quarta-feira, 30 de março de 2022

Os ausentes (I)

"Os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas."
(Leon Tolstói (1828 - 1910), escritor russo reconhecido como um dos maiores de todos os tempos)
Rever um filme ou reler um livro com atenção, sempre possibilitará descobrir alguma passagem que não consideramos relevante em vezes anteriores. Até porque o que a torna relevante pode ser a comparação com algo visto ou lido mais recentemente. Foi isso que ocorreu quando, revendo um documentário lançado em 2014, tive minha atenção despertada por uma passagem que, imediatamente, comparei com um conto que li em abril de 2021 no livro intitulado 2020 : o ano que não começou. O nome do documentário? "Park Avenue: Dinheiro, Poder e o Sonho Americano – Por que Pobreza?". O parágrafo a seguir reproduz a referida passagem. Passagem em que é feita uma apresentação do filme "A Revolta de Atlas".
"A Revolta de Atlas" é contada como uma história de terror, uma visão aterrorizante do que aconteceria aos EUA se americanos ricos como David Koch e Stephen Schwarzman nos deixassem abandonados à própria sorte. Os grifos são meus.

O título do conto? Os ausentes. Como eu o apresento? Mutatis mutandis na apresentação do filme, feita no parágrafo anterior, eu apresento assim o conto: "Os ausentes" conta uma história de terror, uma visão aterrorizante do que aconteceria a qualquer país se os trabalhadores o deixassem abandonado à própria sorte.

Os dois próximos parágrafos reproduzem trechos do vídeo publicado pelo autor em seu canal no You Tube. Intitulado Os ausentes - A história por trás do conto (https://www.youtube.com/watch?v=XeBp2RcPTKA), recomendo que seja visto antes da leitura de conto.
"O que me levou a escrever essa história, uma história curta, mas que traz a ideia de trabalhadores que simplesmente desaparecem da noite pro dia? E o que está por trás disso? O que me motivou a contar essa história? (...) A secessão da plebe. O que é a secessão da plebe?"
"É um momento, no início da república romana, em que os agentes políticos discriminaram de tal maneira uma parte da população, da plebe, que essa população não viu alternativa a não ser sair da cidade, abandonar a cidade, abandonar a aristocracia e dizer: vamos embora. Vamos embora e vocês que se entendam. E o que aconteceu nesse momento? Sem a plebe presente, a aristocracia tem que se virar e acaba tendo que ceder."
A intenção ao espalhar esse conto é provocar reflexões sobre qual seria a verdadeira tragédia: os ricos deixarem os trabalhadores abandonados à própria sorte ou os trabalhadores deixarem os ricos abandonados ao próprio azar. Com a intenção de não desestimular leitores de fôlego curto, o conto foi dividido em três postagens.

Os ausentes
Eduardo Cassús
Roberto acordou com a claridade atingindo em cheio o rosto. O despertador falhara e ele estava atrasado para uma série de reuniões no escritório. Levantou-se apressado e atravessou o quarto amplo enquanto se despia. Ao entrar no banheiro, percebeu que não havia eletricidade no apartamento. Escovou os dentes, tomou um banho gelado e pôs o terno italiano graças às amplas janelas com vista para a praia que iluminavam toda a suíte.
Ao chegar à cozinha, estranhou a ausência de Neide. A trabalhadora doméstica não costumava atrasar-se, mesmo morando a trinta quilômetros de distância. Imaginou que talvez tivesse algo a ver com a falta de energia. Na verdade, ele nunca se perguntara que meio de transporte ela usava para ir trabalhar. Abriu uma caixa de suco, serviu-se de torradas com geleia e largou a louça na pia um instante antes de pôr o celular no bolso da calça e sair.
Desceu nove andares com ajuda das luzes de emergência. Ao chegar à garagem, ouviu as buzinas dos automóveis enfileirados na saída. Não havia quem abrisse o portão. O porteiro era outro que estava ausente.
Desistiu de pegar o próprio carro. Chamaria um motorista por meio de um aplicativo. Assim que colocou os pés na calçada, percebeu que o celular não tinha sinal. Perdeu a pouca paciência que ainda restava. Bufando, resolveu ir a pé para a sede da empresa. No caminho, reparou que as ruas estavam praticamente desertas. Não havia filas nos pontos de ônibus, nem lojas abertas. O jornaleiro que o cumprimentava todos os dias não tinha aberto a banca. Ao olhar para a padaria da esquina, outrora sempre movimentada, viu apenas a silhueta do dono desolado atrás do balcão, iluminado por uma lamparina. Os elegantes sapatos pretos não haviam sido feitos para caminhar seis quilômetros sobre pedras portuguesas e mal resistiram. A brisa vinda do mar pouco aliviava o calor e o sexagenário chegou ensopado de suor à portaria do prédio comercial onde sua empresa estava sediada.
Ficou na calçada, pois não havia quem tivesse as chaves dos portões de ferro de três metros e meio de altura que guardavam a entrada. Os demais sócios, dentre eles Rosana, sua filha mais velha, foram chegando aos poucos, igualmente perplexos com a ausência de seus empregados. Não poderiam realizar a reunião naquelas condições. Provavelmente estavam diante de uma greve geral e as unidades fabris da companhia deviam estar paradas, Roberto praguejou contra os sindicalistas, o governo, os trabalhadores e toda a sociedade repleta de preguiçosos que os cercava. Sentia-se traído por todos os lados. Exigia informações que ninguém parecia capaz de fornecer.
Decidiu cobrar do governador do estado que tomasse providências urgentes. A economia não podia parar. Homens sérios como ele não podiam ser prejudicados pela preguiça dos acomodados, acostumados a terem apenas direitos e nenhum dever. Intimou a filha a levá-lo de carro até o palácio do governo.
Pelo caminho foram testemunhando o caos sendo instalado pouco a pouco. Ao passarem diante de um posto de combustíveis, viram motoristas tentando abastecer os próprios veículos, enquanto o dono do estabelecimento se desdobrava nas tarefas de organizar a fila, lavar vidros, calibrar pneus e receber os pagamentos. No meio da agitação, um pequeno incêndio teve início.
Sem eletricidade, rapidamente se deu o colapso do sistema semafórico da cidade e os motoristas que circulavam em seus carros de luxo não aceitavam de modo algum ceder a vez. Todos estavam atrasados e acreditavam ter compromissos mais urgentes que os demais. À medida que Rosana e Roberto se aproximavam da sede do governo estadual, o engarrafamento piorava, com os condutores cada vez mais impacientes usando a buzina como instrumento de intimidação. Num dado momento, um cidadão de um metro e noventa de altura abandonou seu veículo, retirou uma pistola do coldre sob o paletó e começou a brandi-la para outro indivíduo, igualmente furioso, que ousara colocar o carro antes do seu num cruzamento.
Pai e filha decidiram continuar a pé, contornando o tumulto até chegarem a uma barreira policial que cercava o palácio de governo. Um grupo de quinhentas pessoas berrava e sacudia um alambrado, exigindo a presença do governador. Após esperarem uma hora e quinze minutos sob o sol escaldante, conseguiram vê-lo aparecer numa sacada. Um assessor instalou um microfone. Uma mulher usando um vestido decotado gritou: "Eu pago impostos! Quero meus empregados de volta!" Cinco metros atrás, outra mulher, trajando uma blusa amarela de mangas compridas e um lenço verde no pescoço atirou-lhe um copo de água mineral: "Sossega, sua vulgar!" A atingida limitou-se a fazer um gesto obsceno. Os policiais que assistiam a cena riam de tudo, sem interferir.
Continua na próxima terça-feira

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