segunda-feira, 29 de abril de 2024

Reflexões provocadas por "Políticas hipócritas e Cinismo mortífero"

"Quando jornalistas e dirigentes políticos se dão ao trabalho de evocar os países de saída, é tão somente para distinguir os 'refugiados', que deixaram um Estado em guerra e mereceriam certa atenção, dos 'imigrantes', cujas motivações econômicas não bastariam para justificar a hospitalidade.", diz Benoit Bréville, diretor do Le Monde Diplomatique.
"Tão somente para distinguir os 'refugiados' dos 'imigrantes'", porém, tentar classificar todos como imigrantes, pois, segundo o que é dito no parágrafo acima, tal classificação os exime de oferecer "certa atenção que os refugiados mereceriam" e os legitima a negar "a hospitalidade que motivações econômicas não bastariam para justificar", eis o que leva jornalistas e dirigentes políticos a se darem ao trabalho de evocar os países de saída, e para enviarem de volta as indesejáveis pessoas não qualificadas.
"Se as pessoas não são qualificadas para o asilo, como constatamos no atual momento para certas nacionalidades (é o caso dos costa-marfinenses, dos gambianos, dos senegaleses, dos tunisianos), [...] é preciso evidentemente enviá-los de volta a seu país", explicava nesses termos o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin."

Ao fazer a afirmação acima, o ministro francês leva-me a indagar o que são "pessoas não qualificadas para o asilo". Indagação que, recorrendo a um trecho do texto de Bréville, respondo assim: são pessoas não qualificadas "para preencher a penúria de mão de obra e compensar o envelhecimento da população na Europa". Não, a intenção dos países europeus não é oferecer ajuda a pessoas não qualificadas, e sim receber ajuda de pessoas por eles qualificadas para solucionarem seus problemas de "penúria de mão de obra" como se pode deduzir a partir da leitura do seguinte trecho do texto de Bréville:

"A França importa médicos senegaleses; a Itália faz apelo a operários da construção civil argelinos e costa-marfinenses; a Espanha recorre a trabalhadores sazonais marroquinos na agricultura e no turismo. A Alemanha, por sua vez, anunciou recentemente a abertura de cinco centros de recrutamento para trabalhadores altamente qualificados em Gana, no Marrocos, na Tunísia, no Egito e na Nigéria. Desse modo, analisa o sociólogo Aly Tandian, os países de origem cumprem a função de 'incubadoras onde nascem, são educados e formados os especialistas, antes de partirem para outros destinos'.".

"Incubadoras onde nascem, são educados e formados os especialistas, antes de partirem para outros destinos". Ou seja, incubadoras africanas onde pessoas são qualificadas para "preencher a penúria de mão de obra e compensar o envelhecimento da população na Europa."

Sim, como diz Bréville, "Vistas da África, as políticas europeias brilham de tanta hipocrisia". Hipocrisia expressa pelos "termos tão vagos usados pela mídia para formular as razões que podem levar um senegalês a abandonar seu país - "fugir da miséria", "encontrar um futuro melhor" -, pois, segundo o diretor do Le Monde Diplomatique:

"No Senegal, essas palavras remetem a uma realidade tangível: aquela dos tratados de pesca que autorizam europeus e chineses a varrer os oceanos com seus barcos de arrastão, capazes de trazer, em uma única viagem, o que uma embarcação local recolhe em um ano; a da apropriação de terras, com seu cortejo de investidores estrangeiros que expulsam camponeses para melhor favorecer produtos de alto rendimento em detrimento de cultivos de subsistência - o amendoim em vez do sorgo e do milhete."

Ou seja, as verdadeiras razões que podem levar africanos a abandonarem seus países não são aquelas expressas nos vagos termos usados pela mídia, e sim a impossibilidade de neles subsistirem devida a atuação de predadores europeus. Impossibilidade de subsistência que leva os jovens a, "depois de tentarem várias outras soluções, decidirem tomar o caminho do Velho Continente", e ao lá chegarem encontrarem as portas fechadas, pois, na condição de explorador, o papel do Velho Continente não é servir aos explorados, e sim deles se servir.
"Ao chegar a Lampedusa, encontram as portas fechadas. No mesmo momento, nas emissoras de televisão e de rádio do Senegal, a região italiana do Piemonte veicula um clipe em wolof: 'Querer uma vida boa não deve levá-lo se sacrificar. A vida é preciosa, o mar é perigoso'. E o cinismo europeu é mortífero.", diz Bréville.
Para quem não sabe, e também para quem sabe, wolof é uma língua falada na África Ocidental, principalmente no Senegal, mas também na Gâmbia, Mauritânia, Guiné-Bissau e Mali.
Sim, "A vida é preciosa, o mar é perigoso" e é por isso que os africanos que conseguem chegar ao Velho Continente jamais deveriam voltar a enfrentar o mar sendo "enviados de volta a seu país", como defende o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin. Sim, como diz Benoit Bréville, diretor do Le Monde Diplomatique, "o cinismo europeu é mortífero".
Entrar livremente em outros países na condição de investidores; concorrer deslealmente com os trabalhadores desses países usando agressivas técnicas modernas; apropriar-se de terras; fechar as portas de seus países àqueles a quem inviabilizaram a subsistência nos deles e enviá-los de volta aos seus países advertindo-os que o mar é perigoso é, no meu entender, mais do que cinismo, é deboche. Tudo isso feito por países que se consideram desenvolvedores de algo que denominam civilização, o que leva-me a lembrar de uma frase que há no topo da capa do DVD de um filme intitulado Instinto: "Nada é mais selvagem que a civilização".
 
 

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