sábado, 24 de fevereiro de 2024

A dose certa

"A diferença entre o remédio e o veneno está na dose", eis uma famosa afirmação atribuída a Paracelso, pseudônimo de Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim [1493 – 1541], médico e alquimista nascido na Suíça. Ou seja, é a quantidade ingerida de uma determinada substância que define se ela contribuirá para a cura ou para a morte de quem a ingeriu. Há inclusive remédios feitos a partir de venenos ou que levem veneno em sua composição, pois o que, realmente, torna algo um veneno é a dose, é o erro na dose.
Mutatis mutandis, trocando "o remédio e o veneno" por "o que é benéfico e o que é maléfico", no meu entender, a afirmação de Paracelso torna-se aplicável a uma infinidade de "substâncias" encontráveis durante esse percurso que a gente chama de vida. Ou seja, é a quantidade utilizada de cada uma de tais "substâncias" que definirá se ela contribuirá para que se tenha uma vida boa ou ruim.

Na dose certa, quase tudo na vida é benéfico; pois o maléfico está no excesso. Fora do quase tudo, existem algumas coisas para as quais, no meu entender, não existe dose certa. Dentre tais coisas, em uma curta relação feita sem pensar muito, destaco racismo, desigualdade social, machismo, misoginia e fundamentalismo.

Classificar coisas como benéficas ou maléficas, eis uma prática muito comum entre a maioria dos integrantes da autodenominada espécie inteligente do universo. Classificação que faz-me lembrar do símbolo do Yin Yang. Por quê? Porque considerando que na parte branca do símbolo há um pequeno círculo preto e na parte preta há um pequeno círculo branco, entendo que, sem fazer qualquer juízo de valor sobre qual das duas cores do símbolo deve ser associada a coisas benéficas e qual deve ser associada a coisas maléficas, ouso dizer o seguinte. Assim como no símbolo do Yin Yang a parte branca contém em seu interior um pouco de preto e a parte preta um pouco de branco, na vida as coisas que são consideradas benéficas contêm um pouco de maléfico e as que são consideradas maléficas contêm um pouco de benéfico. Ou seja, o que, realmente, torna uma coisa maléfica é a dose, é o erro na dose.
O problema é que nesta insana sociedade em que as coisas são rotuladas como se fossem inteiramente benéficas ou inteiramente maléficas a maioria das pessoas faz o seguinte: procura evitar as coisas maléficas e exagera nas benéficas. O resultado? Deixam de aproveitar o que há de benéfico nas coisas rotuladas como maléficas e prejudicam-se com o que há de maléfico nas coisas rotuladas como benéficas. A intenção desta postagem é chamar atenção para tal equívoco classificatório e estimular o interesse em descobrir qual é a dose certa em tudo o que se vier a fazer, pois, no meu entender, agir assim é algo imprescindível para se viver uma vida da qual não se tenha do que se queixar.
Segue uma pequena relação de exemplos de coisas classificadas equivocadamente como inteiramente benéficas ou maléficas que deveriam nos dar o que pensar.
Ajuda: na dose certa é benéfica, pois contribui para que o ajudado supere uma dificuldade, se fortaleça e se torne capaz de enfrentar novas dificuldades; em excesso torna o ajudado alguém cada vez mais fraco, e consequentemente incapaz de lidar com dificuldades futuras que inevitavelmente surgirão.
Amigos: Considerando que amizade é algo que precisa de tempo para ser cultivado; que, sendo algo fungível (que se consome após o uso), o tempo para cultivar uma amizade não pode ser usado para cultivar outras; que a quantidade de tempo de que dispomos é algo limitado, diferentemente do que o facebook lhe faz acreditar, amigos é algo que só é possível ter na dose certa. Ultrapassada a dose certa, o que há não é amizade, é ilusão de amizade. Pretender ter um milhão de amigos é algo que, no meu entender, nem Roberto Carlos deveria pretender mais.
Angústia: em excesso é algo maléfico, pois derruba a pessoa; na dose certa é algo benéfico. Segundo a psicanalista Vera Iaconelli, a angústia é uma janelinha para a pessoa se perguntar sobre quem é, para conseguir se conhecer. Ainda segundo ela, a angústia é uma matéria de trabalho muito importante para os psicanalistas. Quando o paciente chega angustiado é um momento precioso, é um momento em que o paciente está um pouco mais próximo de si e, consequentemente, favorável para que o psicanalista possa atuar.
Beleza: na dose certa colore a vida; em excesso escurece a vida pode levar à morte. Como assim? Em busca de beleza por meio de cirurgias muitas pessoas encontram a morte! E ao associar excesso de beleza e morte, eu não deveria deixar de trazer para esta postagem o mito de Narciso, uma das histórias mais famosas da mitologia grega. Segundo o mito, Narciso era tão belo e tão vaidoso que, após desprezar inúmeras pretendentes, acabou se apaixonando pelo próprio reflexo. Morreu de fome e sede à beira da fonte de água onde via sua imagem refletida.
Capacidade de adaptação a tudo: Considerada como uma vantagem do ser humano em relação aos demais animais, na dose certa é benéfica, pois possibilita-nos superar dificuldades que inevitavelmente surgem durante a vida; em excesso pode ser considerada maléfica. Em um antigo programa de entrevistas apresentado por uma emissora de televisão, ouvi o extraordinário Sebastião Salgado dizer algo mais ou menos assim: a capacidade do ser humano adaptar-se a tudo é vista como uma vantagem, porém ela pode ser vista também como uma desvantagem: a de adaptar-se a coisas contra as quais ele deveria se rebelar. Concordo plenamente com ele.
Comidas e bebidas: excetuando as pessoas cujo organismo apresente intolerância a determinada coisa, entendo que, na dose certa, nenhuma comida ou bebida seja algo maléfico. O maléfico estará na dose ingerida, independentemente da qualidade do que for ingerido.
Dificuldades colocadas em tarefas educativas: na dose certa podem ser um desafio que estimule a superação; em excesso podem levar ao desânimo em superá-las.
Medo: na dose certa protege; em excesso acovarda.
Riso: na dose certa colore a vida; em excesso, pode ser maléfico. Como diz Frejat em uma conhecida canção intitulada Amor pra recomeçar, "rir é bom, mas rir de tudo é desespero". E desespero é algo maléfico.
Tecnologia: na dose certa, é benéfica, pois pode facilitar bastante a vida; em excesso, é algo maléfico. Questionada sobre tecnologia, em um episódio do programa Bem Juntinhos, apresentado no GNT, a psicanalista Vera Iaconelli disse o seguinte: "A gente tem que lembrar que esses aparelhos não foram feitos para a bem da humanidade, eles foram feitos para vender. O celular nada mais é do que um grande Shopping Center onde você está sempre consumindo algo. E eles afetam o cérebro, eles têm uma coisa viciante nisso. Capturam a gente numa fantasia de que tem sempre alguém vivendo uma vida magnífica, fazendo coisas maravilhosas, eu estou aqui na minha vidinha de todo dia."
Em uma reportagem de Fernando Scheller intitulada "O desafio da tecnologia é ser útil", publicada na edição de 22 de junho de 2016 do jornal O Estado de S. Paulo, é atribuída à antropóloga digital Amber Case a seguinte afirmação: "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária." No meu entender, em relação à tecnologia, Amber Case definiu qual é a dose certa: "É a mínima necessária". A postagem publicada em 23 de agosto de 2016 no blog Lendo e opinando reproduz a referida reportagem.
Tolerância: na dose certa é algo benéfico, pois sem tolerância é simplesmente impossível a convivência entre esses complicados seres da autodenominada espécie inteligente do universo; em excesso leva-nos a tolerar coisas simplesmente intoleráveis, pois como disse Albert Einstein, "Existem apenas duas coisas infinitas - o universo e a estupidez humana. E não tenho tanta certeza quanto ao universo." Ou seja, tolerância é algo que tem limite.
Tristeza: em excesso pode ser acachapante e impedir de se levar a vida; na dose certa é algo benéfico. Segundo a psicanalista Vera Iaconelli, a tristeza é humana, faz parte da vida, sem tristeza não há vida. Vivemos numa tirania da felicidade que impede o uso correto da tristeza.
Tamanho de postagens e intervalo de tempo entre elas: na dose certa pode estimular os leitores a continuarem a visitar o blog; na dose errada pode levá-los a deixarem de visitá-lo. Dito isto, fico por aqui nesta postagem, pensando em publicar uma nova na próxima semana.

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