quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Aprender a viver

"Viver (...) é muito perigoso... Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é o que é o viver mesmo."

(Guimarães Rosa)
Após uma postagem em que é dito que os homens "vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido", ou seja, que os homens não sabem viver segue uma espalhando um texto intitulado Aprender a vier. Onde o obtive? Na edição número 99 da revista SOPHIA, referente a SET/OUT 2022. O autor? Geraldo Peçanha de Almeida, psicanalista, educador e escritor, com mais de 70 livros publicados.
Aprender a viver
'Nós queremos sair do casulo para virar uma borboleta, mas sem nenhum esforço. Porém, sabemos que é justamente a força que a lagarta faz para romper as paredes do casulo que vai proporcionar a libertação das suas asas'
Parece que alguma coisa no mundo não está se encaixando. De um lado, vemos instituições de respeito apontando o fato de estarmos vivendo ou quase chegando a uma crise mundial de saúde mental. Por outro lado nós, terapeutas, constatamos in loco o aumento exponencial do número de pacientes que procuram ajuda.
Parece a mesma coisa, mas não é. O que as instituições chamam de uma possível pandemia mundial de saúde mental é corroborado pelo aumento do consumo de medicamentos para dormir, se acalmar, relaxar e até para se alegrar. Mas o que me parece que nós, terapeutas, estamos vendo não é de fato um problema de saúde mental, mas um problema que se esconde por baixo do pano chamado saúde mental. Parece que tudo agora é problema de saúde mental, justificado por traumas de infância, exclusão, cancelamento e por aí vai. Não descaracterizo, tampouco desmereço essas situações. Elas existem, são graves e precisam ser atacadas.
Porém, por outro lado, a área da saúde vive há muitos anos um problema chamado subnotificação, ou o contrário dele. Nesse caso, as notificações por problemas de saúde mental estão escondendo uma questão que se torna crônica - as pessoas parecem não estar mais dispostas a nenhum esforço, nenhum estresse, nenhum sacrifício ou simplesmente nenhuma perda; tudo tem que ser leve e a custo zero, como dizem.
Tempos atrás um paciente me falou: "Doutor, eu não quero sair da internação, por favor. Aqui, se eu tenho insônia, me dão remédio e eu durmo. Se eu tenho ansiedade, sou medicado e passa. Se eu fico deprimido, logo chegam as pílulas e me alegram. Por que eu iria querer sair daqui?" Parece fala de um livro ou filme, mas é vida real. Muitos de nós não queremos mais fazer nenhum esforço para seguir adiante. Tenho chamado isso de síndrome da lagarta arrependida: nós queremos sair do casulo para virar uma borboleta, mas sem nenhum esforço. Porém, sabemos que é justamente a força que a lagarta faz para romper as paredes do casulo que vai proporcionar a libertação das suas asas. A natureza está cheia desses exemplos. A pérola só surge porque um corpo estranho cai dentro da ostra, ocasionando a transformação. Os pinguins passam por um verdadeiro martírio para dar a vida aos filhotes, durante rigorosíssimos invernos.
Já nós, quanto mais ar condicionado, massagem no ego e esforço zero, melhor. Estamos preferindo comidas prontas, que só precisam ser aquecidas. Estamos buscando carros com mais e mais recursos para não fazermos esforços, e nossos celulares precisam fazer de tudo, de trazer comida a evitar que tenhamos que sair para pagar contas. E assim vamos, pouco a pouco, moldando nossa mente para uma vida sem qualquer esforço. Com isso juntamos de tudo: problemas não resolvidos, crises, conflitos e gordura, nas carnes do corpo, no sangue e no fígado, e mais tarde precisamos que um médico sugue toda essa gordura, porque fazer esforço para perdê-la nós também não queremos.
Estou tentando exagerar para dar cor ao problema. Estou tentando tornar visível algo que acontece à nossa volta e que, por razões sérias, não percebemos e não queremos perceber. Eu sou muito adepto das facilitações da vida. Acredito que homens e mulheres podem ter uma vida prática, mas isso não quer dizer uma vida fácil. Viver é um processo que requer intencionalidade, e isso seguramente nos cobrará algum ou muito esforço. Estamos desaprendendo a viver, desaprendendo o sabor das conquistas.
Uma mãe com um bebê faz um esforço que é impossível ser compreendido pelos outros. É com esse esforço em prática que elas e seus pares constroem a maternidade. Ficar sem dormir, sem comer e por conta das necessidades do bebê é algo que mães e pais aprendem que podem fazer, e isso só é possível graças à intenção deles - querer um filho e, portanto entender o que é preciso fazer.
Antigamente, todos os pacientes que passavam por meu consultório queriam saber quem eles eram. Todos entravam pela porta dizendo que tinham vindo até ali para se encontrar. Hoje, vinte anos depois, todos que chegam até mim já sabem quem são, e por isso trazem a mesma indagação: o que devo escolher? A grande maioria dos pacientes de psicanálise possui uma gama enorme de possibilidades, mas não sabem o que escolher - ou querem escolher tudo, porque não são capazes de deixar nada de fora. Sofrem porque acreditam que são bons demais e darão conta de tudo, e não reparam na finitude das energias, das paixões e dos desejos. É outra face dessa mesma situação. Há quem tenha até preguiça de fazer escolhas, e busca o terapeuta para fazer por ele.
E assim, dia a dia, vemos uma geração se construindo por vozes alheias. Há instituições que falam por nós em todas as situações. Nossas vozes individuais estão se calando ou se tornando desnecessárias. Há lugares em que não somos mais ouvidos individualmente; só uma instituição pode falar por nós. Este é o retrato do que fizemos com a nossa exclusão e com a nossa facilitação da vida. Se não assumirmos o que queremos e deixarmos isso para instituições, elas provavelmente farão por nós, mas nunca será como queremos ou precisamos. Creio que é hora de pensarmos em nossas promessas durante a pandemia - seríamos melhores quando tudo passasse. Pois bem, está passando. E agora? O que vamos fazer para que a nossa vida tenha sentido?
  *************
Será que refletir sobre o que é dito por Geraldo Peçanha de Almeida pode ser um bom começo no sentido de descobrir "o que vamos fazer para que a nossa vida tenha sentido"?

Nenhum comentário: