"O silêncio é um elo entre mundos. Nada é tão essencial quanto o silêncio. Nossa alma precisa dele para se reconectar com as coisas que realmente importam."
(Robert Fripp)
"A linha do futuro será o contrarrumor, rumores agradáveis para se sobrepor aos desagradáveis (uma vez que o silêncio é melhor esquecer), (...) mas não se trata do futuro: é o que já está acontecendo. Basta pensar nas músicas de aeroporto, suaves e invasivas, que servem para amenizar o barulho dos aviões. Mas dois decibéis ruins somados a um decibel bom não fazem um decibel e meio, mas três decibéis.", diz Umberto Eco.
Na linha do que é dito na
última frase do parágrafo anterior, dois copos d'água ruins somados a um copo
d'água potável não fazem um copo d'água e meio, mas três copos d'água ruins. E
assim por diante, sempre que se somar algo bom a algo ruim o resultado é algo
que ainda presta, pois para se obter algo que preste a operação correta é
outra. Em vez de somar algo bom ao que não presta, o que deve ser feito é
subtrair o que não presta. O problema é que nesta insana sociedade, a maioria
de seus integrantes satisfaz-se com a soma. Satisfação que, no meu entender, tem
até uma expressão que a representa. Qual é a expressão? O ótimo é inimigo do
bom. A última chefe com quem trabalhei adorava essa expressão, e eu a detestava.
Não, não era a chefe que eu detestava, era a expressão.
"O silêncio é um bem que está desaparecendo até dos locais a ele consagrados. (...) compareci a uma grande igreja de Milão, que convidou excelentes cantores de gospels, os quais gradativamente envolveram os fiéis numa participação, (...) que talvez fosse música mística, mas que, em matéria de decibéis, parecia mais um círculo do inferno. A certa altura, fui embora murmurando 'non in commotione, non in commotione Dominus' (quer dizer, Deus pode até estar em todos os lugares, mas dificilmente será encontrado em meio à balbúrdia).", diz Umberto Eco.
O que me impressiona no "desaparecimento
do silêncio até dos locais a ele consagrados" é que tal desaparecimento é
acompanhado pelo aparecimento de, cada vez mais, locais a ele supostamente
consagrados! É impressionante a facilidade com que se criam tais locais neste
país! Locais onde, embora seja apregoada a recomendação de seguir os ensinamentos
contidos em um certo livro, o que se vê são demonstrações evidentes do entendimento
equivocado de um trecho nele apresentado que é reproduzido nos dois próximos
parágrafos.
"Quando orardes, não vos assemelheis aos hipócritas, que, afetadamente, oram de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas para serem vistos pelos homens. – Digo-vos, em verdade, que eles já receberam sua recompensa. – Quando quiserdes orar, entrai para o vosso quarto e, fechada a porta, orai a vosso Pai em secreto; e vosso Pai, que vê o que se passa em secreto, vos dará a recompensa.Não cuideis de pedir muito nas vossas preces, como fazem os pagãos, os quais imaginam que pela multiplicidade das palavras é que serão atendidos. Não vos torneis semelhantes a eles, porque vosso Pai sabe do que é que tendes necessidade, antes que lho peçais. (Mateus, cap. VI, vv. 5 a 8.)"
Contatar-se
com o Criador, "em seu quarto, com a porta fechada", ou seja, em
silêncio, eis a recomendação contida no livro que frequentadores de locais
supostamente consagrados ao silêncio que possibilite tal contato dizem seguir.
Berrar como se o Criador fosse surdo, eis o que é feito pela maioria dos
frequentadores de tais locais. "Pai, perdoai-os ... eles não sabem o que
fazem". E haja perdão!
Locais em que nem é necessário
comparecer para fazer a mesma constatação
feita por Umberto Eco em seu "comparecimento a uma grande igreja de Milão.
Que a música lá cantada talvez fosse mística, mas que, em matéria de decibéis,
parecia mais um círculo do inferno." Afinal, tal constatação é algo
que pode ser feito, simplesmente, passando em frente a tais locais. E para quem
residir próximo a eles, até mesmo sem sair de suas casas. Sim, como acrescenta Umberto
Eco, "Deus pode até estar em todos os lugares, mas dificilmente será
encontrado em meio à balbúrdia".
"Nos hotéis americanos não há nenhum quarto que não retumbe de máquinas ansiosas e ansiogênicas.", diz Umberto Eco.
Ao falar em "máquinas
ansiosas e ansiogênicas", Umberto Eco leva-me a fazer a seguinte indagação: Será que a
autodenominada espécie inteligente do
universo será capaz de inventar alguma máquina mais ansiogênica do que um smartphone; um telefone inteligente (sic)?
"Ao nosso redor, vemos pessoas que, aterrorizadas pelo silêncio, buscam rumores amigos no celular.", diz Umberto Eco.
Ao falar em "pessoas que,
aterrorizadas pelo silêncio, buscam rumores amigos no celular.", Umberto
Eco leva-me a comparar suas palavras com a epígrafe desta postagem: "O silêncio é um elo entre mundos. Nada
é tão essencial quanto o silêncio. Nossa alma precisa dele para se reconectar com
as coisas que realmente importam." Comparação que leva-me a fazer a seguinte indagação. Será que aterrorizar-se
por algo que "Nossa alma precisa
para se reconectar com as coisas que realmente importam" tem alguma coisa
a ver com a caótica situação em que está imersa uma espécie que se autodenomina
a inteligente do universo?
"Talvez as gerações futuras estejam mais adaptadas ao rumor, mas, segundo, tudo o que sei sobre evolução das espécies, estes processos de adaptação costumam durar milênios e, para um percentual de indivíduos que se adaptam, milhares morrem pelo caminho.", diz Umberto Eco.
E quando Umberto Eco diz "Talvez
as gerações futuras estejam mais adaptadas ao rumor", vem-me à lembrança
algo que ouvi o extraordinário Sebastião Salgado dizer em um antigo programa de
entrevistas, e que é mais ou menos assim: a capacidade do ser humano adaptar-se
a tudo é vista como uma vantagem, porém ela pode ser vista também como uma
desvantagem: a de adaptar-se a coisas contra as quais ele deveria se rebelar.
Concordo plenamente com ele. Até porque, como diz Umberto Eco, "processos
de adaptação costumam durar milênios e, para um percentual de indivíduos que se
adaptam, milhares morrem pelo caminho."
"O silêncio está prestes a se tornar um bem caríssimo e, de fato, só está à disposição de pessoas abastadas que podem pagar mansões em meio ao verde ou de místicos da montanha com mochilas nas costas, que ficam tão inebriados pelos silêncios incontaminados das alturas que perdem a cabeça e acabam caindo em alguma fenda, de modo que não demora para que toda a área seja poluída pelo ronco dos helicópteros dos socorristas."
Ao diminuto grupo citado por
Umberto Eco como o das pessoas para quem "o silêncio pode estar à
disposição", eu acrescento as pessoas que, no meu entender, compõem outro
diminuto grupo. Que grupo é esse? O das pessoas que, embora não sejam tão
abastadas a ponto de poderem pagar mansões em meio ao verde, são
suficientemente abastadas para poderem pagar moradias mais simples em cidades
menores e estejam suficientemente dispostas a trocar uma vida insana em uma
cidade grande por uma vida mais significativa em uma cidade menor.
"Ainda vamos chegar ao momento em que aqueles que não aguentam mais o barulho poderão comprar pacotes de silêncio, uma hora num quarto forrado como o de Proust ao preço de uma poltrona no Scala de Milão.", diz Umberto Eco.
Lembrando que a crônica que
provocou estas reflexões foi publicada há vinte e três anos, cabe dizer aqui
que o momento a que se refere Umberto Eco já ocorreu há muito tempo. Embora eu
seja péssimo para calcular o tempo transcorrido desde a leitura de uma notícia
que eu não tenha anotado a data, a compra de pacotes de silêncio é algo que já
vi noticiado como tendo ocorrido nos Estados Unidos, há mais de dez anos.
"O preço deste silêncio será a renúncia ao contato com os próprios semelhantes. É, aliás, o que faziam os Padres do Deserto.", eis o parágrafo final da instigante crônica de Umberto Eco.
Ao afirmar
que "O preço deste silêncio será a renúncia ao contato com os próprios
semelhantes.", Umberto Eco leva-me a fazer a seguinte indagação. Será que
tal renúncia será, realmente, "ao contato
com os próprios semelhantes"? Ou a referida
renúncia será ao contato com os impróprios
semelhantes? Quem são os impróprios semelhantes?
São os indivíduos incapazes de enxergar todas as pessoas como semelhantes. Os indivíduos
que, em conformidade com sua visão deturpada, recorrem a um sinistro conceito
de meritocracia para justificar sua pretensão a um tratamento diferenciado que
garanta apenas a si mesmos o acesso a tudo o que houver de bom e de melhor nesta
sociedade desigual e excludente. Nossa! Há momentos em que chego a assustar-me com
as reflexões que me são provocadas por algumas das coisas que leio!
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