domingo, 7 de maio de 2023

Compraremos pacotes de silêncio?

 "O silêncio proporciona ao ser a possibilidade de enxergar a vida por dentro."

(Trigueirinho)
Prosseguindo com a prática de publicar mensagens alusivas a datas comemorativas que eu considere "datas reflexivas" e concordando com Mario Sergio Cortella quando diz que "Cabe destacar que nem tudo que vem do passado é ultrapassado. Muita coisa que vem do passado precisa ser levada adiante.", neste Dia do Silêncio, segue um texto extraído do livro Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma sociedade líquida de autoria de Umberto Eco.
Composto de uma coleção de crônicas publicadas entre 2000 e 2015, Pape Satàn Aleppe é o derradeiro livro de Umberto Eco (1932 – 2016), publicado no derradeiro ano de sua passagem por esta dimensão. O próximo parágrafo reproduz o último parágrafo da Introdução.
"Duas palavrinhas sobre o título. A citação é evidentemente dantesca ('Pape Satàn, pape Satàn aleppe', Inferno, VII, 1), mas como se sabe, embora uma profusão de comentaristas tenha tentado encontrar um sentido para o verso, a maior parte deles concluiu que não tem nenhum significado preciso. Em todo caso, pronunciadas por Pluto, estas palavras confundem as ideias e podem se prestar a qualquer diabrura. Achei, portanto, oportuno usá-las como título desta coletânea que, menos por culpa minha do que por culpa dos tempos, é desconexa, vai do galo ao asno – como diriam os franceses – e reflete a natureza líquida destes quinze anos."
A crônica selecionada para esta postagem tem dois de seus parágrafos (o antepenúltimo e o penúltimo) reproduzidos na quarta capa do livro, foi publicada em 2000, e vinte e três anos depois, já tendo a indagação que a intitula respondida, permanece, no meu entender, ainda tremendamente atual.
Compraremos pacotes de silêncio?
Em um de seus últimos artigos na revista Panorama, Adriano Sofri previa que (uma vez que o silêncio era melhor esquecer), a linha do futuro será o contrarrumor, rumores agradáveis para se sobrepor aos desagradáveis. A ideia evoca o Gog de Papini, mas não se trata do futuro: é o que já está acontecendo. Basta pensar nas músicas de aeroporto, suaves e invasivas, que servem para amenizar o barulho dos aviões. Mas dois decibéis ruins somados a um decibel bom não fazem um decibel e meio, mas três decibéis. A emenda é pior que o soneto.
O silêncio é um bem que está desaparecendo até dos locais a ele consagrados. Não sei o que acontece nos mosteiros tibetanos, mas compareci a uma grande igreja de Milão, que convidou excelentes cantores de gospels, os quais gradativamente envolveram os fiéis numa participação, com efeitos de discoteca de Rimini, que talvez fosse música mística, mas que, em matéria de decibéis, parecia mais um círculo do inferno. A certa altura, fui embora murmurando "non in commotione, non in commotione Dominus" (quer dizer, Deus pode até estar em todos os lugares, mas dificilmente será encontrado em meio à balbúrdia).
Nossa geração dançava ao som da música sussurrante de Frank Sinatra e Perry Como, esta precisa de ecstasy para suportar os níveis sonoros do sábado à noite. Ouve música nos elevadores, passeia com ela num fone de ouvido, ouve ao andar de carro (junto com o ronco do motor), trabalha com fundo musical enquanto o rumor do tráfego entra pela janela do escritório. Nos hotéis americanos não há nenhum quarto que não retumbe de máquinas ansiosas e ansiogênicas. Ao nosso redor, vemos pessoas que, aterrorizadas pelo silêncio, buscam rumores amigos no celular.
Talvez as gerações futuras estejam mais adaptadas ao rumor, mas, segundo, tudo o que sei sobre evolução das espécies, estes processos de adaptação costumam durar milênios e, para um percentual de indivíduos que se adaptam, milhares morrem pelo caminho. Depois do belo "domingo a pé" de 16 de janeiro, quando nas grandes cidades as pessoas se locomoviam a cavalo ou de patins, Giovani Raboni observou no Corriere que os cidadãos giravam pelas ruas desfrutando do mágico silêncio inesperadamente reencontrado. É verdade. Mas quantos foram caminhar na rua desfrutando do silêncio e quantos ficaram em casa recostados no sofá com a televisão no volume máximo?
O silêncio está prestes a se tornar um bem caríssimo e, de fato, só está à disposição de pessoas abastadas que podem pagar mansões em meio ao verde ou de místicos da montanha com mochilas nas costas, que ficam tão inebriados pelos silêncios incontaminados das alturas que perdem a cabeça e acabam caindo em alguma fenda, de modo que não demora para que toda a área seja poluída pelo ronco dos helicópteros dos socorristas.
Ainda vamos chegar ao momento em que aqueles que não aguentam mais o barulho poderão comprar pacotes de silêncio, uma hora num quarto forrado como o de Proust ao preço de uma poltrona no Scala de Milão. Como réstia de esperança, pois infinitas são as astúcias da Razão, observo que – à exceção dos que usam o computador para baixar músicas barulhentíssimas – todos os outros poderão encontrar o silêncio justamente diante da tela luminosa, de dia e de noite: basta usar o controle e desligar o áudio.
O preço deste silêncio será a renúncia ao contato com os próprios semelhantes. É, aliás, o que faziam os Padres do Deserto.
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Será que transcorridas mais de duas décadas a crônica de Umberto Eco ainda provoca reflexões?

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