Continuação de sábado, 06 de julho
"Na Universidade de Twente, Gertz diz que procura ensinar seus alunos a ler a história da filosofia e entender como ela pode ser aplicável para ajudar a levantar questões sobre os problemas enfrentados hoje. Segundo ele, a filosofia é muito útil para prever por que temos que entender a relação entre o passado e o presente para tentar passar do presente para o futuro."Um de seus ex-alunos de Twente é Leonardo Werner, advogado que cursou por lá o mestrado em filosofia da ciência, tecnologia e sociedade e se tornou, agora de volta ao Brasil, consultor associado da Principia Advisory e também articulista da FreedomLab, um think tank baseado em Amsterdã.Sabendo que estava se arriscando a estudar filosofia em uma 'sociedade técnica' movida a dados, que valoriza pessoas multitarefas e ama inovação, Werner acabou descobrindo que esta sociedade que busca os 'comos' parou de pensar nos 'porquês'. Estudar criticamente textos difíceis e ideias complexas e mergulhar fundo na subjetividade alargou sua visão de mundo e a compreensão sobre valores humanos.""Sabendo que estava se arriscando a estudar filosofia em uma 'sociedade técnica' movida a dados ...", Werner foi "Estudar criticamente textos difíceis e ideias complexas e mergulhar fundo na subjetividade" o que lhe propiciou "o alargamento da sua visão de mundo e a compreensão sobre valores humanos". Alargamento de visão e compreensão sobre valores humanos que fizeram com que Werner "acabasse descobrindo que esta sociedade que busca os 'comos' parou de pensar nos 'porquês'".E ao "parar de pensar nos 'porquês'", o que "esta sociedade que busca os 'comos'" conseguiu foi tornar-se incapaz de encontrar respostas para os problemas que a afligem, pois, segundo o renomado sociólogo polonês Zigmunt Bauman (1925 - 2017), "Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem."
"Se a nossa medida para tudo na vida for a capacidade de executar tarefas eficientemente, então a IA certamente sairá vencedora. Precisamos nos perguntar, então, quais valores podem resgatar, ressignificar, preservar e promover a nossa humanidade", diz Werner.Eficientemente, eis uma palavra usada por Werner que, acionando o método das recordações sucessivas, levou-me a ir buscar no episódio 4 de uma série intitulada Consciência 3 um trecho em que o psicólogo Guto Pompéia se refere à eficiência. Reproduzido a seguir, o trecho é encontrável a partir do minuto 30:23. A instigante série é composta de cinco episódios."A eficiência é baseada numa razão matemática que é produção dividida por tempo. Então, a eficiência implica no encurtamento do tempo. O homem contemporâneo ficou apaixonado pela eficiência. Não só porque a eficiência permite que você ganhe e se imponha a todos os outros. O mais eficiente faz todos os outros fecharem, faz todos os outros caírem fora do jogo, até o momento em que você fica sozinho e não pode mais jogar porque você confundiu adversário e inimigo. Então, a perspectiva da eficiência é uma perspectiva muito destrutiva. Na perspectiva do curto prazo você vai fazendo. Por isso é que ninguém sabe que mundo vai existir daqui há dez anos. Porque nós estamos num prazo tão curto que dez anos, na velocidade em que a gente está caminhando, já se torna impossível de ser previsto. Parece que a humanidade está dirigindo um caminhão que ela só pode acelerar, ela não vê a possibilidade de brecar, e não tem a menor ideia de onde a estrada vai dar. Tudo sugere que uma hora a estrada vai acabar, e quanto maior for a velocidade maior vai ser a porrada.""O homem contemporâneo ficou apaixonado pela eficiência.", diz Guto Pompéia. E ele diz também que "a perspectiva da eficiência é uma perspectiva muito destrutiva". Ou seja, o homem contemporâneo ficou apaixonado por algo destrutivo. Algo destrutivo que contribuirá para que "a IA certamente saia vencedora", e a humanidade saia perdedora. Portanto, como diz Werner, "Precisamos nos perguntar, então, quais valores podem resgatar, ressignificar, preservar e promover a nossa humanidade". Infelizmente, a autodenominada espécie inteligente do universo é muito propensa a apaixonar-se por coisas destrutivas.Foi Gertz quem lhe apresentou Martin Heidegger e Jacques Ellul, dois filósofos que ele considera essenciais para quem quer compreender o fenômeno tecnológico, diz Werner. "Em 1954, Heidegger escreve um artigo chamado 'A questão da técnica'. Também no mesmo ano, Ellul publica o livro 'La Téchnique', traduzido para o português como 'A sociedade tecnológica'. São duas leituras reveladoras e fascinantes", indica.Ou seja, há 70 anos já havia que enxergasse "a questão da técnica" como algo que deveria merecer profunda atenção por parte da humanidade."Werner também é leitor assíduo de outro filósofo, este bem contemporâneo, o sul-coreano naturalizado alemão Byung-Chul Han, autor de 'A sociedade do cansaço'. Ele comenta que em um livro recente, intitulado 'Não coisas', Han discorre sobre a digitalização do mundo como uma ameaça à ordem terrena, à ordem das coisas materiais, que são fundamentais para nos dar o senso de um mundo habitável.'Ele afirma que não vivemos mais entre o céu e a terra, mas entre o Google Cloud e o Google Earth. Não é um mundo mais palpável e nem tangível. Isso nos gera a ilusão de que somos seres incondicionados e separados da natureza, podendo alcançar técnicas cada vez mais eficientes para postergar a vida, torná-la mais cômoda e cada vez mais conveniente. Mas esse mundo digital não nos traz nenhuma orientação sobre como viver uma vida boa e significativa. Na ausência de um norte, optamos simplesmente por viver mais. Mas essa é uma vida sem vivacidade, esvaziada de significados e de sentido'".E ao falar na "ilusão de que somos seres incondicionados e separados da natureza, podendo alcançar técnicas cada vez mais eficientes para postergar a vida" e que "Na ausência de um norte, optamos simplesmente por viver mais. Mas essa é uma vida sem vivacidade, esvaziada de significados e de sentido.", Byung-Chul Han faz-me lembrar de algo que li na edição 265 (referente a março de 2024) da revista Vida Simples em uma matéria intitulada Nosso Futuro que é reproduzido no próximo parágrafo."Estudos dizem que o humano que vai viver 150 anos já nasceu. Mas o que estamos fazendo com essa oportunidade? O documentário Quantos Dias. Quantas Noites, de Cacau Rhoden, traz um mergulho nos propósitos da nossa existência. Entre os especialistas ouvidos, que nos levam a enxergar caminhos e desigualdades no tema, além da nossa conexão com o tempo e a idade, está a ativista em cuidados paliativos Ana Michelle Soares, a AnaMi, que morreu aos 40 anos após enfrentar um câncer, deixando três livros como legado. "Eu não media segundos, mas momentos significativos", ela contou."Eu não media segundos, mas momentos significativos.", contou AnaMI. "Mas esse mundo digital não nos traz nenhuma orientação sobre como viver uma vida boa e significativa.", diz Byung-Chul Han. Ou seja, esse mundo digital não seria o melhor para AnaMI. Será que ele deve ser considerado o melhor para nós?"Esse mundo digital produz a ilusão de que somos seres incondicionados e separados da natureza, podendo alcançar técnicas cada vez mais eficientes para postergar a vida, torná-la mais cômoda e cada vez mais conveniente. Mas esse mundo digital não nos traz nenhuma orientação sobre como viver uma vida boa e significativa. Na ausência de um norte, optamos simplesmente por viver mais.", diz Byung-Chul Han."Estudos dizem que o humano que vai viver 150 anos já nasceu.", afirma uma matéria intitulada Nosso Futuro publicada em uma revista denominada Vida Simples. "Mas o que estamos fazendo com essa oportunidade?", eis a indagação que segue a referida afirmação. Optar simplesmente por viver mais, ou seja, durante mais tempo nesta dimensão, sem saber o que estamos fazendo com essa oportunidade, eis o que o fascínio pela tecnologia provoca em nós. Ajudar-nos a saber o que devemos fazer com essa oportunidade, eis a função de uma inesquecível frase da trilogia O Senhor dos Anéis: "A única coisa a fazer é decidir como usar o tempo que nos foi dado"."Expectativa de vida cada vez maior, em termos de anos; cada vez menor, em termos de significado, eis o que nos oferece esse estonteante mundo digital com "uma vida sem vivacidade, esvaziada de significados e de sentido."Indagado sobre o motivo de não usar uma arma para proteger-se de um provável atentado (que acabou ocorrendo), Martin Luther King respondeu que o importante não é o quanto se vive, e sim como se vive. Sim, mais importante que a quantidade de anos que se tenha de vida é a quantidade de vida que se tenha nos anos.Não, a ideia não é demonizar a tecnologia e sim tirá-la do lugar em que foi colocada "por engenheiros de nossas principais empresas de tecnologia e universidades", segundo os quais, "as pessoas são o problema e a tecnologia é a solução", como diz Douglas Rushkoff em seu extraordinário livro intitulado Equipe Humana, e colocá-la no seu devido lugar. É contestar a ideia que "nossa humanidade é uma desvantagem em vez de uma força" e criticar "a dependência cada vez maior de tecnologias construídas com a presunção da inferioridade humana e sua irrelevância", ainda segundo palavras de Rushkoff no referido livro.Em uma reportagem de Fernando Scheller intitulada "O desafio da tecnologia é ser útil", publicada na edição de 22 de junho de 2016 do jornal O Estado de S. Paulo, é atribuída à antropóloga digital Amber Case a seguinte afirmação: "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária." Concordo plenamente com ela. A postagem publicada no blog Lendo e opinando em 23 de agosto de 2016 reproduz a referida reportagem.Após elaborar quatro postagens intituladas Reflexões provocadas por "Os dilemas éticos da tecnologia", reler a postagem publicada em 14 de abril de 2023 tornou-se algo inevitável. O título da postagem? O futuro será off-line.
Nenhum comentário:
Postar um comentário