segunda-feira, 30 de maio de 2022

O resultado do foco no resultado

Há uma "estrutura" de frase que é mais ou menos assim: "Dizem que a gente pode até sair do (a) ..., mas o (a) ... nunca sai da gente". Aplicada ao mundo corporativo, tal "estrutura" fica assim: Dizem que a gente pode até sair do mundo corporativo, mas o mundo corporativo nunca sai da gente. Comprovando tal afirmação, onze anos e meio após ter saído de tal mundo, depois de nele ter atuado durante 3,7 décadas, ao ver no You Tube um vídeo do advogado, jornalista e professor universitário Clóvis de Barros Filho falando sobre ele, não consegui conter minha vontade de espalhar a ideia por ele focalizada. Segue o endereço do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=SUr9rcZulWE.

O resultado do foco no resultado
No mundo das empresas é comum o termo ética de resultado. Essa expressão encontra na filosofia uma terminologia semelhante: consequencialismo moral. Qual é a ideia? Que o valor de uma conduta não se encontra na conduta, mas nos seus resultados, nas suas consequências. Portanto, na hora de avaliar a conduta, basta saber se alcançamos o que queríamos alcançar; basta saber a natureza dos resultados. Se os resultados foram bons, a conduta foi boa; se os resultados não foram os desejados, a conduta foi ruim. Ora, essa maneira de pensar é absolutamente consagrada. A expressão foco no resultado entre os valores dos banners corporativos é unanimemente aceita, mas há riscos de pensar assim.
Um vendedor sai pela manhã pra vender. Na porta da loja, o dono lhe deseja boa sorte. O vendedor então encontra o seu primeiro cliente. Então apresenta os atributos positivos e negativos do produto que está vendendo. Diríamos que o seu discurso é perto daquilo que ele considera a verdade sobre aquele produto. E por conta dos negativos o cliente se assusta e não o adquire.
Então o vendedor encontra um segundo cliente. Enfatiza os aspectos positivos e dá uma resumida, uma enxugada nos aspectos negativos. O cliente se vê mais atraído pela conversa do vendedor, mas ainda assim não compra.
É chegada a hora do almoço, o vendedor começa a se preocupar. Afinal de contas o valor da ação de um vendedor está no resultado venda. É preciso vender e, portanto, é em relação a isso que será avaliado.
O primeiro cliente depois do almoço aparece. E ele então coloca todo o seu empenho nos aspectos positivos do produto, e silencia. O cliente então pergunta - Mas esse produto não tem nenhum inconveniente? E aí então o vendedor contempla o comprador. E aí o vendedor hesita. E o vendedor se contorce. Até porque um dos principais aspectos negativos daquele produto é a inadequação a um cliente mais idoso. Caso do nosso terceiro cliente. E o vendedor, na última hora, diz: não, não serve pra você.
Só lhe resta uma bala na agulha. Ele encontra o quarto cliente. Ele então coloca toda a sua força nos aspectos positivos, nada diz sobre os negativos, e quando o cliente pergunta – E aí, mas não tem nada de errado com isso? Ele olha e garante: não, não há nada de errado, o produto é perfeito! Pois este vendedor, neste momento, tornou-se um publicitário.
Agora ele vende, e agora ele volta em triunfo pra loja. O dono da loja o espera e pergunta – E aí, vendeu? Afinal de contas é pelo resultado que se avalia a conduta. E ele diz: vendi. Então, ele é premiado, ganha bônus, ganha prêmios, sua foto vai pro boletim interno da empresa. E ele tenta dizer - mas chefe, eu preciso te dizer o que eu tive de fazer pra vender. Um bom vendedor jamais revela seus segredos, guarde isso pra você. E aí, como filho dileto do dono da empresa, vendedor símbolo e referência daquela loja, lá sai ele para o dia seguinte de trabalho, mas agora ele já sabe: é preciso mentir desde as oito da manhã.
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"No mundo das empresas é comum o termo ética de resultado. (...) Qual é a ideia? Que o valor de uma conduta não se encontra na conduta, mas nos seus resultados, nas suas consequências. (...) Ora, essa maneira de pensar é absolutamente consagrada. A expressão foco no resultado entre os valores dos banners corporativos é unanimemente aceita, mas há riscos de pensar assim.", diz Clóvis de Barros Filho.
Sim, há riscos de pensar assim, até porque a aceitação unânime, do que quer que seja, geralmente, decorre da atenção insuficiente que é dada ao que é unanimemente aceito. E quando não se dá a devida atenção a determinadas coisas, os resultados, principalmente em termos de coletividade, costumam ser desastrosos.
"Afinal de contas o valor da ação de um vendedor está no resultado venda. É preciso vender e, portanto, é em relação a isso que será avaliado.", diz Clóvis de Barros.
E neste planeta habitado por uma pretensa espécie inteligente do universo, infelizmente, a imensa maioria de seus integrantes é composta de vendedores. Vendedores de produtos, de serviços e, em última análise, de si mesmos. Portanto, como diz Clóvis de Barros, é como vendedor que se é avaliado. Ou pior, como publicitário, ainda segundo Clóvis, como se pode conferir no trecho reproduzido no próximo parágrafo.
"Ele olha e garante: não, não há nada de errado, o produto é perfeito! Pois este vendedor, neste momento, tornou-se um publicitário. Agora ele vende e agora ele volta em triunfo pra loja. (...) E aí, como vendedor símbolo e referência daquela loja, lá sai ele para o dia seguinte de trabalho, mas agora ele já sabe: é preciso mentir desde as oito da manhã."
Saber que é preciso mentir desde as oito da manhã! Ou seja, saber que é preciso mentir desde a hora em que se começa a interagir com pessoas. Precisar mentir para ser bem avaliado! Será isso que Clóvis de Barros enxerga como "o resultado do foco no resultado"? Precisar enganar pessoas durante todo o tempo?
"Meu trabalho é uma grande enganação. Sou paga para enganar as pessoas e elas querem ser enganadas".
De quem são as palavras acima? De uma talentosa colega de profissão: a atriz Ana Paula Arósio. Onde as encontrei? Em uma reportagem publicada na edição de 26 de fevereiro de 2008 do jornal Folha de São Paulo. A quem espantar-se por tê-la chamado de colega de profissão, digo o seguinte: Ana Paula é atriz de televisão, de cinema e de teatro; eu fui ator do teatro corporativo. Em ambos – televisão e teatro corporativo – o trabalho é cada vez mais uma grande enganação.
Durante 3,7 décadas de atuação como analista de sistemas, o que presenciei em termos de enganação no teatro corporativo é algo impressionante. Analistas enganando usuários com o estabelecimento de prazos para entrega de sistemas que não conseguiriam cumprir. Analistas enganando usuários com a alegação de que os sistemas foram mal feitos porque eles (os usuários) não sabiam o que queriam. Analistas enganando a si mesmos com o entendimento (sic) de que sua função é desenvolver sistemas de informações a partir do que os usuários querem, e não a partir do que os usuários precisam para auxiliá-los em suas tarefas do dia a dia. Profissionais enganando sabe Deus quem com a aceitação de cargos de chefia para os quais não tinham aptidão necessária para exercer. E tome enganação! Até porque, paga-se mais a quem mais engana, e neste planeta em que o dinheiro é colocado à frente de qualquer outra coisa o que a grande maioria de seus integrantes mais deseja é ganhar cada vez mais.
Vocês concordam que a vontade de redigir o parágrafo acima confirma a veracidade de algo dito no primeiro: "A gente pode até sair do mundo corporativo, mas o mundo corporativo nunca sai da gente."? E que todos os parágrafos acima servem como uma comprovação de que, realmente, "há riscos de pensar" à luz da expressão "foco no resultado", unanimemente aceita no mundo corporativo? E que "o resultado do foco no resultado" defendido, ou melhor, atacado por Clóvis de Barros Filho em seu vídeo no You Tube deve ser suficiente para fazer-nos "pensar melhor" sobre "saber que é preciso mentir desde as oito da manhã"? Será que "saber tal coisa" pode ser uma das causas da estonteante insanidade que assola este planeta? Insanidade que enxergo como uma das causas do estupendo (ou seria estúpido) sucesso alcançado por coisas tão nocivas como a propagação de fake news. Será que enxergo corretamente? Será que vale a pena refletir sobre as indagações propostas neste parágrafo?
E ao usar a expressão "vale a pena" vem-me à mente a postagem publicada em 29 de abril de 2011 do blog Lendo e opinando sob o título "A verdade sobre a mentira". Diante de tudo o que é dito por Clóvis de Barros Filho, eu estaria mentindo se dissesse que não vale a pena lê-la.

Um comentário:

Homerix disse...

Fazia tempo que não visitava seu blog, e vejo, por esta publicação recentíssima, que aquele tempo foi um tempo perdido. Passar semanalmente em seu blog para ler textos como este decerto voltará a ser uma prática minha,

Fantástico desenvolvimento seu a partir de um vídeo de Clóvis, que ainda vu ver, mas senti necessidade antes de registrar minha admiração, e dizer que vou divulgar frequentemente seus textos.... começando por este. Um espetáculo!

E um soco no estômago. Acho que em qualquer profissão... como você bem descreveu dando exemplos do analista...

Obrigado