da Mandalah, consultoria global que desde 2006 trabalha em
prol do propósito nos negócios. Conselheiro do Sistema B Brasil, Presidente do
Conselho do Instituto Phaneros e Embaixador Global do Island of Knowledge.
Fritjof
Capra, Ph.D., é físico teórico de sistemas, foi diretor fundador do Center for
Ecoliteracy em Berkeley, Califórnia, e hoje é membro do Schumacher College no
Reino Unido. Capra integra o Conselho da Earth Charter International, é autor
de vários best-sellers internacionais, incluindo "O Tao da física",
"A teia da vida" e "A ciência de Leonardo" e coautor do
livro multidisciplinar "A visão sistêmica da vida".
Feito esse
preâmbulo, segue a primeira parte do extraordinário artigo.
A palavra de quatro letras que os negócios esqueceram
Nossa hora da verdade é aqui e agora: ou nos reconectamos com o mais primitivo dos instintos humanos ou esta pode ser, de fato, nossa última dança.
Por Lourenço Bustani e Fritjof Capra, para o Valor
Seria
preciso ser desinformado, apático ou estar em negação para não reconhecer que o
mundo está literalmente em um ponto de ruptura. A vida está se tornando
insuportável para um número crescente de pessoas, seja devido às consequências
ambientais da nossa produção e consumo excessivos; à prevalência do ódio,
intolerância e guerra; ou ao câncer da ganância, que continua a aumentar a
lacuna entre aqueles que têm mais do que precisam e aqueles que não têm o
suficiente.
Tivemos
300 mil anos desde o surgimento do Homo
sapiens para realizar o potencial de sermos humanos, no entanto nossa
negação coletiva da santidade da vida ainda sugere que somos um experimento
civilizacional fracassado. Em vez de amar toda a vida, em qualquer forma que
ela possa se manifestar, nós menosprezamos todas as formas de vida, exceto a
nossa, como evidenciado pela enorme perda de biodiversidade acontecendo diante
de nossos olhos. E não importa quais metas sejam definidas ou quais acordos
sejam assinados, só mudaremos as realidades por meio do AMOR, aquela palavra de
quatro letras que nunca encontrou um lugar nas vísceras do mundo dos negócios.
Martin
Luther King Jr. bem disse: "Poder sem amor é imprudente e abusivo; amor
sem poder é anêmico. É exatamente nesse conflito entre poder imoral e
moralidade impotente que reside a maior crise do nosso tempo".
Nossa
hora da verdade é aqui e agora: ou nos reconectamos com o mais primitivo dos
instintos humanos ou esta pode ser, de fato, nossa última dança. Uma maneira de
se reconectar é desafiar a noção, em ambientes de negócios, de que
"pessoal" e "profissional" são e devem ser dimensões do
"Eu" inteiramente diferentes, isoladas uma da outra.
Emoções, sentimentos, espontaneidade e vulnerabilidade raramente
encontram um lugar no trabalho, onde prevalece uma fachada de resistência,
autoconfiança e subserviência à entidade corporativa. Esse desligamento do que
significa estar vivo é apenas um dos legados desumanizadores da mecanização do
trabalho trazida pela Revolução Industrial. O amor por si mesmo se perde quando
isso acontece.
Outra
maneira de se reconectar é expurgar a ideia de que o papel de uma corporação é
exclusivamente servir aos interesses daqueles que têm interesse financeiro
naquela entidade, particularmente quando isso significa desconsiderar todos e
tudo o mais que é impactado por suas atividades. Essa visão míope, fragmentada
e retrógrada de geração de valor está, em última análise, enraizada na ganância
predatória, que apregoa o bem-estar próprio em detrimento do bem-estar de tudo
e todos. O amor de uns pelos outros também se perde quando isso acontece.
E outra
maneira, ainda, de se reconectar é se posicionar contra o sequestro do tempo,
tanto presente quanto futuro. Cinquenta anos atrás, a Securities and Exchange
Commission estabeleceu que um intervalo de três meses seria a cadência da
prestação de contas corporativa. Os resultados trimestrais se tornaram reis
desde então, e com base neles uma empresa pode ir ao céu ou ao inferno.
A
hegemonia do nosso curto-prazo, completamente fora de sincronia com os ciclos
dos sistemas naturais dos quais os negócios dependem para sobreviver, produz um
estado de ansiedade coletiva, no qual o sucesso é definido pelo quanto alguém
pode agarrar agora, independentemente do que isso possa significar amanhã ou
depois. Nossa persistente e teimosa ultrapassagem da biocapacidade da Terra,
através da nossa veneração por gases de efeito estufa, é uma demonstração clara
dessa distorção do tempo, em que vivemos hoje para morrer amanhã. O amor pelas
gerações futuras se perde quando isso acontece.
Aqui está
o ponto cego, como Otto Scharmer tão lucidamente pontuou muitos anos atrás:
quando nos desconectamos dos sistemas naturais que nos mantêm vivos, dos outros
e de nós mesmos, o resultado coletivo é ruim para todos. Ser alheio ao desperdício
que produzimos, desconsiderar a situação daqueles que sofrem mais do que nós,
perseguir o acúmulo material em vez da verdadeira autorrealização, tudo isso
torna a vida mais dolorosa, mais escassa e mais difícil de navegar.
Não
podemos esperar prosperar se renunciamos à teia na qual a vida se manifesta. A
rede é um padrão comum à vida. Onde quer que vejamos vida, vemos redes. A
ecologia, afinal, é essencialmente uma ciência de relacionamentos. Quem eu sou
depende dos meus relacionamentos pessoais e profissionais com os outros, dos
meus relacionamentos com ideias e tradições culturais, bem como dos
relacionamentos genéticos com meus ancestrais.
O modo
como fizemos negócios neste planeta nos últimos 500 anos é responsável em
grande parte por nos colocar nessa confusão: uma orgia de interesses
corporativos entrelaçados com uma sede política por poder que sequestrou o
bem-estar dos habitantes do mundo e sacrificou as perspectivas daqueles que
ainda estão por vir. Por décadas, o conluio entre marcas e seus anunciantes
instigou o pior da natureza humana e incitou as pessoas a tomarem decisões de
consumo ecocidas: comer alimentos ultraprocessados, comprar um carro maior,
trocar seu telefone perfeitamente funcional todo ano (e se você não tiver os
meios, apenas assuma uma dívida e faça isso de qualquer maneira). Porque o que
importa no final do dia - de acordo com a lógica perversa do crescimento
infinito - é que as marcas continuem vendendo e as pessoas continuem comprando.
Caímos em
uma armadilha decorrente da nossa capacidade enquanto espécie de projetar o
futuro: embora por um lado isso nos dê a capacidade de desejar, por outro
acabamos canalizando esse desejo para o que não é necessariamente do nosso
melhor interesse. Nosso amor por "coisas" adia continuamente a
necessidade de encarar o vazio que estamos tentando preencher com o que
consumimos. E ao amarmos as coisas erradas, esquecemos todas aquelas coisas
dignas de amor, sendo a primeira delas a VIDA, em todas as suas formas.
Continua na próxima segunda-feira
Nenhum comentário:
Postar um comentário