segunda-feira, 11 de abril de 2022

Os ausentes (final)

 Continuação de terça-feira

No terceiro dia da crise, o ruído de uma mosca acordou Roberto. Ao abrir a torneira do banheiro, a água não veio. Na cozinha, uma fila de formigas marchava indo e vindo da louça abandonada na pia para uma rachadura no batente da porta da entrada de serviço. Uma poça d'água se estendia desde a base da geladeira até o fogão. Um cheiro desagradável vinha do corredor do prédio. Os dutos de descarte de lixo estavam lotados esperando por uma coleta que não viria.

Roberto esfregou as mãos no rosto. Sentiu falta de Neide. Como ela pôde abandonar o serviço e se juntar a essa aventura absurda? Ele sempre a tratara bem, como se fosse da família. E agora, sem ter como preparar o próprio desjejum, restava apenas tentar conseguir algo na padaria.

Ao chegar ao térreo, foi surpreendido tanto pela imundície nas ruas quanto pela passeata dos vizinhos em direção à praia. A maioria trajava branco, como pedido, mas cerca de um terço estava de camisa amarela e alguns traziam a bandeira nacional enrolada no pescoço, como se fosse um lenço. Roberto tinha fome, mas achou melhor unir-se ao grupo. Um casal mais falante tirou uma faixa que dizia: "BASTA!" No meio da manifestação, o empresário reconheceu a mulher que atirara o copo de água na frente do palácio do governador na antevéspera. Ela usava amarelo novamente e exalava um cheiro de incenso misturado com suor. Carla também estava presente, acompanhada do companheiro e do filho.
Um sujeito apareceu com uma roupa camuflada, fantasiado de militar estrangeiro. Ele empoleirou-se num caixote e pigarreou, preparando-se para discursar. No momento em que ligava um megafone a pilha, um jato cruzou o céu em velocidade supersônica. A onda de choque estremeceu prédios e quebrou janelas. Em seguida, tanques e caminhões verdes começaram a desfilar pela orla. De um deles, um alto-falante anunciava:
Atenção, cidadãos brasileiros, o governo corrupto que permitiu a instalação do caos foi encerrado. Nas primeiras horas dessa manhã, o presidente foi deposto e uma junta foi empossada com o aval do poder moderador das forças armadas. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, cúmplices igualmente corruptos da situação atual, foram fechados. Está decretado o Estado de Sítio. Todos devem obedecer ao toque de recolher e abandonar imediatamente as ruas. Repetindo: todos devem abandonar imediatamente as ruas!
A multidão correu da areia para o asfalto. Surgiram sinais de incêndio em várias partes da cidade e alguns sons de tiroteio. Roberto viu uma aglomeração na porta da padaria da esquina. Precisava abastecer sua despensa e conseguir água para os dias incertos que viriam. Espremeu-se para entrar. Seus vizinhos saqueavam as prateleiras e ele não podia esperar a volta da ordem. O dono do lugar havia fugido tentando buscar auxílio. No ambiente mal iluminado, o empresário pegou um pacote de pão, duas garrafas de água mineral e, ao se lançar na direção de uma embalagem de macarrão instantâneo, esbarrou violentamente em um rapaz ruivo com um terço da sua idade. O jovem também agarrou a embalagem com força. Roberto não a soltou. Começaram a discutir furiosamente.
"Me respeite, menino! Eu sou empresário!"
"Você não sabe com quem está falando!"

"Eu tenho idade para ser seu pai!"

"Meu pai é desembargador, velho ridículo!"

"Ridículo é você! Eu tenho berço!"

Com sangue nos olhos, Roberto Escaravelho socou o ruivo e arrancou-lhe o macarrão. Assim que saiu da padaria, ouviu um estampido e sentiu as costas queimarem. Caiu aos pés do filho do desembargador. O sangue espalhava-se rapidamente e as garrafas de água mineral rolavam pelo asfalto enquanto os alimentos eram subtraídos de seus braços. O rosto ardia sobre uma tampa de bueiro escaldante. Alguém chegou a gritar por socorro, mas não havia ambulâncias nem paramédicos. As autoridades que restaram estavam ocupadas jurando lealdade ao novo governo. Dois carros foram arrombados e seus alarmes dispararam ao mesmo tempo. À medida que a visão embaçava, Roberto despedia-se mentalmente da filha, que herdaria uma fortuna absolutamente inútil; da empresa, cujas fábricas nada mais produziriam e, por fim, de Neide, aquela ingrata que ele sempre tratou tão bem.
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"Eduardo Cassús nasceu no Rio de Janeiro em 1977 e foi criado no subúrbio carioca. É engenheiro químico com doutorado em Química, professor e fotógrafo profissional. Foi um dos fundadores da Associação Brasileira do Veículo Elétrico. O conto que integra esta antologia é sua primeira incursão na literatura", eis como o autor é apresentado no livro.

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O que o autor espera com a publicação de seu conto? Para responder esta pergunta, segue o trecho final do vídeo intitulado Os ausentes - A história por trás do conto (https://www.youtube.com/watch?v=XeBp2RcPTKA), publicado no canal do autor no You Tube.

"Eu espero que esse conto traga desconforto. Faça com que as pessoas reflitam sobre a vida que nós estamos vivendo, a sociedade que nós estamos criando, o tipo de exploração no ambiente de trabalho e o que nós podemos fazer como trabalhadores para mudar nossa realidade, porque um outro mundo é possível. É preciso antes de tudo que nós nos organizemos, talvez como a plebe romana se organizou, lá na antiga república."
E ao dizer que espera trazer desconforto, Eduardo Cassús faz-me lembrar da seguinte afirmação de Oscar Wilde (1854 – 1900), escritor, poeta e dramaturgo irlandês. "A insatisfação é o primeiro passo para o progresso de um homem ou de uma nação." Já tendo lido a frase de Wilde apresentando "O descontentamento" em vez de "A insatisfação", será que ela continua válida apresentando "O desconforto"? No meu entender, sim.

"Trazer desconforto. Fazer com que as pessoas reflitam sobre a vida que nós estamos vivendo, a sociedade que nós estamos criando, o tipo de exploração no ambiente de trabalho e o que nós podemos fazer como trabalhadores para mudar nossa realidade, porque outro mundo é possível.", eis o que Eduardo Cassús espera com a publicação de seu conto. Ou seja, o que ele pretende com a publicação de seu conto é a mesma coisa que eu pretendo com a publicação das minhas postagens. Dito isto, fica a sugestão para que aceitem o convite do Eduardo e reflitam sobre o que é dito em seu instigante conto.

Encerrando esta série de três postagens, segue uma foto em que é reproduzida a citação que epigrafa a primeira. Quem fotografou? David Almeida. Quem pintou a frase de Leon Tolstói? David Almeida. O local em que ela foi pintada? O muro do Circo Escola Araturi, situado em uma favela em Caucaia, no Ceará. Onde obtive a foto e as informações sobre ela? No site https://iconografiadahistoria.com.br/.

 


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