"O silêncio proporciona ao ser a possibilidade de enxergar a vida por dentro."
(Trigueirinho)
Prosseguindo
com a prática de publicar mensagens alusivas a datas comemorativas que eu
considere "datas reflexivas" e concordando com Mario Sergio Cortella
quando diz que "Cabe destacar que
nem tudo que vem do passado é ultrapassado. Muita coisa que vem do passado
precisa ser levada adiante.", neste Dia do Silêncio, segue um texto extraído do livro Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma
sociedade líquida de autoria de Umberto Eco.
Composto de uma coleção de crônicas publicadas
entre 2000 e 2015, Pape Satàn Aleppe é o derradeiro
livro de Umberto Eco (1932 – 2016), publicado no derradeiro ano de sua passagem
por esta dimensão. O próximo parágrafo reproduz o último parágrafo da Introdução.
"Duas palavrinhas sobre o título. A citação é evidentemente dantesca ('Pape Satàn, pape Satàn aleppe', Inferno, VII, 1), mas como se sabe, embora uma profusão de comentaristas tenha tentado encontrar um sentido para o verso, a maior parte deles concluiu que não tem nenhum significado preciso. Em todo caso, pronunciadas por Pluto, estas palavras confundem as ideias e podem se prestar a qualquer diabrura. Achei, portanto, oportuno usá-las como título desta coletânea que, menos por culpa minha do que por culpa dos tempos, é desconexa, vai do galo ao asno – como diriam os franceses – e reflete a natureza líquida destes quinze anos."
A crônica selecionada para esta postagem tem dois
de seus parágrafos (o antepenúltimo e o penúltimo) reproduzidos na quarta capa
do livro, foi publicada em 2000, e vinte e três anos depois, já tendo a indagação que a
intitula respondida, permanece, no meu entender, ainda tremendamente
atual.
Compraremos pacotes de silêncio?
Em um de
seus últimos artigos na revista Panorama,
Adriano Sofri previa que (uma vez que o silêncio era melhor esquecer), a linha
do futuro será o contrarrumor, rumores agradáveis para se sobrepor aos
desagradáveis. A ideia evoca o Gog de
Papini, mas não se trata do futuro: é o que já está acontecendo. Basta pensar
nas músicas de aeroporto, suaves e invasivas, que servem para amenizar o
barulho dos aviões. Mas dois decibéis ruins somados a um decibel bom não fazem
um decibel e meio, mas três decibéis. A emenda é pior que o soneto.
O silêncio
é um bem que está desaparecendo até dos locais a ele consagrados. Não sei o que
acontece nos mosteiros tibetanos, mas compareci a uma grande igreja de Milão,
que convidou excelentes cantores de gospels,
os quais gradativamente envolveram os fiéis numa participação, com efeitos de
discoteca de Rimini, que talvez fosse música mística, mas que, em matéria de
decibéis, parecia mais um círculo do inferno. A certa altura, fui embora
murmurando "non in commotione, non
in commotione Dominus" (quer dizer, Deus pode até estar em todos os
lugares, mas dificilmente será encontrado em meio à balbúrdia).
Nossa
geração dançava ao som da música sussurrante de Frank Sinatra e Perry Como,
esta precisa de ecstasy para suportar
os níveis sonoros do sábado à noite. Ouve música nos elevadores, passeia com
ela num fone de ouvido, ouve ao andar de carro (junto com o ronco do motor),
trabalha com fundo musical enquanto o rumor do tráfego entra pela janela do
escritório. Nos hotéis americanos não há nenhum quarto que não retumbe de
máquinas ansiosas e ansiogênicas. Ao nosso redor, vemos pessoas que, aterrorizadas
pelo silêncio, buscam rumores amigos no celular.
Talvez as
gerações futuras estejam mais adaptadas ao rumor, mas, segundo, tudo o que sei
sobre evolução das espécies, estes processos de adaptação costumam durar
milênios e, para um percentual de indivíduos que se adaptam, milhares morrem
pelo caminho. Depois do belo "domingo a pé" de 16 de janeiro, quando
nas grandes cidades as pessoas se locomoviam a cavalo ou de patins, Giovani
Raboni observou no Corriere que os
cidadãos giravam pelas ruas desfrutando do mágico silêncio inesperadamente
reencontrado. É verdade. Mas quantos foram caminhar na rua desfrutando do
silêncio e quantos ficaram em casa recostados no sofá com a televisão no volume
máximo?
O silêncio
está prestes a se tornar um bem caríssimo e, de fato, só está à disposição de
pessoas abastadas que podem pagar mansões em meio ao verde ou de místicos da
montanha com mochilas nas costas, que ficam tão inebriados pelos silêncios
incontaminados das alturas que perdem a cabeça e acabam caindo em alguma fenda,
de modo que não demora para que toda a área seja poluída pelo ronco dos
helicópteros dos socorristas.
Ainda
vamos chegar ao momento em que aqueles que não aguentam mais o barulho poderão
comprar pacotes de silêncio, uma hora num quarto forrado como o de Proust ao
preço de uma poltrona no Scala de Milão. Como réstia de esperança, pois
infinitas são as astúcias da Razão, observo que – à exceção dos que usam o
computador para baixar músicas barulhentíssimas – todos os outros poderão
encontrar o silêncio justamente diante da tela luminosa, de dia e de noite:
basta usar o controle e desligar o áudio.
O preço deste
silêncio será a renúncia ao contato com os próprios semelhantes. É, aliás, o
que faziam os Padres do Deserto.
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Será
que transcorridas mais de duas décadas a crônica de Umberto Eco ainda provoca
reflexões?
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