"A regra básica era: produzir cada vez mais a um custo cada vez menor. Custo cada vez menor significaria, para fins práticos, realistas, um número decrescente de trabalhadores ganhando um salário sempre decrescente."
O parágrafo acima reproduz o início do instigante texto ficcional de Moacyr Scliar publicado em
outubro do ano 2000. Com a intenção de fazer uma comparação, segue um trecho
extraído de um livro de David Graeber (1961 – 2020), professor de Antropologia
na London School of Economics, lançado em 2018 sob o título Bullshit Jobs
e publicado em Portugal em 2022 sob o título Trabalhos de Merda.
"Em 1930, o economista John Maynard Keynes profetizou que no fim do século, graças aos avanços tecnológicos, estaríamos todos a trabalhar 16 horas por semana. Mas, curiosamente, não foi isso que aconteceu. Em vez de diminuir, o tempo que passamos a trabalhar aumentou."
Ou seja, não só o que Keynes
profetizou, curiosamente, não aconteceu como, além disso, desgraçadamente, foi
o contrário que aconteceu. E graças aos avanços tecnológicos, a cada dia que
passa o que mais acontece na vida da maioria dos trabalhadores são desgraças significativas.
Número decrescente de empregos, valores decrescentes de salários e, para
contrabalançar esses decréscimos e completar a desgraça, acréscimo no número de
horas trabalhadas. É ou não é uma série de desgraças oriundas de avanços
tecnológicos que beneficiam apenas um pequeno e decrescente contingente dos
integrantes deste planeta e que prejudicam a imensa maioria deles.
Reparem que o texto de Moacyr Scliar
foi publicado exatamente no período previsto por John
Maynard Keynes para a concretização de
sua profecia. Keynes refere-se ao final do século 20 e o texto de Scliar
foi publicado em outubro de 2000. De lá para cá, decorridos vinte e três anos, a
imensa maioria dos trabalhadores encontra-se em situação pior do que estava
naquela época, o que para algumas pessoas, entre elas Rania Al-Abdullah (rainha
da Jordânia), não é surpresa alguma, como demonstra uma afirmação feita por ela
em seu artigo publicado na edição de 10 de maio de 2015 do jornal O Estado
de S. Paulo: "O
benefício do desenvolvimento tecnológico sem o progresso moral é apenas uma
ilusão."
Desenvolvimento tecnológico
sem o progresso moral, eis uma combinação perfeita para a produção não só de grandes
ilusões, mas também de grandes incompatibilidades entre os avanços produzidos no
âmbito da tecnologia e seus reflexos em outros âmbitos, por exemplo, o da
economia, como, há algumas décadas já nos alertava Herbert José de Souza (1935-1997), o Betinho, um sociólogo na
verdadeira acepção da palavra. "A tecnologia moderna é capaz de realizar a
produção sem emprego. O diabo é que a economia moderna não consegue inventar o
consumo sem salário.", disse Betinho, há algumas décadas.
O diabo é que sem salário as pessoas
não conseguem consumir sequer os alimentos indispensáveis à preservação da vida.
O diabo é que isso talvez seja exatamente o que desejam os que se beneficiam
dos avanços tecnológicos, como se pode deduzir a partir de algo revelado por
Mauro Santayana em um artigo intitulado "A
guerra entre os ricos e os pobres" publicado na edição
de 22 de junho de 2008 do Jornal do
Brasil em sua coluna intitulada Coisas
da Política.
"Entre as assustadoras denúncias de projetos do neoliberalismo e da globalização, para a exclusão, há a de um encontro ocorrido na Califórnia, nos anos 80, em que alguns economistas e sociólogos, americanos e europeus, sob o patrocínio dos banqueiros, concluíram que era necessário afastar do consumo 4/5 da população mundial, a fim de garantir o padrão de vida dos 20% restantes. Os demais deveriam ser marginalizados da comunidade planetária, até sua extinção, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra. Os fatos parecem confirmar esse monstruoso projeto, que a consciência ética (a cada dia mais escassa) abomina."
"Afastar do consumo 4/5 da população mundial, a fim de
garantir o padrão de vida dos 20% restantes. Os demais deveriam ser
marginalizados da comunidade planetária, até sua extinção, mais cedo ou mais
tarde, de uma forma ou de outra.", eis um monstruoso projeto que, segundo Mauro
Santayana, banqueiros já patrocinavam nos anos 80, ou seja, há pelo menos quatro
décadas.
Será que o
desemprego oriundo da substituição de seres humanos por máquinas pode ser
interpretado como uma das formas implícitas na expressão "de uma forma ou de outra.", usada no artigo de Santayana? Vocês têm
resposta para esta indagação? Em que "fatia" da "comunidade planetária" vocês acham que estarão vocês, seus descendentes e
aqueles que lhe são caros? Entre os 4/5 ou entre os 20%?
"Considerando
que a maioria dos integrantes da autodenominada espécie inteligente do universo
costuma achar (baseada sabe-se lá em quê) que coisas ruins só acontecem com os
outros e nunca com eles, arrisco dizer que vocês tendem a achar que estarão entre
os 20%. Então, sobre essa história de achar que coisas ruins nunca acontecerão conosco,
decidi lembrar aqui um texto que já o tendo visto atribuído a vários autores, creio que o mais provável é que ele seja de Martin Niemöller (1892 — 1984), um pastor
luterano alemão, e que sua publicação teria ocorrido em 1933. Dito isto, se
alguém souber esclarecer melhor a autoria de tal texto, por favor,
comunique-me, ok? Ainda segundo as minhas pesquisas, largamente adaptado e
parafraseado, no Brasil ele é conhecido como "E não sobrou
ninguém...".
"Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu não me importei, porque, afinal, eu não era comunista.Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu não me importei, porque, afinal, eu não era um social-democrata.Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não me importei, porque, afinal, eu não era um sindicalista.Quando eles buscaram os judeus, eu não me importei, porque, afinal, eu não era um judeu.Quando eles vieram me buscar, já não havia alguém para se importar com isso."
"Inspirado pelos cinco parágrafos acima, elaborei os três parágrafos
abaixo.
Quando os avanços tecnológicos vieram acabar com o emprego de quem trabalhava em atividades que poderiam facilmente ser realizadas por máquinas, eu não me importei, porque, afinal, minha atividade não estava entre elas.Quando novos avanços tecnológicos vieram acabar com o emprego de quem trabalhava em algumas atividades que a princípio não poderiam ser realizadas por máquinas, eu não me importei, porque, afinal, minha atividade não estava entre elas.Quando os avanços tecnológicos vieram acabar com o emprego de quem trabalhava em qualquer atividade, o que, obviamente, incluía a minha, já não havia alguém para se importar com isso.
Importar-se
apenas consigo mesmo e, consequentemente, aceitar coisas que se olhadas do
ponto de vista do coletivo deveriam ser contestadas, eis o que talvez seja o
mais grave equívoco cometido por uma imensa quantidade de integrantes desta pretensa
espécie inteligente do universo. Uma imensa quantidade na qual não está inserido
um imperador romano que era filósofo e a quem é atribuída uma afirmação que vai
de encontro ao equívoco citado no início deste parágrafo. Quem é o imperador?
Marco Aurélio. Qual é a afirmação? "O que não convém ao
enxame não convém tampouco à abelha". Afirmação que usei
na postagem inaugural deste blog intitulada "Por que criei um blog?" e que volto a usar nesta, após
696 postagens, entre elas algumas muito difíceis de elaborar, como é o caso destas
reflexões que eu pretendia já ter concluído há alguns dias.
Considerando
o tamanho já atingido por esta postagem, a solução que encontrei foi parar aqui
e prosseguir com estas reflexões na próxima. O sinistro é que diferentemente de
outras vezes em que as reflexões foram divididas em duas ou três postagens, desta
vez ao publicar a primeira postagem da "série" eu ainda não sei como elaborarei
a (s) seguinte (s), tampouco o dia em que a próxima será publicada. Vocês
conhecem um ditado popular que diz: "Está procurando sarna para se coçar?".
Pois é. Várias vezes esse ditado já me veio à mente após eu ter decidido qual
seria a próxima ideia a ser espalhada por este blog.
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