terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Reflexões provocadas por "O Deus Mercado"

Existem, basicamente, dois tipos de deuses. Do primeiro, existe um único exemplar. Exemplar que pode ser definido como "a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas". Coisas entre as quais, obviamente, estão incluídas todas as criaturas existentes no Universo. Do segundo, existem alguns exemplares, pois são deuses inventados por algumas das criaturas. Exemplares que podem ser definidos como "a conveniência suprema (de algumas criaturas), causa primária de todas as coisas equivocadas que existem no Universo. Exemplares cuja existência é defendida por aqueles para os quais sua existência seja conveniente, e entre os quais está incluído um sinistro deus intitulado Mercado. Feito este preâmbulo, segue a reprodução de alguns trechos selecionadas da autêntica aula de Ivo Tonet.
"Dizem os defensores do mercado que ele é uma expressão da natureza humana. Segundo eles, todos nós nascemos egoístas. Por isso, cada um de nós busca o seu interesse pessoal. Daí nasce a desigualdade social. A concorrência, estabelecida pelo mercado, seria o meio mais adequado para equilibrar essa desigualdade, impedindo que ela se tornasse muito aguda. Seria a famosa “mão invisível” do mercado. Nesse sentido, o mercado, a troca, sempre teria existido. O mercado capitalista seria apenas a forma mais aperfeiçoada possível dessa troca que se fundamentaria na verdadeira natureza humana."
"No entanto, como pudemos ver, examinando o processo histórico, a natureza humana é histórica e social, isto é, é resultado da atividade humana. Nós não nascemos nem egoístas nem solidários. O que nos faz egoístas ou solidários é o conjunto das relações sociais que nós mesmos vamos criando. Entre essas relações, uma ocupa um lugar todo especial: a relação de trabalho. As relações que os homens estabelecem entre si no processo de transformar a natureza serão as responsáveis fundamentais – não, obviamente, únicas – pelo nosso egoísmo ou pela nossa solidariedade."
"Além disso, o mercado nem sempre existiu. De modo, especial, o mercado, sob a sua forma capitalista, é algo muito recente na história da humanidade. Sua origem, sua natureza, seu poder, seu caráter misterioso, tudo isso pode ser claramente conhecido. Ele resulta de uma determinada forma da atividade humana, de um determinado processo de produzir e repartir a riqueza. Isso nada tem de natural e muito menos de divino."
Ou seja, diferentemente do que "dizem os defensores do mercado", ele não apenas "nem sempre existiu, como também "nada tem de natural e muito menos de divino". Diferentemente do que "dizem os defensores do mercado", ele "tudo tem de artificial e muito mais de diabólico".
O problema é que, em uma sociedade composta de exploradores e de explorados, tudo o que os exploradores desejam é impingir aos explorados a ideia de que tudo que nela ocorre é natural e imutável, para dessa forma afastar toda e qualquer possibilidade de os explorados pensarem em agir no sentido de combater à exploração a que estão submetidos. Desejo que eles concretizam recorrendo a uma velha prática que na Roma Antiga ficou conhecida como Política do Pão e Circo? Em que consiste tal política? Em evitar a revolta dos explorados oferecendo-lhes pão e circo. Oferta que com o passar do tempo tem cada vez menos pão e mais circo, pois mais importante do que oferecer pão para manter vivos os explorados é oferecer circo para manter entorpecidos aqueles indivíduos que teimem em continuar sobrevivendo. Afinal, como diz a filósofa Márcia Tiburi, "A diversão é uma droga, ela nos livra de pensar." E livrando-nos de pensar, consequentemente, ela livra-nos também de questionar os absurdos que nos são impingidos, entre eles a imprescindibilidade de ser submisso a um deus denominado Mercado.
Indivíduos que teimando em continuar sobrevivendo acabam por despertar a ira do temível deus Mercado. Ira cujo abrandamento exige o oferecimento de explorados em sacrifício, pois em um mundo excessivamente tecnológico a quantidade necessária de explorados é cada vez menor o que torna a sua não diminuição um problema cada vez maior para os exploradores, considerando que a garantia do padrão de vida dos exploradores é algo que exige uma violenta diminuição da quantidade dos explorados que teimam em continuar sobrevivendo neste planeta, como mostra algo que li há 14,5 anos e que jamais esqueci. Em artigo publicado na edição de 22 de junho de 2008 do Jornal do Brasil, sob o título A guerra entre os ricos e os pobres, o jornalista Mauro Santayana diz o seguinte:
"Entre as assustadoras denúncias de projetos do neoliberalismo e da globalização, para a exclusão, há a de um encontro ocorrido na Califórnia, nos anos 80, em que alguns economistas e sociólogos americanos e europeus, sob o patrocínio dos banqueiros, concluíram que era necessário afastar do consumo 4/5 da população mundial, a fim de garantir o padrão de vida dos 20% de ricos restantes. Os demais deveriam ser marginalizados da comunidade planetária, até sua extinção, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra. Os fatos parecem confirmar esse monstruoso projeto, que a consciência ética (a cada dia mais escassa) abomina."
"Algum de vocês consegue não enxergar "nesse monstruoso projeto" um ato de submissão e de adoração ao famigerado deus Mercado?
Iniciando o final destas reflexões, segue a reprodução dos dois parágrafos finais da autêntica aula de Ivo Tonet.
"Dentro da sociedade capitalista, todos nós somos, independente da nossa vontade, comandados pela lógica do capital, pelo mercado. Mas, como ela não é natural, isto é, resultado das leis da natureza, mas social, vale dizer, produto da atividade humana, ela também pode ser superada. É plenamente possível acabar com a produção capitalista da riqueza e, portanto, com todas as categorias que compõem o mercado. Basta, para isso, organizar outra forma de produzir a riqueza."
"Como nascemos dentro de uma sociedade capitalista, onde o mercado é o grande regulador da vida social, e como, na maioria das vezes, não temos acesso a um conhecimento que nos permita compreender o processo capitalista de produção e repartição da riqueza, tudo nos aparece como sendo natural, misterioso e muito poderoso. Nada nos restaria fazer a não ser adaptar-nos a essa situação, correndo, cada um de nós, atrás dos seus interesses particulares numa competição de todos contra todos. Quando, porém, temos acesso a esse conhecimento, percebemos que o mercado capitalista nada mais é do que o resultado de determinadas atividades humanas, das quais, a mais fundamental é a atividade de produção da riqueza. O processo social concreto fez com que essas atividades assumissem uma forma natural, misteriosa e muito poderosa e controladora da nossa vida. Mas, não são eternas e nem insuperáveis."
Diferentemente do que nos é impingido por meios de comunicação a serviço dos que se consideram os donos do mundo, as sinistras atividades desenvolvidas "dentro de uma sociedade capitalista, onde o mercado é o grande regulador da vida social", não são naturais, "nem eternas e nem insuperáveis". Não, não é utopia acreditar que coisas ruins são superáveis. Até porque, como diz o filósofo Slavoj Zizek, existe apenas uma utopia. "Quando me dizem 'você é um utópico', digo: 'a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual'". Concordo plenamente com ele. E também com uma inesquecível afirmação de Bertolt Brecht: "Nada deve parecer natural; nada deve parecer impossível de mudar." Portanto, por mais que os favorecidos por esse sinistro deus inventado insistam em afirmar o contrário, para os desfavorecidos, "tudo deve parecer artificial, tudo deve parecer possível de mudar".

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