quarta-feira, 23 de março de 2022

Reflexões provocadas por "Como acabar com a guerra" (final)

Continuação de sexta-feira

"Se chegássemos a nos sentir verdadeiramente responsáveis por nossas ações, com que rapidez acabaríamos com todas as guerras! Mas somos indiferentes. Tomamos três refeições por dia, temos nossos empregos, nossos depósitos no banco, e dizemos: 'Pelo amor de Deus, não venha me perturbar, deixe-me em paz!'. Quanto mais alto estamos, mais queremos segurança e tranquilidade, mais queremos que as coisas fiquem como estão."
"Mas somos indiferentes", diz Krishnamurti, fazendo-me lembrar de uma citação originalmente cunhada pelo psicólogo austríaco Wilhelm Stekel (1868 – 1940) em 1921, e posteriormente usada por Elie Wiesel e vários escritores: "O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença." Ou seja, é a indiferença que impede o florescimento do amor; que impede a construção de um mundo melhor. Sim, quanto mais alto estamos, mais indiferentes somos com os que estão abaixo.
Brasil está indo bem no controle do coronavírus e pico nas classes altas já passou, diz presidente da XP, eis o título de uma reportagem publicada em 05 de maio de 2020 no endereço https://br.yahoo.com/financas/noticias/brasil-est%C3%A1-indo-bem-no-192200373.html com autoria atribuída a Júlia Moura. Uma reportagem da qual selecionei os trechos reproduzidos a seguir.
"Na avaliação do presidente e fundador da XP, Guilherme Benchimol, o Brasil está indo bem no controle do coronavírus e o pico da doença nas classes altas já passou. 'Acompanhando um pouco os nossos números, eu diria que o Brasil está bem. (...) O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo', disse Benchimol em transmissão ao vivo do jornal O Estado de S. Paulo."
"Setenta dias após o primeiro caso confirmado do novo coronavírus, o Brasil soma 107.780 registros da doença e 7.321 mortes, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na segunda (4)."
Hoje, 22 meses e meio depois, o número de registros da doença ultrapassa 29,5 milhões de casos, o de mortes ultrapassa mais de 657 mil mortes, e a propaganda da XP veiculada na mídia traz a seguinte pérola: "Veja o que só quem é XP vê. Abra sua conta". Vá ser indiferente assim na XPQP! Não, não é agindo assim que se construirá um mundo melhor. A ação correta para construí-lo é: Veja o que só quem não é XP vê. Abra sua consciência.
"Naquele tempo, pra mim estava bom", eis uma inesquecível frase que ouvi de um ex-colega de trabalho durante uma conversa em que eu disse-lhe que as coisas já estavam ruins desde uma determinada época. Indiferença! Se para mim as coisas estão boas que me importa que para os outros elas estejam mal. É uma questão de meritocracia, não é mesmo? E tome indiferença!
"Mas as coisas não podem ser mantidas como estão, porque não há nada para manter. Tudo está se desintegrando. E não queremos encarar isso.", diz Krishnamurti.
E ao dizê-lo leva-me a associar suas palavras com a citação que epigrafa a postagem anterior e é reproduzida a seguir.
"Quando me dizem 'você é um utópico', digo: 'a única utopia de fato é acreditar que as coisas podem seguir indefinidamente seu curso atual'.", diz o filósofo Slavoj Zizek.
Sim, as coisas não podem ser mantidas como estão; as coisas não podem seguir indefinidamente seu curso atual, pois acreditar nisso é a única utopia de fato. Precisamos, urgentemente, deixar de classificar como utopia coisas que precisam ser feitas. Compreendido?
"Para acabar com o sofrimento, a fome e a guerra é necessária uma revolução psicológica, mas poucos têm disposição para isso. Estamos dispostos a conversar sobre paz, planejar leis, criar entidades, mas não estamos realmente dispostos a obter a paz, porque não queremos renunciar ao poder, às propriedades, às nossas vidas estúpidas.", diz Krishnamurti.
Sim, nesta insana sociedade, são poucos os que estão realmente dispostos a acabar com tudo que nela há de ruim. São poucos os que estão realmente dispostos a renunciar às suas vidas estúpidas. Vidas estúpidas que podem ser divididas em diversos tipos em um planeta habitado por seres de uma pretensa espécie inteligente do universo que até hoje não conseguiram compreender o que é a vida. Tipos dos quais escolhi três para focalizar nestas reflexões.
Ao entrar no leito de UTI para cuidar de mim e ver que a televisão estava desligada, a profissional de saúde perguntou-me se eu não gostava de televisão. Respondi-lhe que não muito, pois a maior parte da programação não me agrada. Então, ela disse-me algo mais ou menos assim: "Eu não tenho tempo para assistir televisão, pois quando saio daqui vou para outro emprego. Minha vida é trabalhar e comer. E às vezes não dá tempo de comer. Tenho uma filha que vai fazer 15 anos que praticamente não conheço, pois nunca tive tempo para dedicar a ela." Eis um exemplo do primeiro dos três tipos de vida estúpida escolhidos. Uma vida estúpida vivida por alguém que não vê como mudá-la, pois no mundo em que sobrevive existem coisas que só quem é uma determinada coisa (XP, por exemplo) vê.
Qual é o segundo tipo? É o tipo que abrange os indiferentes! Uma vida estúpida vivida por indivíduos que não vêem porque mudá-la, pois no mundo em que vivem existem coisas que só quem é semelhante a eles vê. Uma vida pautada pela indiferença em relação aos males do mundo e aos por ele atingidos, pois tais males não os atingem. Afinal, se para tais indivíduos as coisas estão bem, o que eles mais querem é que os outros se danem (para não usar um verbo mais contundente). É uma questão de meritocracia. E viva a indiferença!
Qual é o terceiro tipo? É o que abrange os que, diferentemente dos situados no primeiro tipo, de alguma forma, conseguiram alcançar uma posição que lhes possibilita ver como mudar sua vida estúpida e que, diferentemente dos situados no segundo, conseguem não ser indiferentes às agruras enfrentadas pelos situados no primeiro. São aqueles que já conseguem concordar com Simone de Beauvoir quando ela diz que "A vida de alguém tem valor enquanto alguém atribui valor à vida dos outros, por meio do amor, da amizade, da indignação e da compaixão". É a partir do momento que a vida de alguém passa a ter valor que ela deixa de ser estúpida. E é a partir da atuação do ainda pequeno grupo que compõe o terceiro tipo que existe a possibilidade de algum dia este planeta tornar-se um lugar que preste.
"Para acabar com a guerra exterior, temos que acabar com a guerra dentro de nós. Alguns de vocês vão balançar a cabeça e dizer: 'É isso mesmo' – e depois vão sair para fazer exatamente a mesma coisa que vêm fazendo há dez ou vinte anos. Seu assentimento é apenas verbal, sem sentido; as misérias do mundo não acabam por causa de um assentimento ocasional. Elas só vão acabar se você compreender a sua responsabilidade, se não deixar a tarefa para outra pessoa. Se você reconhecer a necessidade de uma ação imediata, então terá que se transformar. A paz só virá quando você for pacífico. (...) Se estivermos interessados em acabar com a guerra, devemos começar a transformação em nós mesmos."
Sim, "a guerra e as misérias do mundo só vão acabar se nós compreendermos a nossa responsabilidade, se não deixarmos a tarefa para outra pessoa". "Reconhecer a necessidade de uma ação imediata", eis o que provocará a nossa transformação. Se estivermos realmente interessados em acabar com a guerra e as misérias do mundo, mudando-o para melhor e tornando-o algo que faça jus ao termo civilização, é imprescindível compreendermos a seguinte afirmação do inesquecível e saudoso sociólogo e ativista social Herbert de Sousa (1935 – 1997), o Betinho: "Não existe mudança que não deva começar comigo". Compreendido?

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