quarta-feira, 1 de março de 2023

Reflexões provocadas por "O último trabalhador" (final)

Continuação de 17 de fevereiro

"Em primeiro lugar, só havia um emprego, um único emprego, de supertrabalhador, o que simplesmente neutralizava sua capacidade reivindicatória.", diz Moacyr Scliar em seu instigante texto ficcional.
"Neutralizar a capacidade reivindicatória"! Será que, em um mundo onde o lucro econômico é colocado acima de tudo, existe algo que a imensa maioria dos empregadores deseje mais do que neutralizar a capacidade reivindicatória dos trabalhadores? Será que quanto maior for o índice de desemprego maior será também a possibilidade de neutralizar tal capacidade? Sendo assim, será que um índice de desemprego cada vez maior é algo almejado pelos empregadores? Será que, embora prometa gerar novos tipos de empregos, o que os avanços tecnológicos mais produzem é um estupendo aumento do desemprego? Será que a extinção de uma quantidade absurda de empregos poderá implicar na própria extinção de uma quantidade igualmente absurda de seres desta dimensão deste planeta? Será que faz sentido incluir aqui alguns "será"s extraídos de uma linda canção da Legião Urbana e reproduzidos a seguir?
"Será que é imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?"
Vencer (na condição de trabalhadores) a imensa luta para conseguir subsistir em um planeta onde, como dito na postagem anterior, existe um monstruoso projeto de extinção de 4/5 de sua população.
"Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que vamos ter que responder pelos erros a mais, eu e você?" Erros como o de não enxergar que a primeira condição para possibilitar a ocorrência de uma tragédia é acreditar que seja impossível ela ocorrer. Você conhece a história do Titanic, um navio que por ter sido considerado inafundável não foi preparado para enfrentar um possível naufrágio e, consequentemente, deu no que deu? Pois é.
"Alguns jornalistas têm tentado ouvir o supertrabalhador a respeito dessa situação. Alegando falta de tempo, ele recusa-se a dar declarações. Aliás, de modo geral, recusa-se a falar, ainda que às vezes monologue coisas que, ao supervisor, parecem sem sentido. "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos" é o que ele diz, mas para quem está falando? E o que está dizendo?"
Monologar dizendo coisas que pior do que parecerem não fazer sentido para o supervisor, como diz Scliar, é, 175 anos após terem sido ditas, ainda continuarem não fazendo sentido para a imensa maioria dos trabalhadores, em um mundo em que ela se ferra cada vez mais. Em que se ferra cada vez mais devido à passividade diante da abjeta máxima que diz: manda quem pode e obedece quem tem juízo. Obediência da qual resultam coisas absurdas como a relatada a seguir.
"Em fins do século passado, Delmiro Gouveia (1863 – 1917), rico comerciante e exportador do Recife, capital do Estado de Pernambuco, Brasil, sofre perseguições políticas. Falido e perseguido pela polícia do Governador, Delmiro refugia-se no sertão, sob a proteção do Coronel Ulisses, levando consigo uma enteada do Governador. No sertão, ele recomeça sua atividade de exportador de couros e monta uma fábrica de linhas de costura, aproveitando a energia elétrica de uma usina que constrói na cachoeira de Paulo Afonso e o algodão erbáceo nativo da região.
A Grande Guerra de 1914, impedindo a chegada dos produtos ingleses à América do Sul, garante a Delmiro a conquista desse mercado, sobretudo do brasileiro. Os ingleses da Machine Cottons, ex-senhores absolutos do mercado, enviam emissários para negociar a situação assim criada. Delmiro nega-se a vender ou a associar-se. É assassinado em 10 de outubro de 1917. Alguns anos mais tarde, 1929, a fábrica é adquirida pelos ingleses, destruída e lançada nas águas da Cachoeira de Paulo Afonso."
Lançada nas águas da Cachoeira de Paulo Afonso pelos próprios trabalhadores em obediência a ordens de quem comprou a fábrica para destruí-la! É ou não um absurdo? Em 1978 um filme intitulado Coronel Delmiro Gouveia teve seu roteiro premiado no Festival de Brasília. Baseado em história real, conta a saga de Delmiro Gouveia. Em 1979 foi publicado, pela Editora CODECRI, um livro homônimo no qual há referências a inúmeras cenas do filme e a falas a elas associadas. Os dois próximos parágrafos foram extraídos de tal livro e referem-se à cena final do filme. Zé Pó é um dos trabalhadores da fábrica. Até o momento da publicação desta postagem o filme estava disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=ZMsyOSwK3zc.
Sequência 46 – Operários frente à cachoeira de Paulo Afonso, após lançarem as máquinas do penhasco.

Zé Pó (off) - "Foi isso que aconteceu. Seu Delmiro mandou a gente fazer a fábrica, a gente fez. Os inglês veio e mandou a gente quebrá as máquinas e derrubá no rio. A gente quebrou e derrubou. Eram os donos, os patrão. Os patrão manda e os trabalhador obedece. Ninguém perguntou pra nós o nosso pensamento, se a gente queria ou não quebrar as máquinas. Agora, o povo daqui nunca esqueceu o Coronel Delmiro. A fraqueza do Coronel é que ele era só, sozinho mesmo, e aí atiraram nele e mataram a fábrica. Tenho pra mim que ele foi como um exemplo pra nós tudo. Mas penso também que o dia em que o povo fizer as fábrica pra ele mesmo aí num tem força no mundo qui pode quebrá nem derrubá, porque num tem força maior que a do povo trabalhador, que trabalha, como as máquinas, e pensa, que nem gente."

"Os patrão manda e os trabalhador obedece.", diz a personagem do filme, referindo-se a algo ocorrido há 94 anos (1929). Será que tal comportamento seria aprovado por alguém que em um livro publicado há 132 anos (1891) apresentou um texto intitulado Desobediência: a virtude original do homem? O autor do livro? Oscar Wilde, dramaturgo, escritor e poeta irlandês (1854-1900). A postagem publicada em 02 de dezembro de 2011 reproduz o instigante texto de Wilde.
"Mas penso também que o dia em que o povo fizer as fábrica pra ele mesmo aí num tem força no mundo qui pode quebrá nem derrubá, porque num tem força maior que a do povo trabalhador, que trabalha, como as máquinas, e pensa, que nem gente.", diz a personagem do filme. Mas questiono se diante de tudo o que vivenciamos hoje faz sentido esperar pela chegada do dia pensado pela personagem do filme? Para ajudá-los a responderem tal indagação, nesta postagem rica em referências a fatos antigos, segue uma referência a um fato divulgado há cinco dias.
"Vinícolas do RS que usavam mão de obra análoga à escravidão podem ser responsabilizadas, diz MTE"
O parágrafo acima reproduz o título usado em uma matéria jornalística que até o momento da publicação desta postagem encontrava-se disponível no endereço https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/24/vinicolas-do-rs-que-usavam-mao-de-obra-analoga-a-escravidao-podem-ser-responsabilizadas-diz-mte.ghtml.
Ou seja, o tempo passa, avanços tecnológicos chegam aos montes, mas para um monte de trabalhadores a situação continua a lesma lerda. Quando mudará? Talvez quando chegarmos ao ponto zero. O que é o ponto zero? Nas palavras de Silvia Federici, uma representante daqueles seres imprescindíveis cujo Dia Internacional será comemorado na próxima quarta-feira, o "ponto zero" é tanto um lugar de perda completa quanto de possibilidades, pois só quando todas as posses e ilusões foram perdidas é que somos levados a encontrar, inventar, lutar por novas formas de vida e reprodução. Onde encontrei essa definição? Em seu livro intitulado O Ponto Zero – Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista.
Sim, só quando todas as posses e ilusões foram perdidas é que conseguiremos encontrar soluções para os graves problemas que assolam esta insana sociedade (sic), dentre eles o que se refere à forma como nela é tratado o trabalho e sua remuneração. Soluções que implicarão em um melhor ou pior futuro para a humanidade. Futuro sobre o qual há uma afirmação do escritor inglês D. H. Lawrence (1885 – 1930) que uma vez lida jamais foi por mim esquecida. Uma afirmação que tem dupla função: desfazer um equívoco e chamar atenção para algo imprescindível a um futuro auspicioso para a humanidade. Qual é a frase? "O futuro da humanidade não será decidido pelas relações entre nações, mas pelas relações entre homens e mulheres." Dito isto, até a próxima quarta-feira, dia 08 de março!

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