"A
diferença entre o remédio e o veneno está na dose", eis uma famosa
afirmação atribuída a Paracelso, pseudônimo de Philippus Aureolus Theophrastus
Bombastus von Hohenheim [1493 – 1541], médico e alquimista nascido na Suíça. Ou
seja, é a quantidade ingerida de uma determinada substância que define se ela
contribuirá para a cura ou para a morte de quem a ingeriu. Há inclusive
remédios feitos a partir de venenos ou que levem veneno em sua composição, pois
o que, realmente, torna algo um veneno é a dose, é o erro na dose.
Mutatis mutandis, trocando
"o remédio e o veneno" por "o que é benéfico e o que é
maléfico", no meu entender, a afirmação de Paracelso torna-se aplicável a uma
infinidade de "substâncias" encontráveis durante esse percurso que a
gente chama de vida. Ou seja, é a quantidade utilizada de cada uma de tais
"substâncias" que definirá se ela contribuirá para que se tenha uma
vida boa ou ruim.
Na dose certa, quase tudo na vida é benéfico; pois o maléfico está no excesso. Fora do quase tudo, existem algumas coisas para as quais, no meu entender, não existe dose certa. Dentre tais coisas, em uma curta relação feita sem pensar muito, destaco racismo, desigualdade social, machismo, misoginia e fundamentalismo.
Classificar coisas como benéficas ou maléficas, eis uma
prática muito comum entre a maioria dos integrantes da autodenominada espécie
inteligente do universo. Classificação que faz-me lembrar do símbolo do Yin
Yang. Por quê? Porque considerando que na parte branca do símbolo há um pequeno
círculo preto e na parte preta há um pequeno círculo branco, entendo que, sem fazer
qualquer juízo de valor sobre qual das duas cores do símbolo deve ser associada
a coisas benéficas e qual deve ser associada a coisas maléficas, ouso dizer o
seguinte. Assim como no símbolo do Yin Yang a parte branca contém em seu
interior um pouco de preto e a parte preta um pouco de branco, na vida as coisas
que são consideradas benéficas contêm um pouco de maléfico e as que são consideradas
maléficas contêm um pouco de benéfico. Ou seja, o que, realmente, torna uma
coisa maléfica é a dose, é o erro na dose.
O problema é
que nesta insana sociedade em que as coisas são rotuladas como se fossem inteiramente
benéficas ou inteiramente maléficas a maioria das pessoas faz o seguinte: procura
evitar as coisas maléficas e exagera nas benéficas. O resultado? Deixam de
aproveitar o que há de benéfico nas coisas rotuladas como maléficas e prejudicam-se
com o que há de maléfico nas coisas rotuladas como benéficas. A intenção desta
postagem é chamar atenção para tal equívoco classificatório e estimular o
interesse em descobrir qual é a dose certa em tudo o que se vier a fazer, pois,
no meu entender, agir assim é algo imprescindível para se viver uma vida da
qual não se tenha do que se queixar.
Segue uma pequena relação de exemplos de coisas
classificadas equivocadamente como inteiramente benéficas ou maléficas que
deveriam nos dar o que pensar.
Ajuda: na dose certa é
benéfica, pois contribui para que o ajudado supere uma dificuldade, se
fortaleça e se torne capaz de enfrentar novas dificuldades; em excesso torna o
ajudado alguém cada vez mais fraco, e consequentemente incapaz de lidar com
dificuldades futuras que inevitavelmente surgirão.
Amigos: Considerando que
amizade é algo que precisa de tempo para ser cultivado; que, sendo algo
fungível (que se consome após o uso), o tempo para cultivar uma amizade não
pode ser usado para cultivar outras; que a quantidade de tempo de que dispomos
é algo limitado, diferentemente do que o facebook
lhe faz acreditar, amigos é algo que só é possível ter na dose certa. Ultrapassada
a dose certa, o que há não é amizade, é ilusão de amizade. Pretender ter um
milhão de amigos é algo que, no meu entender, nem Roberto Carlos deveria pretender
mais.
Angústia: em excesso é
algo maléfico, pois derruba a pessoa; na dose certa é algo benéfico. Segundo a
psicanalista Vera Iaconelli, a angústia é uma janelinha para a pessoa se perguntar
sobre quem é, para conseguir se conhecer. Ainda segundo ela, a angústia é uma
matéria de trabalho muito importante para os psicanalistas. Quando o paciente
chega angustiado é um momento precioso, é um momento em que o paciente está um
pouco mais próximo de si e, consequentemente, favorável para que o psicanalista
possa atuar.
Beleza: na dose certa colore a vida; em
excesso escurece a vida pode levar à morte. Como assim? Em busca de beleza por
meio de cirurgias muitas pessoas encontram a morte! E ao associar excesso de
beleza e morte, eu não deveria deixar de trazer para esta postagem o mito de Narciso, uma das histórias mais famosas da
mitologia grega. Segundo o mito, Narciso era tão belo e tão vaidoso que, após
desprezar inúmeras pretendentes, acabou se apaixonando pelo próprio reflexo.
Morreu de fome e sede à beira da fonte de água onde via sua imagem refletida.
Capacidade de adaptação
a tudo: Considerada como uma vantagem do ser humano
em relação aos demais animais, na dose certa é benéfica, pois possibilita-nos
superar dificuldades que inevitavelmente surgem durante a vida; em excesso pode
ser considerada maléfica. Em um antigo programa de entrevistas apresentado por
uma emissora de televisão, ouvi o extraordinário Sebastião Salgado dizer algo
mais ou menos assim: a capacidade do ser humano adaptar-se a tudo é vista como
uma vantagem, porém ela pode ser vista também como uma desvantagem: a de
adaptar-se a coisas contra as quais ele deveria se rebelar. Concordo plenamente
com ele.
Comidas e bebidas: excetuando as pessoas cujo organismo apresente intolerância a
determinada coisa, entendo que, na dose certa, nenhuma comida ou
bebida seja algo maléfico. O maléfico estará na dose ingerida,
independentemente da qualidade do que for ingerido.
Dificuldades colocadas em tarefas educativas: na dose certa podem ser um desafio
que estimule a superação; em excesso podem levar ao desânimo em superá-las.
Medo: na dose certa
protege; em excesso acovarda.
Riso: na dose certa colore a vida; em excesso, pode ser
maléfico. Como diz Frejat em uma conhecida canção intitulada Amor pra recomeçar, "rir é bom, mas
rir de tudo é desespero". E desespero é algo maléfico.
Tecnologia: na dose certa, é
benéfica, pois pode facilitar bastante a vida; em excesso, é algo maléfico. Questionada
sobre tecnologia, em um episódio do programa Bem Juntinhos, apresentado no GNT, a psicanalista Vera Iaconelli disse
o seguinte: "A gente tem que lembrar que esses aparelhos não foram feitos
para a bem da humanidade, eles foram feitos para vender. O celular nada mais é
do que um grande Shopping Center onde você está sempre consumindo algo. E eles
afetam o cérebro, eles têm uma coisa viciante nisso. Capturam a gente numa
fantasia de que tem sempre alguém vivendo uma vida magnífica, fazendo coisas maravilhosas,
eu estou aqui na minha vidinha de todo dia."
Em uma
reportagem de Fernando Scheller intitulada "O
desafio da tecnologia é ser útil", publicada na edição de 22 de junho
de 2016 do jornal O Estado de S. Paulo, é atribuída à antropóloga
digital Amber Case a seguinte afirmação: "A
quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima
necessária." No meu entender, em relação à tecnologia, Amber Case definiu
qual é a dose certa: "É a mínima necessária". A postagem publicada em 23 de agosto de 2016 no
blog Lendo e opinando reproduz a referida reportagem.
Tolerância: na dose certa é
algo benéfico, pois sem tolerância é simplesmente impossível a convivência
entre esses complicados seres da autodenominada espécie inteligente do universo;
em excesso leva-nos a tolerar coisas simplesmente intoleráveis, pois como disse
Albert Einstein, "Existem
apenas duas coisas infinitas - o universo e a estupidez humana. E não tenho
tanta certeza quanto ao universo." Ou seja, tolerância é algo que tem
limite.
Tristeza: em excesso pode
ser acachapante e impedir de se levar a vida; na dose certa é algo benéfico. Segundo
a psicanalista Vera Iaconelli, a tristeza é humana, faz parte da vida, sem
tristeza não há vida. Vivemos numa tirania da felicidade que impede o uso
correto da tristeza.
Tamanho
de postagens e intervalo de tempo entre elas: na dose certa pode
estimular os leitores a continuarem a visitar o blog; na dose errada pode
levá-los a deixarem de visitá-lo. Dito isto, fico por aqui nesta postagem,
pensando em publicar uma nova na próxima semana.
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