sábado, 20 de abril de 2024

Políticas hipócritas e Cinismo mortífero

Considerando o que é defendido na postagem publicada em 19 de dezembro de 2011 - "Todo ponto de vista é a vista de um ponto" - e o direito de poder olhar o que acontece no mundo a partir de pontos de vista diferentes daqueles que nos são impingidos por meios de comunicação a serviço dos que se consideram os donos do mundo, segue um elucidativo texto de Benoit Bréville, diretor do Le Monde Diplomatique, publicado na edição de outubro de 2023 do jornal Le Monde Diplomatique Brasil.
Cinismo em Lampedusa
Imigrantes se amontoam às portas do Velho Continente; os serviços de acolhimento transbordam; a direita denuncia, aos gritos, a invasão; a esquerda se divide; cada capital europeia rejeita a responsabilidade; em seguida, todo mundo passa a outra coisa, até a próxima "crise". Visto da Europa, o cenário é conhecido. E visto da África?
Quando jornalistas e dirigentes políticos se dão ao trabalho de evocar os países de saída, é tão somente para distinguir os "refugiados", que deixaram um Estado em guerra e mereceriam certa atenção, dos "imigrantes", cujas motivações econômicas não bastariam para justificar a hospitalidade. "Se as pessoas não são qualificadas para o asilo, como constatamos no atual momento para certas nacionalidades (é o caso dos costa-marfinenses, dos gambianos, dos senegaleses, dos tunisianos), [...] é preciso evidentemente enviá-los de volta a seu país", explicava nesses termos o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin, após o desembarque de 8 mil exilados em Lampedusa, na Itália (TF1, 19 set.).
As razões que podem levar um senegalês a abandonar seu país são geralmente formuladas pela mídia em termos tão vagos que perdem todo o sentido: "fugir da miséria", "encontrar um futuro melhor". No Senegal, essas palavras remetem a uma realidade tangível: aquela dos tratados de pesca que autorizam europeus e chineses a varrer os oceanos com seus barcos de arrastão, capazes de trazer, em uma única viagem, o que uma embarcação local recolhe em um ano; a da apropriação de terras, com seu cortejo de investidores estrangeiros que expulsam camponeses para melhor favorecer produtos de alto rendimento em detrimento de cultivos de subsistência - o amendoim em vez do sorgo e do milhete; a do aquecimento climático, que afeta as colheitas, com estações úmidas mais curtas, inundações e secas mais frequentes, o deserto que avança, o mar que sobe de nível, erode as costas, saliniza os solos; a da repressão política, orquestrada por um presidente, Macky Sall, amigo do governo francês.
Vistas da África, as políticas europeias brilham de tanta hipocrisia. Paralelamente aos discursos marciais, aos acordos, às convenções, serviços de informação organizam a migração de trabalhadores para preencher a penúria de mão de obra e compensar o envelhecimento da população na Europa. A França importa médicos senegaleses; a Itália faz apelo a operários da construção civil argelinos e costa-marfinenses; a Espanha recorre a trabalhadores sazonais marroquinos na agricultura e no turismo. A Alemanha, por sua vez, anunciou recentemente a abertura de cinco centros de recrutamento para trabalhadores altamente qualificados em Gana, no Marrocos, na Tunísia, no Egito e na Nigéria. Desse modo, analisa o sociólogo Aly Tandian, os países de origem cumprem a função de "incubadoras onde nascem, são educados e formados os especialistas, antes de partirem para outros destinos".
Os europeus vão às compras entre os diplomados e alimentam diversas calamidades; sofrendo esses desastres, e depois de tentarem várias outras soluções, os jovens devem se decidir a tomar o caminho do Velho Continente. Ao chegar a Lampedusa, encontram as portas fechadas. No mesmo momento, nas emissoras de televisão e de rádio do Senegal, a região italiana do Piemonte veicula um clipe em wolof: "Querer uma vida boa não deve levá-lo se sacrificar. A vida é preciosa, o mar é perigoso". E o cinismo europeu é mortífero.
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Segundo Benoit Bréville, "Visto da Europa, o cenário é conhecido. E visto da África? [...] Vistas da África, as políticas europeias brilham de tanta hipocrisia. [...] E o cinismo europeu é mortífero.". Sim, quando se olha de pontos diferentes as vistas que se tem são diferentes; muitas vezes, muito diferentes! Você tem alguma dúvida quanto a isso? Se tiver, sugiro o uso do instigante texto de Benoit como base para reflexões; se não tiver, também sugiro.

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