"Viver (...) é muito perigoso... Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é o que é o viver mesmo."
(Guimarães Rosa)
Após uma postagem em que é dito que os homens "vivem
como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido", ou
seja, que os homens não sabem viver segue
uma espalhando um texto intitulado Aprender a vier. Onde o obtive? Na
edição número 99 da revista SOPHIA, referente a SET/OUT 2022. O autor?
Geraldo Peçanha de Almeida, psicanalista, educador e escritor, com mais de 70
livros publicados.
Aprender a viver
'Nós queremos sair do casulo para virar uma borboleta, mas sem nenhum esforço. Porém, sabemos que é justamente a força que a lagarta faz para romper as paredes do casulo que vai proporcionar a libertação das suas asas'
Parece que alguma coisa no mundo não está se
encaixando. De um lado, vemos instituições de respeito apontando o fato de
estarmos vivendo ou quase chegando a uma crise mundial de saúde mental. Por
outro lado nós, terapeutas, constatamos in loco o aumento exponencial do
número de pacientes que procuram ajuda.
Parece a mesma coisa, mas não é. O que as
instituições chamam de uma possível pandemia mundial de saúde mental é
corroborado pelo aumento do consumo de medicamentos para dormir, se acalmar,
relaxar e até para se alegrar. Mas o que me parece que nós, terapeutas, estamos
vendo não é de fato um problema de saúde mental, mas um problema que se esconde
por baixo do pano chamado saúde mental. Parece que tudo agora é problema de
saúde mental, justificado por traumas de infância, exclusão, cancelamento e por
aí vai. Não descaracterizo, tampouco desmereço essas situações. Elas existem,
são graves e precisam ser atacadas.
Porém, por outro lado, a área da saúde vive há
muitos anos um problema chamado subnotificação, ou o contrário dele. Nesse
caso, as notificações por problemas de saúde mental estão escondendo uma
questão que se torna crônica - as pessoas parecem não estar mais dispostas a
nenhum esforço, nenhum estresse, nenhum sacrifício ou simplesmente nenhuma
perda; tudo tem que ser leve e a custo zero, como dizem.
Tempos atrás um paciente me falou: "Doutor, eu
não quero sair da internação, por favor. Aqui, se eu tenho insônia, me dão
remédio e eu durmo. Se eu tenho ansiedade, sou medicado e passa. Se eu fico
deprimido, logo chegam as pílulas e me alegram. Por que eu iria querer sair daqui?"
Parece fala de um livro ou filme, mas é vida real. Muitos de nós não queremos
mais fazer nenhum esforço para seguir adiante. Tenho chamado isso de síndrome
da lagarta arrependida: nós queremos sair do casulo para virar uma borboleta,
mas sem nenhum esforço. Porém, sabemos que é justamente a força que a lagarta
faz para romper as paredes do casulo que vai proporcionar a libertação das suas
asas. A natureza está cheia desses exemplos. A pérola só surge porque um corpo
estranho cai dentro da ostra, ocasionando a transformação. Os pinguins passam
por um verdadeiro martírio para dar a vida aos filhotes, durante rigorosíssimos
invernos.
Já nós, quanto mais ar condicionado, massagem no
ego e esforço zero, melhor. Estamos preferindo comidas prontas, que só precisam
ser aquecidas. Estamos buscando carros com mais e mais recursos para não
fazermos esforços, e nossos celulares precisam fazer de tudo, de trazer comida
a evitar que tenhamos que sair para pagar contas. E assim vamos, pouco a pouco,
moldando nossa mente para uma vida sem qualquer esforço. Com isso juntamos de
tudo: problemas não resolvidos, crises, conflitos e gordura, nas carnes do
corpo, no sangue e no fígado, e mais tarde precisamos que um médico sugue toda
essa gordura, porque fazer esforço para perdê-la nós também não queremos.
Estou tentando exagerar para dar cor ao problema.
Estou tentando tornar visível algo que acontece à nossa volta e que, por razões
sérias, não percebemos e não queremos perceber. Eu sou muito adepto das
facilitações da vida. Acredito que homens e mulheres podem ter uma vida
prática, mas isso não quer dizer uma vida fácil. Viver é um processo que requer
intencionalidade, e isso seguramente nos cobrará algum ou muito esforço.
Estamos desaprendendo a viver, desaprendendo o sabor das conquistas.
Uma mãe com um bebê faz um esforço que é impossível
ser compreendido pelos outros. É com esse esforço em prática que elas e seus
pares constroem a maternidade. Ficar sem dormir, sem comer e por conta das
necessidades do bebê é algo que mães e pais aprendem que podem fazer, e isso só
é possível graças à intenção deles - querer um filho e, portanto entender o que
é preciso fazer.
Antigamente, todos os pacientes que passavam por
meu consultório queriam saber quem eles eram. Todos entravam pela porta dizendo
que tinham vindo até ali para se encontrar. Hoje, vinte anos depois, todos que
chegam até mim já sabem quem são, e por isso trazem a mesma indagação: o que
devo escolher? A grande maioria dos pacientes de psicanálise possui uma gama
enorme de possibilidades, mas não sabem o que escolher - ou querem escolher
tudo, porque não são capazes de deixar nada de fora. Sofrem porque acreditam
que são bons demais e darão conta de tudo, e não reparam na finitude das
energias, das paixões e dos desejos. É outra face dessa mesma situação. Há quem
tenha até preguiça de fazer escolhas, e busca o terapeuta para fazer por ele.
E assim, dia a dia, vemos uma geração se
construindo por vozes alheias. Há instituições que falam por nós em todas as
situações. Nossas vozes individuais estão se calando ou se tornando
desnecessárias. Há lugares em que não somos mais ouvidos individualmente; só
uma instituição pode falar por nós. Este é o retrato do que fizemos com a nossa
exclusão e com a nossa facilitação da vida. Se não assumirmos o que queremos e deixarmos
isso para instituições, elas provavelmente farão por nós, mas nunca será como
queremos ou precisamos. Creio que é hora de pensarmos em nossas promessas
durante a pandemia - seríamos melhores quando tudo passasse. Pois bem, está
passando. E agora? O que vamos fazer para que a nossa vida tenha sentido?
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Será que refletir sobre o que é dito por Geraldo
Peçanha de Almeida pode ser um bom começo no sentido de descobrir "o que vamos
fazer para que a nossa vida tenha sentido"?
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