Continuação de terça-feira
No
terceiro dia da crise, o ruído de uma mosca acordou Roberto. Ao abrir a
torneira do banheiro, a água não veio. Na cozinha, uma fila de formigas
marchava indo e vindo da louça abandonada na pia para uma rachadura no batente
da porta da entrada de serviço. Uma poça d'água se estendia desde a base da
geladeira até o fogão. Um cheiro desagradável vinha do corredor do prédio. Os
dutos de descarte de lixo estavam lotados esperando por uma coleta que não
viria.
Roberto
esfregou as mãos no rosto. Sentiu falta de Neide. Como ela pôde abandonar o
serviço e se juntar a essa aventura absurda? Ele sempre a tratara bem, como se
fosse da família. E agora, sem ter como preparar o próprio desjejum, restava
apenas tentar conseguir algo na padaria.
Ao chegar
ao térreo, foi surpreendido tanto pela imundície nas ruas quanto pela passeata
dos vizinhos em direção à praia. A maioria trajava branco, como pedido, mas
cerca de um terço estava de camisa amarela e alguns traziam a bandeira nacional
enrolada no pescoço, como se fosse um lenço. Roberto tinha fome, mas achou
melhor unir-se ao grupo. Um casal mais falante tirou uma faixa que dizia:
"BASTA!" No meio da manifestação, o empresário reconheceu a mulher
que atirara o copo de água na frente do palácio do governador na antevéspera.
Ela usava amarelo novamente e exalava um cheiro de incenso misturado com suor.
Carla também estava presente, acompanhada do companheiro e do filho.
Um sujeito
apareceu com uma roupa camuflada, fantasiado de militar estrangeiro. Ele
empoleirou-se num caixote e pigarreou, preparando-se para discursar. No momento
em que ligava um megafone a pilha, um jato cruzou o céu em velocidade
supersônica. A onda de choque estremeceu prédios e quebrou janelas. Em seguida,
tanques e caminhões verdes começaram a desfilar pela orla. De um deles, um
alto-falante anunciava:
Atenção, cidadãos brasileiros, o governo corrupto que
permitiu a instalação do caos foi encerrado. Nas primeiras horas dessa manhã, o
presidente foi deposto e uma junta foi empossada com o aval do poder moderador
das forças armadas. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal,
cúmplices igualmente corruptos da situação atual, foram fechados. Está
decretado o Estado de Sítio. Todos devem obedecer ao toque de recolher e
abandonar imediatamente as ruas. Repetindo: todos devem abandonar imediatamente
as ruas!
A multidão
correu da areia para o asfalto. Surgiram sinais de incêndio em várias partes da
cidade e alguns sons de tiroteio. Roberto viu uma aglomeração na porta da
padaria da esquina. Precisava abastecer sua despensa e conseguir água para os
dias incertos que viriam. Espremeu-se para entrar. Seus vizinhos saqueavam as
prateleiras e ele não podia esperar a volta da ordem. O dono do lugar havia
fugido tentando buscar auxílio. No ambiente mal iluminado, o empresário pegou
um pacote de pão, duas garrafas de água mineral e, ao se lançar na direção de
uma embalagem de macarrão instantâneo, esbarrou violentamente em um rapaz ruivo
com um terço da sua idade. O jovem também agarrou a embalagem com força.
Roberto não a soltou. Começaram a discutir furiosamente.
"Me
respeite, menino! Eu sou empresário!"
"Você
não sabe com quem está falando!"
"Eu
tenho idade para ser seu pai!"
"Meu
pai é desembargador, velho ridículo!"
"Ridículo
é você! Eu tenho berço!"
Com sangue
nos olhos, Roberto Escaravelho socou o ruivo e arrancou-lhe o macarrão. Assim
que saiu da padaria, ouviu um estampido e sentiu as costas queimarem. Caiu aos
pés do filho do desembargador. O sangue espalhava-se rapidamente e as garrafas
de água mineral rolavam pelo asfalto enquanto os alimentos eram subtraídos de
seus braços. O rosto ardia sobre uma tampa de bueiro escaldante. Alguém chegou
a gritar por socorro, mas não havia ambulâncias nem paramédicos. As autoridades
que restaram estavam ocupadas jurando lealdade ao novo governo. Dois carros
foram arrombados e seus alarmes dispararam ao mesmo tempo. À medida que a visão
embaçava, Roberto despedia-se mentalmente da filha, que herdaria uma fortuna
absolutamente inútil; da empresa, cujas fábricas nada mais produziriam e, por
fim, de Neide, aquela ingrata que ele sempre tratou tão bem.
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"Eduardo
Cassús nasceu no Rio de Janeiro em 1977 e foi criado no subúrbio carioca. É
engenheiro químico com doutorado em Química, professor e fotógrafo
profissional. Foi um dos fundadores da Associação Brasileira do Veículo
Elétrico. O conto que integra esta antologia é sua primeira incursão na
literatura", eis como o autor é apresentado no livro.
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O que o autor espera com a publicação de seu conto?
Para responder esta pergunta, segue o trecho final do vídeo intitulado
Os ausentes - A história por trás do conto (https://www.youtube.com/watch?v=XeBp2RcPTKA), publicado
no canal do autor no You Tube.
"Eu espero que esse conto traga desconforto. Faça com que as pessoas
reflitam sobre a vida que nós estamos vivendo, a sociedade que nós estamos
criando, o tipo de exploração no ambiente de trabalho e o que nós podemos fazer
como trabalhadores para mudar nossa realidade, porque um outro mundo é
possível. É preciso antes de tudo que nós nos organizemos, talvez como a plebe
romana se organizou, lá na antiga república."
E ao dizer que
espera trazer desconforto, Eduardo Cassús faz-me lembrar da seguinte afirmação
de Oscar Wilde (1854 – 1900), escritor, poeta e dramaturgo irlandês. "A
insatisfação é o primeiro passo para o progresso de um homem ou de uma nação." Já tendo lido a frase de
Wilde apresentando "O descontentamento" em vez de "A insatisfação",
será que ela continua válida apresentando "O desconforto"? No meu
entender, sim."Trazer desconforto. Fazer com que as pessoas reflitam sobre a vida
que nós estamos vivendo, a sociedade que nós estamos criando, o tipo de
exploração no ambiente de trabalho e o que nós podemos fazer como trabalhadores
para mudar nossa realidade, porque outro mundo é possível.", eis o que
Eduardo Cassús espera com a publicação de seu conto. Ou seja, o que ele pretende
com a publicação de seu conto é a mesma coisa que eu pretendo com a publicação
das minhas postagens. Dito isto, fica a sugestão para que aceitem o convite do
Eduardo e reflitam sobre o que é dito em seu instigante conto.
Encerrando esta série de três postagens,
segue uma foto em que é reproduzida a citação que epigrafa a primeira. Quem
fotografou? David Almeida. Quem pintou a frase de Leon Tolstói? David Almeida.
O local em que ela foi pintada? O muro do Circo Escola Araturi, situado em uma
favela em Caucaia, no Ceará. Onde obtive a foto e as informações sobre ela? No site https://iconografiadahistoria.com.br/.
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