terça-feira, 8 de novembro de 2022

Doutores

O texto espalhado por esta postagem foi extraído do livro "Noções de Coisas". Livro sobre o qual o jornalista e escritor Daniel Piza (1970 – 2011) publicou, em 09 de maio de 1995 (faz tempo, hein!), um artigo intitulado "Darcy Ribeiro faz obra-prima para jovens". Artigo do qual extraí os seis próximos parágrafos.
Antes de se tornar unanimidade nacional, Darcy Ribeiro, antropólogo, etnólogo, educador, ficcionista, poeta, escreveu um livro surpreendente: "Noções de Coisas". A surpresa está no gênero do livro - voltado ao público juvenil, que, segundo a editora, é o que está na faixa de 11 a 16 anos - e na qualidade. Nunca no país se viu livro juvenil não-ficcional tão bom quanto "Noções de Coisas".
Darcy Ribeiro fez um livro cheio de humor e provocação, com linguagem leve e esperta. Não é professoral, não trata o adolescente como bocó, não banaliza o texto. Fala para o jovem dos anos 90. Como conseguiu isso aos 72 anos, ninguém sabe.
Darcy se inspirou em Rui, no livro "Lições de Coisas", para escrever seu "Noções de Coisas". A diferença de "lições" para "noções" traduz a intenção do antropólogo: não expelir regras, estimular o jovem a pensar.
"Trate de aprender tudo que puder", escreve Darcy Ribeiro no capítulo "Doutores". "Saber demais não ocupa lugar. Ignorância, sim." E esse é o grande mérito do livro: mostrar que o conhecimento não é uma via-crúcis, uma obrigação cumulativa, mas que é divertido e fundamental.
"Ocupado em ler e escrever", diz ele, "eu me fechei para o mundo. Virei um erudito, come-papel, que não sabe dançar nem se divertir e não é capaz de fazer nada com as mãos, nem a comida que come."
"Daí sua ênfase em ciências - matemática, biologia, geografia, antropologia e ecologia. "Viva aceso", aconselha, "olhando e conhecendo o mundo que o rodeia, aprendendo." Como um índio, completa o antropólogo. "Seja um índio na sabedoria." E dá a receita: "Só resta uma saída: é  brigar para construir no futuro uma sociedade de tecnologia muito avançada, mas com o gosto de viver a cordialidade, o respeito recíproco e a liberdade que os índios tinham."
"Noções de coisas" é um livro que fala sobre 36 coisas. Para espalhar por meio desta postagem, escolhi a segunda delas, intitulada "Doutores". Seu espalhamento já deveria ter ocorrido há muito tempo, porém deste momento ele não deveria passar. Mas isso é algo que será explicado na próxima postagem ("Reflexões provocadas por 'Doutores'").
Doutores
Há muita gente especializada que, sem ser sábio, sabe alguma coisinha. O diabo é que, quanto mais aprofundam no saber do que sabem, mais ignorantes ficam no resto. Os advogados sabem como enrolar as leis para defender criminosos e ladrões. Vez por outra, defendem um inocente, também. Os médicos sabem algumas doenças, mas ignoram as outras todas. São muito sujeitos à moda. Quando dão de operar amígdalas, arrancam amígdalas de todo mundo. O mesmo fazem quando a moda é operar apêndice. Agora, acham que todo mundo está loucão e precisa de pílulas tranquilizantes, ou psico-qualquer-coisa.
Para procurar médico, a gente precisa, primeiro, prestar atenção para ver que doença tem, senão gasta muito dinheiro à toa. Ir a um otorrinolaringologista com dor nos rins é perda de tempo: eles só sabem de otites, de dor de garganta e de espirro desenfreado. Os ortopedistas encanam perna quebrada direitinho, mas não sabem nada de quem sofre do coração. Os engenheiros também são especializados demais: o que sabe fazer pontes só faz pontes; o que sabe fazer casas só faz casas.
Às vezes, até penso que quem sabe mesmo é o povo, ou as pessoas que não sabem nada. Mas cada um se vira com o pouco que sabe para ganhar a vida. Se todos os sábios do mundo desaparecessem amanhã, não fariam muita falta. Se o povo acabasse, isso sim seria um desastre. Os sábios morreriam de fome e de sede.
Trate de aprender tudo que puder. Saber demais não ocupa lugar. Ignorância, sim. A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser. Ela está menos nos livros que nos fazimentos, por isso se diz que quem sabe faz; quem não sabe, ensina.
Se o mundo fosse acabar outra vez, num dilúvio, que faria o novo Noé da barca, para salvar a humanidade? Escolha você entre duas soluções. A primeira seria pegar dez sábios de cada profissão, formados em universidades, e levá-los para uma morraria deserta com seus livros e instrumentos de trabalho. A segunda seria catar na feira uns mil feirantes com suas mercadorias e carregar para o mato. Quem salvaria a humanidade?
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"Um livro voltado para o público juvenil que, segundo a editora, é o que está na faixa de 11 a 16 anos". Um livro que, segundo eu, apresenta uma indagação que deveria dar o que pensar para a maioria daqueles que o lerem. Principalmente para aqueles que já tiverem saído da faixa citada pela editora.
Quem vocês acham que salvaria a humanidade? Na próxima postagem ("Reflexões provocadas por 'Doutores'") digo-lhes quem eu acho que a salvaria. Compreendido?

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