"O benefício do desenvolvimento tecnológico sem o progresso moral é apenas uma ilusão."
(Rania Al-Abdullah [rainha da Jordânia], em
artigo publicado na edição de 10 de maio de 2015 do jornal O Estado de S.
Paulo)
Em 29 de janeiro deste ano, estreou na GloboNews uma série intitulada "Robô
Sapiens". Ao todo, a série tem 57 reportagens gravadas em 24 cidades,
percorrendo seis países. Repórteres do Brasil, Europa, Estados Unidos e Japão
fizeram matérias que mostram como a inteligência artificial e os algoritmos já
fazem parte da nossa vida e farão ainda mais.
O que a referência feita a tal série no parágrafo
anterior tem a ver com o título desta postagem? A contradição entre o fascínio
por "um desenvolvimento tecnológico cujo benefício sem o progresso moral é
apenas uma ilusão" e algumas trágicas consequências por ele trazidas para
a imensa maioria dos integrantes deste planeta, entre elas aquela evidenciada no
texto espalhado por esta postagem.
Demonstrando entusiasmo pelo assunto da referida série, alguns
(umas) jornalistas da GloboNews fizeram
uma ressalva que é mais ou menos assim: mas as reportagens continuarão sendo
feitas por humanos. Ou seja, desde que os empregos por ele destruídos sejam os dos
outros, um assombroso desenvolvimento tecnológico chega a ser algo empolgante.
É estupidamente grande a quantidade de indivíduos que pensa (sic) assim!
O texto
reproduzido nesta postagem foi extraído de um livro intitulado O imaginário cotidiano, publicado em 2001. De autoria de Moacyr
Scliar (1937 – 2011), médico especialista em saúde pública, professor universitário
e prolífico escritor em vários gêneros, o livro é composto de textos ficcionais
baseados em notícias do jornal Folha de
S.Paulo, publicados desde 1993 na seção intitulada "Cotidiano".
Assim como, a cada dia que
passa, o desenvolvimento tecnológico torna antigas ficções algo real,
infelizmente, o decorrer do tempo torna também o antigo texto ficcional de
Moacyr Scliar algo a cada dia mais próximo do real.
O último trabalhador
"Trabalhador produz
mais e ganha menos."
(Dinheiro, 22 out. 2000)
A regra básica era: produzir cada vez mais a um custo
cada vez menor. Custo cada vez menor significaria, para fins práticos,
realistas, um número decrescente de trabalhadores ganhando um salário sempre
decrescente. Mas como chegar lá? Como alcançar uma situação até então apenas
descrita em utopias do tipo "Admirável
Mundo Novo"?
Problema complexo, finalmente resolvido com a descoberta
do supertrabalhador.
Que era, na aparência, um homenzinho comum, franzino. Diante
de máquinas e aparelhos, contudo, transformava-se. Possuído de energia
extraordinária e com uma habilidade assombrosa, ele operava sozinho uma vasta
parafernália. Foi assim que a TV o mostrou ao público: fazendo funcionar,
sozinho, uma grande fábrica, toda automatizada.
A essa fábrica, outras, similares, foram conectadas.
Nenhum problema para o supertrabalhador: ele dava conta de tudo. Não apenas
produzia, comercializava também, via Internet, fazia toda a contabilidade,
depositava o dinheiro... Como disse um embasbacado empresário: se há alguém que
se possa considerar pau para toda obra, é esse homem. Era de vê-lo correndo de
um lado para outro, ora operando os controles de uma supermáquina, ora
trabalhando no teclado de um supercomputador. E coisa interessante: ganhava
cada vez menos.
Nem poderia ser de outra maneira. Em primeiro lugar, só
havia um emprego, um único emprego, de supertrabalhador. Se ele fosse
despedido, simplesmente não teria onde aplicar seus conhecimentos, o que simplesmente
neutralizava sua capacidade reivindicatória. Por outro lado, atrelado como
estava ao gigantesco esquema de produção, nem tinha tempo para gastar o pouco
que ganhava e que, para alguém solteiro e sem vícios, parecia mais do que
suficiente. De modo que um dia o colegiado empresarial que o empregava decidiu:
não receberia mais salário algum. Comida, sim; casa, sim; roupa lavada, sim;
assistência médica, sim; alguma diversão, sim; salário, não. Com o que se
chegava à situação ideal: produtividade infinita com salário zero.
Alguns jornalistas têm tentado ouvir o supertrabalhador a
respeito dessa situação. Alegando falta de tempo, ele recusa-se a dar
declarações. Aliás, de modo geral, recusa-se a falar, ainda que às vezes
monologue coisas que, ao supervisor, parecem sem sentido. "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos"
é o que ele diz, mas para quem está falando? E o que está dizendo?
Isso, ao fim e ao cabo, não
tem importância alguma. No passado, alguns trabalhavam cantando, outros,
assobiando. O supertrabalhador monologa. Não há mal nenhum nisso, diz o
supervisor, mas apressa-se a acrescentar:
- Desde que, claro, a produção
não seja prejudicada.
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O instigante artigo citado na epígrafe pode ser lido na postagem O avanço da tecnologia. Algumas reflexões provocadas por esta poderão ser lidas na próxima.
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