"Há muita gente especializada que, sem ser sábio, sabe alguma coisinha. O diabo é que, quanto mais aprofundam no saber do que sabem, mais ignorantes ficam no resto."
Extraído do surpreendente texto de Darcy Ribeiro, o parágrafo acima faz-me lembrar do que escrevi na seção do blog em que é descrito o perfil de seu mantenedor. Atendendo à solicitação de apontar meus livros favoritos, respondi assim:
"É difícil apontar meus livros favoritos e leio sobre vários assuntos, pois creio que é melhor saber um pouco de tudo do que tudo sobre um pouco. Acredito que a especialização seja um dos grandes males da civilização, pois a vida é sistêmica e jamais será entendida enquanto não a olharmos como um conjunto de partes inter-relacionadas e nos interessarmos por todas as suas partes."
Ou seja, concordo plenamente com o que diz Darcy Ribeiro no primeiro parágrafo desta postagem. E também com o que é dito por ele no próximo.
"Às vezes, até penso que quem sabe mesmo é o povo, ou as pessoas que não sabem nada. Mas cada um se vira com o pouco que sabe para ganhar a vida. Se todos os sábios do mundo desaparecessem amanhã, não fariam muita falta. Se o povo acabasse, isso sim seria um desastre. Os sábios morreriam de fome e de sede."
"Se o povo acabasse, isso sim seria um desastre. Os sábios morreriam de fome e de sede." Publicadas em 1995 em seu livro "Noções de Coisas", considero essas palavras de Darcy Ribeiro validadas durante o período crucial da pandemia que recentemente assolou este insano planeta, e eu explico.
Embora o êxito no combate a COVID deva-se às vacinas desenvolvidas para enfrentá-la (embora haja quem negue-se a tomá-las), creio que seja inegável que sem a participação daqueles indivíduos que, no período crucial da pandemia (quando a recomendação era de que quem pudesse ficasse em casa para não aumentar ainda mais a propagação da doença e levar a rede hospitalar a um colapso), sem poderem ficar em casa tiveram que expor-se ao vírus, pois sem o seu trabalho, como diria Darcy Ribeiro, "os sábios morreriam de fome e de sede", e consequentemente o desenvolvimento de vacinas teria se tornado algo impossível. Indivíduos que, no referido período, chegaram a receber a denominação de "essenciais". Lembram disso?
"Trate de aprender tudo que puder. Saber não ocupa lugar. Ignorância, sim. A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser. Ela está menos nos livros que nos fazimentos, por isso se diz que quem sabe faz; quem não sabe, ensina.", diz Darcy Ribeiro.
E diante do que diz Darcy Ribeiro sobre o que e como aprender, o velho método das recordações sucessivas leva-me a trazer para estas reflexões uma inesquecível afirmação de Alex Periscinoto (1925 - 2021), um destacado publicitário brasileiro. Qual é a afirmação? "Mais vale o que se aprende que o que te ensinam". Afirmação que, à luz do que diz Darcy Ribeiro ("A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser"), interpreto da seguinte forma. Mais vale o que se aprende (por estar em conformidade com o que te interessa) que o que te ensinam (por, na maioria das vezes, estar em conformidade com o que interessa a quem te ensina).
Sim, "Saber demais não ocupa lugar", e há inclusive um lugar que saber demais pode até impedir de ocupar. Que lugar é esse? É o lugar destinado ao desenvolvimento da consciência. E sem a consciência desenvolvida a consequência é o indivíduo tornar-se alguém que interessa-se apenas por si mesmo sem importar-se com a coletividade. Sim, "A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser", inclusive para aprender a usar o saber, pois é nisso que consiste a sabedoria: usar adequadamente o saber.
"Se o mundo fosse acabar outra vez, num dilúvio, que faria o novo Noé da barca, para salvar a humanidade? Escolha você entre duas soluções. A primeira seria pegar dez sábios de cada profissão, formados em universidades, e levá-los para uma morraria deserta com seus livros e instrumentos de trabalho. A segunda seria catar na feira uns mil feirantes com suas mercadorias e carregar para o mato. Quem salvaria a humanidade?"
O parágrafo final do surpreendente texto de Darcy Ribeiro (reproduzido imediatamente acima) solicita que façamos uma escolha. Sendo assim, vamos a ela. Minha escolha é pela segunda opção. Escolha baseada não em opiniões, mas sim em observações. Observações de demonstrações dadas por aqueles que Darcy Ribeiro chama de povo. A primeira demonstração já foi citada acima quando me referi à atuação dos "essenciais" durante o período crucial do combate a COVID. A segunda demonstração ocorreu em 30 de outubro de 2022, dia decisivo para tentar salvar a democracia neste país. Demonstração que levou o jornalista Reinaldo Azevedo a publicar, no dia seguinte à votação referente ao segundo turno da eleição presidencial, um vídeo intitulado "Os pobres e os nordestinos salvaram a democracia brasileira."
O espalhamento do surpreendente texto de Darcy Ribeiro, que já esteve para ocorrer em outras ocasiões, tornou-se inevitável após a simples leitura do título do vídeo de Reinaldo Azevedo. Por quê? Porque ao dizer que foram os pobres (aqueles que Darcy Ribeiro chama de povo) que salvaram a democracia brasileira, Reinaldo levou-me a concluir que se dependesse exclusivamente daqueles que Darcy chama de Doutores ela teria sucumbido. Levando-me a lembrar do texto de Darcy, em um momento tão crucial, o título do vídeo de Reinaldo tornou inadiável seu espalhamento.
Embora, diante da hipotética situação proposta por Darcy Ribeiro e das duas opções de solução por ele oferecidas, eu tenha escolhido uma delas, e até explicado minha escolha, entendo que, nestas reflexões, ainda cabem alguns esclarecimentos.
Assim como no combate a COVID, em que o enfrentamento do problema começou com "os essenciais" e prosseguiu com os desenvolvedores de vacinas, entendo que, no caso da hipotética situação apresentada por Darcy Ribeiro, o enfrentamento começaria pela atuação dos feirantes, porém prosseguiria com a atuação dos sábios. Por que digo isto? Porque entendo que a solução de qualquer problema coletivo envolve sempre mais de uma etapa e mais de um solucionador, embora a tendência seja considerar como solucionadores aqueles que primeiro se dispuseram a enfrentar o problema, porém as coisas não são bem assim, e eu explico.
A solução de qualquer problema que afete uma coletividade começa pela atuação de alguns de seus integrantes, porém precisa prosseguir pela atuação de outros, pois a solução de qualquer problema coletivo é algo que requererá sempre a participação da coletividade. Como algumas vezes já disse neste blog, entendo a vida como algo sistêmico o que consequentemente a torna algo cuja preservação depende de salutares inter-relações entre tudo e todos que dela são parte.
Portanto, tanto no caso real do combate a COVID quanto na hipotética situação apresentada por Darcy Ribeiro, como também em qualquer outro problema coletivo, entendo que a solução requererá sempre a participação tanto do povo quanto dos Doutores; cada qual na sua vez e em conformidade com suas aptidões. Compreendido, Doutores?
Nenhum comentário:
Postar um comentário