Deus acima de todos! Eis uma frase que nos quatro
anos mais recentes foi exaustivamente repetida neste país por uma estranha criatura
que se proclama um emissário divino (sic). Em termos de localização de Deus em
relação a todos, entendo que existem, basicamente, duas localizações: entre todos
ou acima de todos.
A primeira, defendida por aqueles para quem um dos
atributos de Deus é considerar que, em termos de direitos sociais, todas as
suas criaturas estão em um mesmo nível. Sendo assim, a crescente desigualdade
social engendrada por alguns integrantes deste mundo por ele criado não faz o
menor sentido. Então, com a intenção de fazer suas criaturas perceberem a
estupidez de tal desigualdade e consequentemente levá-las a engajarem-se na sua
desconstrução, ele coloca-se entre todos.
A segunda, defendida por aqueles para quem Deus é
chegado a alguns atributos humanos, entre eles o de aceitar que, em termos de
direitos sociais, as pessoas sejam consideradas em diferentes níveis e o de reagir
mal quando se é contrariado. Sendo assim, a crescente desigualdade social
existente é algo perfeitamente natural contra a qual não se deve rebelar para
evitar sofrer os efeitos de sua atemorizante reação. Então, com a intenção de
desestimular as pessoas a engajarem-se na desconstrução dessa indecente
desigualdade, ele foi colocado acima de todos, em local inalcançável.
O Deus que, por si, coloca-se entre todos não tem
nome. O Deus que, pelas criaturas, foi colocado acima de todos é denominado
Mercado. Esta postagem mais as duas seguintes espalham uma autêntica aula de
Ivo Tonet sobre o que é o Deus Mercado, publicada em junho de 2016 e encontrável
em https://ivotonet.xp3.biz/arquivos/O_DEUS_MERCADO.pdf.
O Deus Mercado
1. Introdução
Frequentemente
ouvimos expressões como estas: O mercado está ansioso, o mercado está com
expectativas, o mercado não gostou, o mercado está estressado, o mercado reagiu
mal ou bem.
Esse
tal de mercado parece uma pessoa, pois essas expressões são típicas de
sentimentos de pessoas humanas. Mas, além disso, ele parece ser uma entidade
muito poderosa, misteriosa e com qualidades super-humanas. Uma entidade que
parece ter muito poder sobre as nossas vidas.
Diante
dessas manifestações, sentimo-nos intimidados. As ações e reações deste ser podem
ter um impacto muito grande nas nossas vidas. Por isso mesmo, dizem-nos os "experts", é
preciso ser cuidadoso com ele, ter atitudes positivas para com ele, aplacar a
sua irritação, a sua ansiedade, o seu estresse. Se for necessário, também será
preciso oferecer-lhe sacrifícios para que ele não nos faça mal.
O que
será essa entidade? Será ela algo real ou imaginário? Ela sempre existiu? Qual
é a origem dela? Por que ela é tão poderosa e misteriosa? É possível
compreendê-la? A quem ela serve? Quais as consequências para a vida das
pessoas? Ela deve ser aceita como algo natural ou pode ser questionada e
eliminada? Podemos viver sem mercado?
Muitas
perguntas. Vamos tentar responder de maneira bem acessível.
2. Um pouco de
história
Você
nasce em uma determinada sociedade onde tudo é mercantil e aparentemente
natural. Essa é a sociedade capitalista. Tudo nela parece natural. É natural
comprar e vender coisas. É natural haver patrões e trabalhadores. É natural
haver ricos e pobres. É natural haver dinheiro. É natural haver propriedade
privada. É natural haver salários. Tudo parece natural, isto é, que sempre existiu
e que não poderia ser diferente.Frequentemente
ouvimos expressões como estas: O mercado está ansioso, o mercado está com
expectativas, o mercado não gostou, o mercado está estressado, o mercado reagiu
mal ou bem.
Mas,
será mesmo assim? Para o peixe, que nasce dentro da água, o ambiente no qual
ele vive lhe parece natural. Mesmo se pudesse pensar, ele não teria a menor
ideia de que as coisas pudessem ser diferentes. Para poder questionar a
situação dele, ele teria que poder sair da água, ver as coisas de fora, de
outro ponto de vista. O peixe não pode, mas nós podemos. Por quê? Porque somos
humanos e não animais. Como? Examinando o processo histórico. Não partindo da
situação atual e transferindo para toda a história, mas partindo do começo da
história da humanidade e, nisto, tomando por base uma atividade que deu origem
à humanidade e sem a qual ela não poderia continuar a existir.
Refiro-me
à atividade de trabalho. Como surgiu a humanidade? Quando um tipo de primata
começou a trabalhar, isto é, a transformar intencionalmente a natureza, surgiu
esse novo tipo de ser que somos nós, o ser social, a humanidade. Isso nos diz
que o trabalho não só transforma a natureza, mas também transforma o ser
humano. A consequência disso é que toda a realidade social, tanto aquela que
está fora de nós, como aquela que está dentro de nós (nossa natureza, nossos
desejos, sentimentos, ideias, afetos, etc.), tudo é resultado da nossa
atividade social. Nada há de natural. Tudo, absolutamente tudo, é produzido
pelos seres humanos ao longo do processo histórico.
Então,
se nada é natural, isto é, produzido pela natureza, mas pela nossa atividade,
como é que as coisas aconteceram? Vamos à história, ainda que em grandes
passadas.
Segundo
as últimas pesquisas, a humanidade tem por volta de 100 mil anos. Durante mais ou
menos 85 mil anos não havia nem ricos nem pobres, nem propriedade privada, nem
dinheiro, obviamente não havia salários, não havia patrões e trabalhadores, não
havia compra e venda de nada. Portanto, não havia mercado. Como, então, se
davam as coisas? Bom, inicialmente, a humanidade era constituída de pequenos
grupos nômades. Esses pequenos grupos extraíam da natureza as coisas de que
precisavam para satisfazer as suas necessidades. Durante muito tempo, esses
grupos estavam isolados e só produziam o que consumiam. Não havia sobras. Com o
tempo, grupos diferentes começaram a entrar em contato uns com os outros. Isso
levou à constatação de que cada grupo dispunha de coisas diferentes, que
poderiam interessar a outros grupos. Começou, então, a troca. Mas, atenção: as
coisas eram produzidas para atender as necessidades das pessoas e não para
serem trocadas. Só era trocado algo que sobrava e poderia ser útil para algum
grupo.
Lembremos
que é da natureza do trabalho humano poder produzir sempre algo novo, diferente.
Isso possibilitou que, ao longo de milhares de anos, os seres humanos pudessem desenvolver
conhecimentos, técnicas e ferramentas que lhes permitiram melhorar cada vez
mais a produção de coisas para suprir as suas necessidades.
Resumindo
um processo longo e complexo. Durante milhares de anos as coisas eram produzidas
para satisfazer as necessidades humanas e só poucas coisas eram trocadas. E,
mesmo assim, a troca não era realizada por intermédio de dinheiro. Este não
existia. As coisas eram trocadas por outras coisas. Por exemplo, facas ou
machados de pedra lascada ou polida por peles de animais. Na medida em que se
ampliava a produção, mais coisas ficaram disponíveis para serem trocadas.
Continua na próxima sexta-feira
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