"Quando me dizem 'você é um utópico', digo: 'a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual'.
(Slavoj Zizek [1949], filósofo esloveno,
nascido na antiga Iugoslávia)
Assim que chegou à minha casa
para um almoço familiar no mais recente domingo em que se comemorou a Páscoa,
minha filha entregou-me uma parte de um jornal dizendo-me algo mais ou menos
assim: com saudades de ler um jornal impresso, tendo ido à rua ontem, comprei
um e ao lê-lo encontrei algo que acho que você gostará de ler. A parte do
jornal é o Segundo Caderno da edição de 08 de abril de 2023 do jornal O Globo e a matéria é a de capa do
caderno. Considerando que mais uma vez ela acertou, pois gostei demais da
matéria, e, achando que algumas pessoas que visitarem este blog também gostarão,
resolvi espalhá-la. Assinada por Ruan de Sousa Gabriel ela é reproduzida a
seguir.
O
futuro será off-line
Em 'Terra arrasada', o crítico de arte Jonathan Crary afirma que
não dá para consertar a internet e que é urgente pensar alternativas ao mundo
que nunca desliga
"Se for possível um futuro
habitável e partilhado em nosso planeta, será um futuro off-line", escreve
o crítico de arte americano Jonathan Crary na abertura de seu novo livro, "Terra
arrasada", lançado agora no Brasil pela editora Ubu. Professor da Universidade
Columbia, em Nova York, é um crítico feroz do "complexo internético",
descrito como o "aparato global absoluto para a dissolução da sociedade"
e "o equivalente digital da ilha de lixo que se expande rapidamente no
Oceano Pacífico".
Crary já havia metralhado a
internet em seu livro anterior, "24/7: capitalismo tardio e os fins do
sono", no qual argumenta que o sono é a última fronteira da expansão
capitalista, pois é o único momento em que não estamos trabalhando ou
consumindo (que é o que fazemos indefinidamente nas redes sociais).
No novo livro, Crary reconhece
que as mídias digitais servem para mobilizar os cidadãos em situações pontuais,
mas afirma que nenhuma das mudanças estruturais das quais depende a
sobrevivência do planeta será gestada na internet. A tecnologia digital, diz
ele, tem deteriorado nossa experiência sensível e é urgente pensar alternativas
a um mundo que nunca desliga.
Na entrevista a seguir, Crary
nega ser um tecnófobo e torce para que as novas gerações respondam ao cenário
de terra arrasada em que estamos. O título expandido do livro é "Terra arrasada - além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista".
Por que não dá para consertar a
internet?
Não é que não dê para consertar
a internet, é que o capitalismo é destrutivo, é o fim da linha para a vida no
planeta. O "complexo internético" é inseparável dos processos de
acumulação de capital em escala global. Podemos usar as ferramentas digitais
para mobilizações políticas pontuais. Mas é preciso levar em conta que a
internet é parte inerente da estrutura do capitalismo global. Há centenas de
livros que defendem reformar as tecnologias digitais. Para o bem e para o mal,
quis escrever um livro radical, que chacoalhe essas perspectivas reformistas.
Meu livro não é um manual.
Mas é impossível ler "Terra
arrasada" e "24/7" e
não pensar que devemos sair das redes sociais, usar menos a internet, dormir
mais...
A pergunta "o que fazer?"
deve ser respondida pelas novas gerações. Eu sou só um velho professor que quis
provocar as pessoas. Em nenhum momento no meu livro eu sugiro que as pessoas
parem de usar a internet. A questão é entender que são necessárias mudanças
estruturais, não só reformas. Não basta ajustar como usamos as redes.
Precisamos alargar nossa imaginação social, política e inter-humana. Nossa
capacidade de imaginar um mundo transformado corre perigo de desaparecer. Se
não conseguirmos imaginar maneiras diferentes de viver, não vamos enfrentar a
mudança climática que ameaça nosso futuro. Acreditar que podemos continuar
usando a tecnologia digital do mesmo jeito é uma fantasia perigosa.
Fica difícil imaginar se estamos
o tempo todo nas redes sociais, não?
Esse é o grande problema, Nos
Estados Unidos, há pouca resistência à promoção da cultura tecnológica, que
promove fantasias tipicamente americanas, como a autonomia e a liberdade
individuais, o empreendedorismo de si mesmo, a ilusão de que não dependemos de
ninguém apesar da persistência da desigualdade econômica. A internet foi
construída como um elemento unificador, que celebrava a fantasia de um mundo
globalizado graças ao livre mercado, o que não se sustenta mais. Com esse
livro, quis desafiar a suposição preguiçosa de que o conjunto de arranjos
tecnológicos que chamo de "complexo internético" está aqui para
ficar. A fragilidade desse complexo é inseparável da instabilidade do
capitalismo. Talvez estejamos diante de uma nova crise bancária, por exemplo.
Estamos assistindo ao colapso da expectativa de que instituições públicas e
privadas tratem os cidadãos como prioridade e não há previsão de reinstalarmos
um ambiente regulatório que preze pelo cuidado das pessoas.
Você argumenta que a internet
provoca um achatamento da sensibilidade. Como assim?
A própria qualidade da vida
humana está sendo degradada neste mundo que nunca desliga. A consequência disso
é terra arrasada, é um mundo erodido, significativamente danificado. Os
prejuízos não são só ambientais, mas também sociais. Somos encorajados a
interagir com telas durante todas as horas que passamos acordados, o que
elimina nossa possibilidade de sonhar acordado, de nos deslumbrar, de sentir a
textura da experiência. Imaginação se tornou fluxo contínuo e monetizado de
imagens e informação e temos até medo de desligá-lo. Se é assim, como vamos nos
engajar nas tarefas essenciais para evitar a catástrofe?
Como você responde a acusações
de ser um romântico pré-moderno que odeia a tecnologia?
Essa crítica vem de uma
falsificação das minhas ideias por parte de quem tem uma definição estreita de
tecnologia, reduzida aos produtos de grandes corporações como Apple, Facebook e
Microsoft, e que exclui muito da engenhosidade e inventividade humanas. É
absurdo me acusarem de ser contra a tecnologia quando se compreende o que essa
palavra significa historicamente. A História da civilização é a História do
emprego de diferentes tecnologias.
Você acusa a cultura dos
influenciadores de sabotar a juventude. Por quê?
O complexo internético se
esforça para transformar os jovens em consumidores previsíveis. O objetivo é
impedir a emergência de uma juventude como a dos anos 1960. É fácil menosprezar
e ridicularizar os anos 1960, subestimar quão ameaçador e desafiante foi aquele
período de tumulto, de rebelião da juventude.
'A internet transforma os jovens em consumidores previsíveis'
Você participou daquela rebelião?
Em 1968, eu tinha acabado de
entrar na Universidade Columbia, que era onde estavam os principais líderes da
Students for a Democratic Society (Estudantes
para uma Sociedade Democrática). Me engajei e participei do movimento
contra a Guerra do Vietnã até meados dos anos 1970. Nunca reneguei essa parte
do meu passado.
No livro, você diz que apesar de
estar integrada ao complexo internético, a música é um dos poucos espaços onde
os jovens ainda podem resistir. Por quê?
Sou professor há quase 30 anos,
convivo com jovens e percebo que, embora eles estejam saturados pela mídia de
massas, por filmes e videogames violentos, a música ainda permite a
autodescoberta. Talvez isso se deva à intangibilidade da música, ao fato de que
ela prescinde de imagens. A música não me parece estar a serviço de uma agenda
específica.
O que você ouvia quando era um
estudante pela democracia nos anos 1960?
Aquele foi um período
extraordinário! Tínhamos a fantasia de que a música também era poder. Mas a
esta altura, prefiro deixar essas preferências de tanto tempo atrás para mim
mesmo (risos). Me desculpe.
*************
Além de ser uma caixinha de
surpresas (como diz o narrador da saga de Joseph Climber) a vida é também uma
caixinha de coincidências de onde, repentinamente, pode sair alguma delas. Após
alguns anos sem comprar um jornal impresso, coincidentemente, minha filha comprou
um no qual encontrou algo para dar-me o que pensar... e espalhar. Obrigado,
Filha!
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