quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

O Deus Mercado (final)

Continuação de sexta-feira

De acordo com José Paulo Netto e Marcelo Braz (2006, p. 91), "A lei do valor é, no âmbito da produção de mercadorias, o único regulador efetivo da produção e da repartição do trabalho e funciona à revelia dos homens, como algo completamente fora do seu controle; (...).
É importante destacar esse fato. Todo esse processo de produção, distribuição e consumo das mercadorias não é planejado pelos homens. Ele tem suas leis próprias e funciona de modo independente da vontade, dos interesses e dos desejos dos homens. Exatamente porque seu objetivo não é atender as necessidades humanas, mas a acumulação cada vez mais ampla de capital. Lembremos que capital pode ter formas diversas: dinheiro, mercadorias, meios de produção.
Acontece que a produção, no sistema capitalista sempre implica a concorrência. Cada capitalista produz o que acha que vai lhe dar mais lucro. Não há um plano geral antecipado que estabeleça quais são as necessidades e o que deverá ser produzido para atendê-las. Isso faz com que cada capitalista concorra com todos os outros do seu ramo e também com todos os outros capitalistas, buscando obter o maior lucro possível. Também faz com que o preço das mercadorias oscile ao redor do seu valor. Vale dizer, na busca por obter maior lucro do que os seus concorrentes, cada capitalista pode vender abaixo ou acima do valor das mercadorias. Os próprios trabalhadores também concorrem entre si, buscando vender sua força de trabalho nas melhores condições possíveis. Isso faz do capitalismo um sistema de concorrência generalizada.
De modo geral, se há uma demanda maior de alguma mercadoria, seu preço tende a subir. Se há uma demanda menor, ele tende a cair. É a famosa lei da oferta e da procura.
Como as mercadorias não podem ser trocadas diretamente umas pelas outras, era necessário encontrar um elemento que pudesse expressar o valor de qualquer uma delas. Esse meio foi o dinheiro. Como se sabe, o dinheiro existia há muito tempo. Mas, só agora, com a generalização da troca, com todas as coisas sendo produzidas como mercadorias, isto é, visando o lucro e não o atendimento das necessidades humanas, é que o dinheiro se tornou o equivalente universal, isto é, aquele que pode expressar o valor de qualquer mercadoria. E, portanto, possibilitar a troca das mercadorias.
O dinheiro é a mercadoria por excelência. É ele que estabelece a forma como você pode estar inserido no mercado. É ele que determina se você vai ter ou não, e em que medida, acesso às mercadorias. Como os capitalistas, sendo proprietários dos meios de produção (máquinas, terras, instalações, etc.) e da mais-valia originada da exploração dos trabalhadores, canalizam para si a maior parte da riqueza, são eles que tem maior acesso aos bens. Mas, é importante assinalar de novo: o mercado comanda a vida de todos, dos trabalhadores e dos capitalistas, embora deixando-os em situações muito diferentes.
Ao longo do seu desenvolvimento, o capitalismo vai se tornando cada vez mais complexo. E também cada vez mais irracional e desumano, por sua própria lógica, embora desenvolva muito a capacidade de produzir riqueza, não pode atender as necessidades humanas. Desse modo, o mercado também vai se tornando cada vez mais complexo, implicando não só as mercadorias, mas também o mercado de capitais, as bolsas de valores. É, portanto, natural que os proprietários dos meios de produção, das mercadorias e do capital sejam os mais beneficiados por esse sistema e tenham o maior interesse em defendê-lo.
Dizem os defensores do mercado que ele é uma expressão da natureza humana. Segundo eles, todos nós nascemos egoístas. Por isso, cada um de nós busca o seu interesse pessoal. Daí nasce a desigualdade social. A concorrência, estabelecida pelo mercado, seria o meio mais adequado para equilibrar essa desigualdade, impedindo que ela se tornasse muito aguda. Seria a famosa "mão invisível" do mercado. Nesse sentido, o mercado, a troca, sempre teria existido. O mercado capitalista seria apenas a forma mais aperfeiçoada possível dessa troca que se fundamentaria na verdadeira natureza humana.
No entanto, como pudemos ver, examinando o processo histórico, a natureza humana é histórica e social, isto é, é resultado da atividade humana. Nós não nascemos nem egoístas nem solidários. O que nos faz egoístas ou solidários é o conjunto das relações sociais que nós mesmos vamos criando. Entre essas relações, uma ocupa um lugar todo especial: a relação de trabalho. As relações que os homens estabelecem entre si no processo de transformar a natureza serão as responsáveis fundamentais – não, obviamente, únicas – pelo nosso egoísmo ou pela nossa solidariedade.
Além disso, o mercado nem sempre existiu. De modo, especial, o mercado, sob a sua forma capitalista, é algo muito recente na história da humanidade. Sua origem, sua natureza, seu poder, seu caráter misterioso, tudo isso pode ser claramente conhecido. Ele resulta de uma determinada forma da atividade humana, de um determinado processo de produzir e repartir a riqueza. Isso nada tem de natural e muito menos de divino.
4. Possibilidade de superação do mercado
Dentro da sociedade capitalista, todos nós somos, independente da nossa vontade, comandados pela lógica do capital, pelo mercado. Mas, como ela não é natural, isto é, resultado das leis da natureza, mas social, vale dizer, produto da atividade humana, ela também pode ser superada. É plenamente possível acabar com a produção capitalista da riqueza e, portanto, com todas as categorias que compõem o mercado. Basta, para isso, organizar outra forma de produzir a riqueza. Essa forma é o que Marx chamada de trabalho associado, Em síntese, trabalho associado é uma forma de trabalho na qual todos contribuem, segundo as suas capacidades e possibilidades, para a produção da riqueza. A contribuição de todos reduziria muitíssimo, dado o enorme avanço tecnológico, o tempo de trabalho necessário para produzir a riqueza. Esta seria produzida, de modo planejado, para atender as necessidades humanas e não para acumular capital. Isso eliminaria a exploração do homem pelo homem e todas as formas de desigualdade social.
Conclusão
Como nascemos dentro de uma sociedade capitalista, onde o mercado é o grande regulador da vida social, e como, na maioria das vezes, não temos acesso a um conhecimento que nos permita compreender o processo capitalista de produção e repartição da riqueza, tudo nos aparece como sendo natural, misterioso e muito poderoso. Nada nos restaria fazer a não ser adaptar-nos a essa situação, correndo, cada um de nós, atrás dos seus interesses particulares numa competição de todos contra todos. Quando, porém, temos acesso a esse conhecimento, percebemos que o mercado capitalista nada mais é do que o resultado de determinadas atividades humanas, das quais, a mais fundamental é a atividade de produção da riqueza. O processo social concreto fez com que essas atividades assumissem uma forma natural, misteriosa e muito poderosa e controladora da nossa vida. Mas, não são eternas e nem insuperáveis.
Bibliografia
HUBERMAN. L. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro, LTC, 1986.
MARX, K. O Capital – crítica da economia política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1975.
_____, Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro. São Paulo, Expressão Popular, 2010. PAULO NETTO, J. e BRAZ, MARCELO. Economia política – uma introdução crítica. São Paulo, Cortez, 2006.
TONET, I. Sobre o socialismo. São Paulo, Instituto Lukács, 2012.
*************
"Ela (a entidade mercado) deve ser aceita como algo natural ou pode ser questionada e eliminada? Podemos viver sem mercado?", eis dois questionamentos de Ivo Tonet que encerram o quarto parágrafo do seu excelente texto. "O processo social concreto fez com que essas atividades (de produção e de repartição da riqueza) assumissem uma forma natural, misteriosa e muito poderosa e controladora da nossa vida. Mas, não são eternas e nem insuperáveis.", eis as duas afirmações que encerram o texto.
"Questionamentos e afirmações que levam o velho método das recordações sucessivas a lembrar-me da seguinte afirmação de Bertolt Brecht: "Nada deve parecer natural; nada deve parecer impossível de mudar.". E também da seguinte afirmação de Zigmunt Bauman: "Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem.".
Reler atentamente essa autêntica aula de Ivo Tonet, eis uma boa oportunidade para exercitar a arte de questionar. E também a de refletir.

Nenhum comentário: