"Não é necessário ter os objetos. Pudemos comprovar que o mero contato com artigos de luxo afeta as decisões. Trabalhar em um ambiente rodeado por eles mexe com a cognição. Uma reunião de negócios em uma sala modesta pode chegar a conclusões totalmente distintas de uma realizada em um escritório com piso de mármore e telões de plasma. Quem convive com carros esportivos, relógios caros e roupas de grife toma mais decisões em interesse próprio."
Extraído da entrevista reproduzida na postagem anterior, enxergo o
parágrafo acima como capaz de validar a conclusão de Roy Chua que empresta título à referida entrevista: "O acesso ao luxo nos torna egoístas". Conclusão embasada em "três experimentos
que exploram a ligação entre os produtos que simbolizam o luxo e as atitudes
egoístas". Experimentos realizados com estudantes
universitários divididos em dois grupos aos quais foram exibidos grupos de
fotos e de vídeos. Para um deles, fotos e vídeos de produtos luxuosos. Para o
outro, imagens de produtos baratos e de segunda mão. Experimentos que, no meu
entender, sugerem que, além de nos tornar egoístas, o acesso ao luxo pode nos
tornar piores em outras coisas, e eu explico.
Ao revelar que diante da indagação:
"se colocariam no mercado um carro
com possíveis problemas mecânicos, lançariam um software com falhas ou um jogo
de videogame que induzisse à violência", quatro em cinco dos integrantes do grupo exposto às
imagens de itens luxuosos responderam afirmativamente, o primeiro experimento
leva-me a concluir que, além de nos tornar egoístas, o acesso ao luxo nos torna
perversos. Afinal, considerando que egoísmo consiste, basicamente, em querer
apenas para si tudo o que há de melhor, entendo que, consentir em lançar algo
que seja prejudicial aos demais, ou seja, em disponibilizar para todos o que há
de pior, é mais do que um ato de egoísmo, é também um ato de perversidade.
Ao revelar que diante de duas
situações: "uma em que a pessoa deveria
contribuir para resolver um problema público, outra em que poderia se
beneficiar de dinheiro público, o grupo exposto a artigos de luxo deu menos e
pegou mais do que o outro grupo.", o terceiro experimento
leva-me a concluir que, que, além de nos tornar egoístas, o
acesso ao luxo nos torna desonestos. Afinal, beneficiar-se de dinheiro que deve
ser usado em conformidade com o interesse coletivo, é mais do que um ato de
egoísmo, é também um ato de desonestidade.
Ao afirmar que "uma reunião de negócios em uma sala modesta pode chegar a
conclusões totalmente distintas de uma realizada em um escritório com piso de
mármore e telões de plasma.",
Roy Chua faz-me lembrar de algo dito pelo antropólogo e escritor Roberto
DaMatta (1936) em um antigo artigo publicado em sua coluna no jornal o Estado de S. Paulo. O que ele disse?
Algo mais ou menos assim: o que leva os governantes a tomarem as decisões
equivocadas que costumam tomar é o fato de governantes serem colocados em
palácios. Ou seja, será que faz algum sentido esperar que decisões tomadas por
indivíduos que vivem em palácios considerem o atendimento de necessidades de quem
sobrevive em casas modestas, em barracos e daqueles que não têm casa?
Na estrutura funcional da empresa
em que trabalhei havia chefias de setores, chefias de divisão, adjuntos (nunca
consegui descobrir qual deles era o adnominal e qual era o adverbial),
superintendentes e por aí acima. E a partir do momento em que um funcionário
era nomeado chefe de divisão ele ganhava um banheiro privativo. Ou seja, a
partir daquele momento, ele passava a ter acesso ao luxo de poder fazer merda
sem o testemunho de seus subordinados. Fazer merda, sem tal testemunho, literalmente,
pois, no sentido figurado, ele poderia continuar fazendo como mostra o relato
apresentado a seguir.
Tendo
sido criado um bônus que, teoricamente, deveria ser distribuído entre os
funcionários em conformidade com a relevância do que tivessem feito no ano mais
recente, em uma reunião realizada com os integrantes da divisão em que eu
estava lotado, explicando o critério adotado para dividir o bônus, o chefe da
divisão disse algo mais ou menos assim: da quantia estabelecida para o bônus, o
chefe ficará com 30%, por ser chefe. Critério que faz-me lembrar de um antigo
ditado que diz que: "Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte,
ou é tolo ou não tem arte." Ou seja, ali estava alguém que tem arte. Arte
para exercer a prática da divisão. Até porque seu próprio cargo já lhe dava
essa competência. Afinal, tratava-se de um chefe de divisão. Há ocasiões em que
a única coisa em que vejo sentido é o deboche!
E a prática do velho método das recordações sucessivas ataca outra
vez. Ao adotar o critério citado no parágrafo anterior, aquele chefe de divisão
fez-me lembrar de algo denominado meritocracia. Algo que independentemente do
significado que vocês possam encontrar a ele atribuído, na prática, significa o
seguinte: atribuir a si próprio o merecimento das coisas que lhe convêm.
Aquele chefe era um autêntico praticante da meritocracia.
Encerrando estas reflexões
provocadas pelo instigante artigo de Roy Chua, seguem alguns trechos dela
selecionados com intenção de ajudar-nos a descobrir qual seja o comportamento mais
salutar ao lidar com o acesso que tenhamos ao luxo.
"A exposição a bens luxuosos pode ativar uma 'norma social' que obriga as pessoas a perseguir seus próprios interesses – pessoais, profissionais, ou ambos – acima de tudo. Mesmo que isso tenha de ser feito à custa de outras pessoas. É provável que essa norma social afete o julgamento e a tomada de decisão dessas pessoas.""Não estamos dizendo que o luxo induz necessariamente um comportamento maldoso em relação ao próximo. Apenas que ele aumenta, e muito, a indiferença quanto ao bem-estar dos outros. Quando rodeadas de luxo, as pessoas tendem a focar suas decisões naquilo que é melhor para elas e para suas empresas.""Pudemos comprovar que o mero contato com artigos de luxo afeta as decisões.""Claro que nem todos se comportam da mesma forma. Mas tanto o luxo quanto o dinheiro alteram as atitudes e as decisões das pessoas."
Considerando "que nem todos se comportam da mesma forma", que tal nos engajarmos na prática de atitudes e
decisões menos egoístas e mais em conformidade com os interesses da
coletividade. Afinal, considerando que, neste percurso que a gente chama de
vida, cada um de nós depende da cooperação de inúmeras pessoas, entendo que a construção
de algo que faça jus ao termo civilização jamais será possível sem a colocação
em prática de algo dito no título do livro da economista Minouche Shafik (1962),
publicado em 2021: Cuidar Uns Dos Outros.
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