segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

O Deus Mercado (I)

Deus acima de todos! Eis uma frase que nos quatro anos mais recentes foi exaustivamente repetida neste país por uma estranha criatura que se proclama um emissário divino (sic). Em termos de localização de Deus em relação a todos, entendo que existem, basicamente, duas localizações: entre todos ou acima de todos.
A primeira, defendida por aqueles para quem um dos atributos de Deus é considerar que, em termos de direitos sociais, todas as suas criaturas estão em um mesmo nível. Sendo assim, a crescente desigualdade social engendrada por alguns integrantes deste mundo por ele criado não faz o menor sentido. Então, com a intenção de fazer suas criaturas perceberem a estupidez de tal desigualdade e consequentemente levá-las a engajarem-se na sua desconstrução, ele coloca-se entre todos.
A segunda, defendida por aqueles para quem Deus é chegado a alguns atributos humanos, entre eles o de aceitar que, em termos de direitos sociais, as pessoas sejam consideradas em diferentes níveis e o de reagir mal quando se é contrariado. Sendo assim, a crescente desigualdade social existente é algo perfeitamente natural contra a qual não se deve rebelar para evitar sofrer os efeitos de sua atemorizante reação. Então, com a intenção de desestimular as pessoas a engajarem-se na desconstrução dessa indecente desigualdade, ele foi colocado acima de todos, em local inalcançável.
O Deus que, por si, coloca-se entre todos não tem nome. O Deus que, pelas criaturas, foi colocado acima de todos é denominado Mercado. Esta postagem mais as duas seguintes espalham uma autêntica aula de Ivo Tonet sobre o que é o Deus Mercado, publicada em junho de 2016 e encontrável em https://ivotonet.xp3.biz/arquivos/O_DEUS_MERCADO.pdf.
O Deus Mercado
1. Introdução
Frequentemente ouvimos expressões como estas: O mercado está ansioso, o mercado está com expectativas, o mercado não gostou, o mercado está estressado, o mercado reagiu mal ou bem.
Esse tal de mercado parece uma pessoa, pois essas expressões são típicas de sentimentos de pessoas humanas. Mas, além disso, ele parece ser uma entidade muito poderosa, misteriosa e com qualidades super-humanas. Uma entidade que parece ter muito poder sobre as nossas vidas.
Diante dessas manifestações, sentimo-nos intimidados. As ações e reações deste ser podem ter um impacto muito grande nas nossas vidas. Por isso mesmo, dizem-nos os "experts", é preciso ser cuidadoso com ele, ter atitudes positivas para com ele, aplacar a sua irritação, a sua ansiedade, o seu estresse. Se for necessário, também será preciso oferecer-lhe sacrifícios para que ele não nos faça mal.
O que será essa entidade? Será ela algo real ou imaginário? Ela sempre existiu? Qual é a origem dela? Por que ela é tão poderosa e misteriosa? É possível compreendê-la? A quem ela serve? Quais as consequências para a vida das pessoas? Ela deve ser aceita como algo natural ou pode ser questionada e eliminada? Podemos viver sem mercado?
Muitas perguntas. Vamos tentar responder de maneira bem acessível.
2. Um pouco de história
Você nasce em uma determinada sociedade onde tudo é mercantil e aparentemente natural. Essa é a sociedade capitalista. Tudo nela parece natural. É natural comprar e vender coisas. É natural haver patrões e trabalhadores. É natural haver ricos e pobres. É natural haver dinheiro. É natural haver propriedade privada. É natural haver salários. Tudo parece natural, isto é, que sempre existiu e que não poderia ser diferente.Frequentemente ouvimos expressões como estas: O mercado está ansioso, o mercado está com expectativas, o mercado não gostou, o mercado está estressado, o mercado reagiu mal ou bem.
Mas, será mesmo assim? Para o peixe, que nasce dentro da água, o ambiente no qual ele vive lhe parece natural. Mesmo se pudesse pensar, ele não teria a menor ideia de que as coisas pudessem ser diferentes. Para poder questionar a situação dele, ele teria que poder sair da água, ver as coisas de fora, de outro ponto de vista. O peixe não pode, mas nós podemos. Por quê? Porque somos humanos e não animais. Como? Examinando o processo histórico. Não partindo da situação atual e transferindo para toda a história, mas partindo do começo da história da humanidade e, nisto, tomando por base uma atividade que deu origem à humanidade e sem a qual ela não poderia continuar a existir.
Refiro-me à atividade de trabalho. Como surgiu a humanidade? Quando um tipo de primata começou a trabalhar, isto é, a transformar intencionalmente a natureza, surgiu esse novo tipo de ser que somos nós, o ser social, a humanidade. Isso nos diz que o trabalho não só transforma a natureza, mas também transforma o ser humano. A consequência disso é que toda a realidade social, tanto aquela que está fora de nós, como aquela que está dentro de nós (nossa natureza, nossos desejos, sentimentos, ideias, afetos, etc.), tudo é resultado da nossa atividade social. Nada há de natural. Tudo, absolutamente tudo, é produzido pelos seres humanos ao longo do processo histórico.
Então, se nada é natural, isto é, produzido pela natureza, mas pela nossa atividade, como é que as coisas aconteceram? Vamos à história, ainda que em grandes passadas.
Segundo as últimas pesquisas, a humanidade tem por volta de 100 mil anos. Durante mais ou menos 85 mil anos não havia nem ricos nem pobres, nem propriedade privada, nem dinheiro, obviamente não havia salários, não havia patrões e trabalhadores, não havia compra e venda de nada. Portanto, não havia mercado. Como, então, se davam as coisas? Bom, inicialmente, a humanidade era constituída de pequenos grupos nômades. Esses pequenos grupos extraíam da natureza as coisas de que precisavam para satisfazer as suas necessidades. Durante muito tempo, esses grupos estavam isolados e só produziam o que consumiam. Não havia sobras. Com o tempo, grupos diferentes começaram a entrar em contato uns com os outros. Isso levou à constatação de que cada grupo dispunha de coisas diferentes, que poderiam interessar a outros grupos. Começou, então, a troca. Mas, atenção: as coisas eram produzidas para atender as necessidades das pessoas e não para serem trocadas. Só era trocado algo que sobrava e poderia ser útil para algum grupo.
Lembremos que é da natureza do trabalho humano poder produzir sempre algo novo, diferente. Isso possibilitou que, ao longo de milhares de anos, os seres humanos pudessem desenvolver conhecimentos, técnicas e ferramentas que lhes permitiram melhorar cada vez mais a produção de coisas para suprir as suas necessidades.
Resumindo um processo longo e complexo. Durante milhares de anos as coisas eram produzidas para satisfazer as necessidades humanas e só poucas coisas eram trocadas. E, mesmo assim, a troca não era realizada por intermédio de dinheiro. Este não existia. As coisas eram trocadas por outras coisas. Por exemplo, facas ou machados de pedra lascada ou polida por peles de animais. Na medida em que se ampliava a produção, mais coisas ficaram disponíveis para serem trocadas.
  Continua na próxima sexta-feira

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