terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

O último trabalhador

"O benefício do desenvolvimento tecnológico sem o progresso moral é apenas uma ilusão."

(Rania Al-Abdullah [rainha da Jordânia], em artigo publicado na edição de 10 de maio de 2015 do jornal O Estado de S. Paulo)
Em 29 de janeiro deste ano, estreou na GloboNews uma série intitulada "Robô Sapiens". Ao todo, a série tem 57 reportagens gravadas em 24 cidades, percorrendo seis países. Repórteres do Brasil, Europa, Estados Unidos e Japão fizeram matérias que mostram como a inteligência artificial e os algoritmos já fazem parte da nossa vida e farão ainda mais.
O que a referência feita a tal série no parágrafo anterior tem a ver com o título desta postagem? A contradição entre o fascínio por "um desenvolvimento tecnológico cujo benefício sem o progresso moral é apenas uma ilusão" e algumas trágicas consequências por ele trazidas para a imensa maioria dos integrantes deste planeta, entre elas aquela evidenciada no texto espalhado por esta postagem.
Demonstrando entusiasmo pelo assunto da referida série, alguns (umas) jornalistas da GloboNews fizeram uma ressalva que é mais ou menos assim: mas as reportagens continuarão sendo feitas por humanos. Ou seja, desde que os empregos por ele destruídos sejam os dos outros, um assombroso desenvolvimento tecnológico chega a ser algo empolgante. É estupidamente grande a quantidade de indivíduos que pensa (sic) assim!
O texto reproduzido nesta postagem foi extraído de um livro intitulado O imaginário cotidiano, publicado em 2001. De autoria de Moacyr Scliar (1937 – 2011), médico especialista em saúde pública, professor universitário e prolífico escritor em vários gêneros, o livro é composto de textos ficcionais baseados em notícias do jornal Folha de S.Paulo, publicados desde 1993 na seção intitulada "Cotidiano".
Assim como, a cada dia que passa, o desenvolvimento tecnológico torna antigas ficções algo real, infelizmente, o decorrer do tempo torna também o antigo texto ficcional de Moacyr Scliar algo a cada dia mais próximo do real.
O último trabalhador
"Trabalhador produz mais e ganha menos."
(Dinheiro, 22 out. 2000)
A regra básica era: produzir cada vez mais a um custo cada vez menor. Custo cada vez menor significaria, para fins práticos, realistas, um número decrescente de trabalhadores ganhando um salário sempre decrescente. Mas como chegar lá? Como alcançar uma situação até então apenas descrita em utopias do tipo "Admirável Mundo Novo"?
Problema complexo, finalmente resolvido com a descoberta do supertrabalhador.
Que era, na aparência, um homenzinho comum, franzino. Diante de máquinas e aparelhos, contudo, transformava-se. Possuído de energia extraordinária e com uma habilidade assombrosa, ele operava sozinho uma vasta parafernália. Foi assim que a TV o mostrou ao público: fazendo funcionar, sozinho, uma grande fábrica, toda automatizada.
A essa fábrica, outras, similares, foram conectadas. Nenhum problema para o supertrabalhador: ele dava conta de tudo. Não apenas produzia, comercializava também, via Internet, fazia toda a contabilidade, depositava o dinheiro... Como disse um embasbacado empresário: se há alguém que se possa considerar pau para toda obra, é esse homem. Era de vê-lo correndo de um lado para outro, ora operando os controles de uma supermáquina, ora trabalhando no teclado de um supercomputador. E coisa interessante: ganhava cada vez menos.
Nem poderia ser de outra maneira. Em primeiro lugar, só havia um emprego, um único emprego, de supertrabalhador. Se ele fosse despedido, simplesmente não teria onde aplicar seus conhecimentos, o que simplesmente neutralizava sua capacidade reivindicatória. Por outro lado, atrelado como estava ao gigantesco esquema de produção, nem tinha tempo para gastar o pouco que ganhava e que, para alguém solteiro e sem vícios, parecia mais do que suficiente. De modo que um dia o colegiado empresarial que o empregava decidiu: não receberia mais salário algum. Comida, sim; casa, sim; roupa lavada, sim; assistência médica, sim; alguma diversão, sim; salário, não. Com o que se chegava à situação ideal: produtividade infinita com salário zero.
Alguns jornalistas têm tentado ouvir o supertrabalhador a respeito dessa situação. Alegando falta de tempo, ele recusa-se a dar declarações. Aliás, de modo geral, recusa-se a falar, ainda que às vezes monologue coisas que, ao supervisor, parecem sem sentido. "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos" é o que ele diz, mas para quem está falando? E o que está dizendo?
Isso, ao fim e ao cabo, não tem importância alguma. No passado, alguns trabalhavam cantando, outros, assobiando. O supertrabalhador monologa. Não há mal nenhum nisso, diz o supervisor, mas apressa-se a acrescentar:
- Desde que, claro, a produção não seja prejudicada.
*************
O instigante artigo citado na epígrafe pode ser lido na postagem O avanço da tecnologia. Algumas reflexões provocadas por esta poderão ser lidas na próxima.

Nenhum comentário: