Continuação de quarta-feira
Um ruído
metálico atravessou o ar antes de o governador começar a falar: "Cidadãos, fomos informados que à zero hora de hoje todos
os trabalhadores civis simplesmente desapareceram. Eles abandonaram seus postos
de trabalho, seus locais de estudo e residências e deixaram nosso país. Não
sabemos como fizeram para sair todos ao mesmo tempo nem quem os ajudou. Esse
assunto está sob investigação da Polícia Federal. Sem eles, não temos
eletricidade, internet, fornecimento de água e gás, transporte de passageiros e
mercadorias, limpeza urbana nem atendimento médico, dentre outros transtornos.
Além disso, todas as fábricas estão paradas. E ainda estamos avaliando que
outros setores foram afetados".
Pela primeira vez a multidão fez silêncio. Aquilo não podia ser sério. Não havia como todos os trabalhadores terem simplesmente desaparecido.
O
governador prosseguiu: "Desde que soubemos da crise, colocamos todos
os policiais do nosso estado nas ruas, para garantir a segurança e manter a ordem". A mulher de blusa amarela levantou a voz: "E o nosso presidente? Que medidas ele está tomando para
resolver esse problema? Ele já se manifestou?" O governador virou-se na direção ela e laconicamente
respondeu: "Fizemos uma reunião de emergência com o presidente
e os demais governadores por rádio agora há pouco. Lamentavelmente, o líder do
Executivo disse que não tem responsabilidade nenhuma nesse caso. As palavras
exatas que ele pronunciou foram: 'E
daí? Quer que eu faça o quê? Não sou babá'".
A turba
ficou silente novamente, antes de explodir de raiva. Nesse curto espaço de
tempo, o governador sumiu por entre as cortinas do palácio. Roberto puxou a
filha pelo braço e foi até um portão lateral mais escondido. Quando um guarda
fez menção de barrá-lo, ele simplesmente passou direto bradando: "Você
sabe quem eu sou? Roberto Escaravelho, maior doador de campanha desse que se
esconde aí dentro. Nem pense em me impedir de entrar".
O interior
do palácio de governo estava tão caótico quanto o exterior. Com os servidores
concursados ausentes, sobravam apenas os bajuladores de estimação na
distribuição de tarefas. Alguém trouxe água numa jarra no momento em que
Roberto e Rosana entravam no salão de audiências, mas faltavam copos limpos. O
empresário queria respostas e o político não as tinha. Era uma situação em que
o discurso geralmente feito para aplacar as multidões não teria efeito, até
porque o assessor que costumava escrever tais textos tinha sido preso na semana
anterior por recebimento de propina. Alguém sugeriu que a crise deveria ser
algum tipo de chantagem e que logo surgiria uma negociação exigindo algo como
maiores salários para a população em geral ou a redução no preço do arroz.
Bastava esperar e tudo seria resolvido.
Roberto
claramente não ficou satisfeito. Levantou-se e fez um discurso inflamado contra
o absurdo daquela situação, depois ameaçou o governador, lembrou-o dos
antecessores presos por corrupção, gesticulou energicamente, bateu na mesa,
apresentou números inventados de quantos empregos suas fábricas ofereciam no
estado, chorou, elencou todos os seus méritos como gestor e finalmente voltou a
se sentar, suado, sem fôlego e com saliva ressecada no canto da boca. Amparado
pela filha, saiu da audiência arrasado.
Roberto
acordou no dia seguinte e imediatamente consultou o celular. Era um sonho a
união dos trabalhadores do país para derrubar as estruturas vigentes? Percebeu
que o aparelho permanecia sem sinal e a bateria estava quase descarregada. Ao
levantar da cama decepcionado, ouviu alguém bater na porta. Carla, a vizinha do
andar de baixo, convocava os moradores do bairro para uma manifestação em prol
dos cidadãos de bem do país. Todos que não haviam desaparecido estavam
convidados a vestirem-se de branco e irem à praia na manhã do dia seguinte.
Seria a forma de as autoridades perceberem que era o momento de agir. A
ingratidão dos fujões precisava ser punida. Os olhos verdes do empresário,
emoldurados por olheiras, piscavam sem parar enquanto a mulher sacudia uma
folha de papel. Era um abaixo-assinado endereçado ao comandante do quartel
instalado no bairro. As forças armadas tinham de ser convocadas com urgência
para acabar com a baderna. Ao ouvir aquilo, Roberto recobrou as energias e
esqueceu-se do cansaço. Sim, o poder civil tinha perdido completamente o
controle, Era realmente necessária uma intervenção militar. Pediu uma hora para
se preparar e se ofereceu para acompanhá-la na entrega do documento.
Com a
saída da garagem ainda obstruída, tiveram de caminhar. Carla fez questão de
narrar histórias da infância. O pai chegou a ser comandante no quartel e, após
a morte, deixou uma pensão que a sustentava. Ela era nostálgica, apesar dos
pouco mais de quarenta anos de idade. Roberto fingia prestar atenção, mas só
queria sair logo do calor. Havia esgoto vazando pela rua e sujeira espalhada
pela praia. Rajadas esporádicas de vento sacudiam as folhas das amendoeiras.
Numa pequena praça, mães irritadas tentavam em vão controlar os filhos sem a
ajuda das babás. Não havia escolas abertas. Ao chegarem diante dos portões do
quartel, tiveram a visão ofuscada pelo meio-fio imaculadamente branco que
emoldurava a via. Não houve dificuldade para falar com o comandante. Solícito,
ele recebeu a lista com as assinaturas, informou que o generalato estava
acompanhando tudo com atenção e que em breve a ordem seria reinstalada no país.
Assim que a dupla deixou o gabinete, o comandante chamou um soldado que o
conduziu em alta velocidade até o aeroporto.
De volta
ao apartamento vazio, Roberto refletiu sobre a situação. Tantos anos de esforço
conduzindo a empresa que herdara do pai estavam agora comprometidos por conta
desse circo. Assim que a normalidade fosse restabelecida, iniciaria um projeto
de robotização das plantas industriais. Quando chegasse a hora de passar o comando
da empresa para a filha, haveria um mínimo de gente para dar trabalho.
Termina na próxima segunda-feira
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