"Os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas."
(Leon Tolstói (1828 - 1910), escritor russo reconhecido como um dos maiores de todos os tempos)
Rever um
filme ou reler um livro com atenção, sempre possibilitará descobrir alguma
passagem que não consideramos relevante em vezes anteriores. Até porque o
que a torna relevante pode ser a comparação com algo visto ou lido mais
recentemente. Foi isso que ocorreu quando, revendo um documentário lançado em
2014, tive minha atenção despertada por uma passagem que, imediatamente,
comparei com um conto que li em abril de 2021 no livro intitulado 2020 : o ano que não começou. O nome do
documentário? "Park Avenue: Dinheiro,
Poder e o Sonho Americano – Por que Pobreza?". O parágrafo a
seguir reproduz a referida passagem. Passagem em que é feita uma apresentação
do filme "A Revolta de Atlas".
"A Revolta de Atlas" é contada como uma história de terror, uma visão
aterrorizante do que aconteceria aos EUA
se americanos ricos como David Koch e Stephen Schwarzman nos deixassem
abandonados à própria sorte. Os
grifos são meus.
O título do conto? Os ausentes. Como eu o apresento? Mutatis mutandis na apresentação do filme, feita no parágrafo anterior, eu apresento assim o conto: "Os ausentes" conta uma história de terror, uma visão aterrorizante do que aconteceria a qualquer país se os trabalhadores o deixassem abandonado à própria sorte.
Os dois
próximos parágrafos reproduzem trechos do vídeo publicado pelo autor em seu
canal no You Tube. Intitulado Os ausentes - A história por trás do conto (https://www.youtube.com/watch?v=XeBp2RcPTKA), recomendo
que seja visto antes da leitura de conto.
"O que me levou a escrever essa história, uma história curta, mas que traz a ideia de trabalhadores que simplesmente desaparecem da noite pro dia? E o que está por trás disso? O que me motivou a contar essa história? (...) A secessão da plebe. O que é a secessão da plebe?""É um momento, no início da república romana, em que os agentes políticos discriminaram de tal maneira uma parte da população, da plebe, que essa população não viu alternativa a não ser sair da cidade, abandonar a cidade, abandonar a aristocracia e dizer: vamos embora. Vamos embora e vocês que se entendam. E o que aconteceu nesse momento? Sem a plebe presente, a aristocracia tem que se virar e acaba tendo que ceder."
A intenção ao espalhar esse conto é provocar
reflexões sobre qual seria a verdadeira tragédia: os ricos deixarem os
trabalhadores abandonados à própria sorte ou os trabalhadores deixarem os ricos
abandonados ao próprio azar. Com a intenção de não desestimular leitores de
fôlego curto, o conto foi dividido em três postagens.
Os ausentes
Eduardo Cassús
Roberto
acordou com a claridade atingindo em cheio o rosto. O despertador falhara e ele
estava atrasado para uma série de reuniões no escritório. Levantou-se apressado
e atravessou o quarto amplo enquanto se despia. Ao entrar no banheiro, percebeu
que não havia eletricidade no apartamento. Escovou os dentes, tomou um banho
gelado e pôs o terno italiano graças às amplas janelas com vista para a praia
que iluminavam toda a suíte.
Ao chegar
à cozinha, estranhou a ausência de Neide. A trabalhadora doméstica não
costumava atrasar-se, mesmo morando a trinta quilômetros de distância. Imaginou
que talvez tivesse algo a ver com a falta de energia. Na verdade, ele nunca se
perguntara que meio de transporte ela usava para ir trabalhar. Abriu uma caixa
de suco, serviu-se de torradas com geleia e largou a louça na pia um instante
antes de pôr o celular no bolso da calça e sair.
Desceu
nove andares com ajuda das luzes de emergência. Ao chegar à garagem, ouviu as
buzinas dos automóveis enfileirados na saída. Não havia quem abrisse o portão.
O porteiro era outro que estava ausente.
Desistiu
de pegar o próprio carro. Chamaria um motorista por meio de um aplicativo.
Assim que colocou os pés na calçada, percebeu que o celular não tinha sinal.
Perdeu a pouca paciência que ainda restava. Bufando, resolveu ir a pé para a
sede da empresa. No caminho, reparou que as ruas estavam praticamente desertas.
Não havia filas nos pontos de ônibus, nem lojas abertas. O jornaleiro que o
cumprimentava todos os dias não tinha aberto a banca. Ao olhar para a padaria
da esquina, outrora sempre movimentada, viu apenas a silhueta do dono desolado
atrás do balcão, iluminado por uma lamparina. Os elegantes sapatos pretos não
haviam sido feitos para caminhar seis quilômetros sobre pedras portuguesas e
mal resistiram. A brisa vinda do mar pouco aliviava o calor e o sexagenário
chegou ensopado de suor à portaria do prédio comercial onde sua empresa estava
sediada.
Ficou na
calçada, pois não havia quem tivesse as chaves dos portões de ferro de três
metros e meio de altura que guardavam a entrada. Os demais sócios, dentre eles
Rosana, sua filha mais velha, foram chegando aos poucos, igualmente perplexos
com a ausência de seus empregados. Não poderiam realizar a reunião naquelas
condições. Provavelmente estavam diante de uma greve geral e as unidades fabris
da companhia deviam estar paradas, Roberto praguejou contra os sindicalistas, o
governo, os trabalhadores e toda a sociedade repleta de preguiçosos que os
cercava. Sentia-se traído por todos os lados. Exigia informações que ninguém
parecia capaz de fornecer.
Decidiu cobrar
do governador do estado que tomasse providências urgentes. A economia não podia
parar. Homens sérios como ele não podiam ser prejudicados pela preguiça dos
acomodados, acostumados a terem apenas direitos e nenhum dever. Intimou a filha
a levá-lo de carro até o palácio do governo.
Pelo
caminho foram testemunhando o caos sendo instalado pouco a pouco. Ao passarem
diante de um posto de combustíveis, viram motoristas tentando abastecer os
próprios veículos, enquanto o dono do estabelecimento se desdobrava nas tarefas
de organizar a fila, lavar vidros, calibrar pneus e receber os pagamentos. No
meio da agitação, um pequeno incêndio teve início.
Sem
eletricidade, rapidamente se deu o colapso do sistema semafórico da cidade e os
motoristas que circulavam em seus carros de luxo não aceitavam de modo algum
ceder a vez. Todos estavam atrasados e acreditavam ter compromissos mais
urgentes que os demais. À medida que Rosana e Roberto se aproximavam da sede do
governo estadual, o engarrafamento piorava, com os condutores cada vez mais
impacientes usando a buzina como instrumento de intimidação. Num dado momento,
um cidadão de um metro e noventa de altura abandonou seu veículo, retirou uma
pistola do coldre sob o paletó e começou a brandi-la para outro indivíduo, igualmente
furioso, que ousara colocar o carro antes do seu num cruzamento.
Pai e
filha decidiram continuar a pé, contornando o tumulto até chegarem a uma
barreira policial que cercava o palácio de governo. Um grupo de quinhentas
pessoas berrava e sacudia um alambrado, exigindo a presença do governador. Após
esperarem uma hora e quinze minutos sob o sol escaldante, conseguiram vê-lo
aparecer numa sacada. Um assessor instalou um microfone. Uma mulher usando um
vestido decotado gritou: "Eu pago impostos! Quero meus empregados de volta!"
Cinco metros atrás, outra mulher, trajando uma blusa amarela de mangas
compridas e um lenço verde no pescoço atirou-lhe um copo de água mineral:
"Sossega, sua vulgar!" A atingida limitou-se a fazer um gesto obsceno. Os policiais
que assistiam a cena riam de tudo, sem interferir.
Continua na próxima terça-feira
Nenhum comentário:
Postar um comentário