terça-feira, 26 de abril de 2022

A experiência de Robert Owen

"Eu não acredito em caridade. Acredito em solidariedade. A caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. A solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito que aprender com as outras pessoas."

(Eduardo Galeano [1940 – 2015], jornalista e escritor uruguaio)
Após uma postagem em que é dito não fazer sentido esperar que os privilegiados nesta sociedade extremamente desigual façam algo em prol dos privados de uma condição de vida decente, segue uma que traz o relato de uma experiência que constitui uma raríssima exceção ao que é dito no início desta frase. O texto foi obtido no livro A Arte de Pertencer – Os invisíveis do nosso século de, publicado em 2015 pela editora Novas Ideias, de autoria de Fernando Moraes, um ativista social e humanista.
A experiência de Robert Owen
Há algum tempo, li um livro chamado A História Social dos Direitos Humanos, cujo autor, José Damião de Lima Trindade, expõe uma linha do tempo para explicar a origem e todas as transformações históricas na luta de várias pessoas e nações no fortalecimento do estado de direito e de sua garantia. Os parágrafos a seguir reproduzem o pensamento desse autor.
Em dado momento do texto, ele cita Robert Owen (1771 – 1858), grande industrial inglês que por quase trinta anos desenvolveu um projeto de enorme êxito na sua fábrica de fios de algodão, localizada na comunidade miserável de New Lanark, na Escócia, que chegou a ter dois mil e quinhentos operários. De forma ousada, ele reduziu a jornada para dez horas e meia de trabalho (a jornada comum na época era de até dezoito horas), recusou-se a empregar menores de dez anos, criou jardins de infância e escolas para os filhos de seus funcionários, serviços de saúde para a comunidade e implantou armazéns para a venda de gêneros alimentícios e outros bens a preço de custo, nos quais o dinheiro foi substituído por bônus representativos de horas trabalhadas. Os resultados foram surpreendentes. A fábrica converteu-se numa colônia exemplar autogerida, de onde desapareceram o alcoolismo e as brigas, sem necessidade de policiamento, de asilo para os pobres ou de instituições de caridade. Inesperadamente para a mentalidade da época, os lucros cresceram como nunca antes visto.
Após reavaliar sua experiência, ele chegou à conclusão de que os meios de produção poderiam servir ao bem-estar social, desde que se tornassem propriedades coletivas, pertencendo a toda a sociedade. Foi um grande passo para uma crítica consistente do modelo capitalista vigente e se tornou para ele sua própria ruína.
Enquanto se comportava como um homem rico de "alma nobre", que se compadecia dos pobres, para quem oferecia a sua ajuda pelo simples espírito de caridade, Owen foi objeto de muita bajulação, tal qual uma celebridade, nos salões de toda a Europa, mas, quando deu o passo fatal, passou a ser execrado como um homem detentor de ideias perigosíssimas, perdendo todo o apoio daqueles que o bajulavam. A imprensa o condenou ao silêncio.
Nos dias de hoje não é diferente. Alguns veículos de comunicação, por meio do poder que constituíram de manipulação das massas, tentam cada vez mais afirmar o estado de situações que o capital produz, reforçando a noção de que tudo que acontece hoje é fruto de um desenvolvimento natural no percurso e "evolução" da humanidade. Isso infelizmente, acaba intervindo no que poderíamos chamar de estado de Pertencimento Social, permitindo que assuntos de ordem econômica definam o nosso caráter e quem somos, e a qual grupo devemos Pertencer.
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Qual a lição mais óbvia que se pode tirar da experiência de Robert Owen? Que acreditar que, nesta sociedade extremamente desigual, a melhoria das condições de vida (sic) dos explorados será realizada por aqueles que os exploram é algo para aqueles indivíduos classificáveis em algum (ns) dos três seguintes grupos: ingênuos, desinformados ou mal intencionados. Até porque o que tal experiência mostra é que, se um raro representante dos exploradores se compadece dos explorados e passa a tratá-los com alguma dignidade, ele logo será "execrado como um homem detentor de ideias perigosíssimas", e afastado da convivência com os demais componentes de sua classe social.

Ao ler "Enquanto se comportava como um homem rico de 'alma nobre', que se compadecia dos pobres, para quem oferecia a sua ajuda pelo simples espírito de caridade, Owen foi objeto de muita bajulação, (...), mas, quando deu o passo fatal, passou a ser execrado como um homem detentor de ideias perigosíssimas, perdendo todo o apoio daqueles que o bajulavam.", imediatamente, vem-me à mente um trecho do episódio 51 da temporada 20 do programa Saia Justa, apresentado em dezembro de 2021 e que tem o padre Júlio Lancellotti como convidado. Trecho que ocorre entre os minutos 27 e 28 no qual a apresentadora Astrid Fontenelle diz o seguinte:

"Ano passado, na benção de Natal, o Papa Francisco citou Dom Hélder Câmara, que falava: 'Quando eu dou comida aos pobres me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista'."
Vocês concordam que Robert Owen e Dom Hélder Câmara são duas pessoas cujo comportamento é visto da mesma forma? E tome método das recordações sucessivas! Ao ler "Alguns veículos de comunicação, por meio do poder que constituíram de manipulação das massas, tentam cada vez mais afirmar o estado de situações que o capital produz, reforçando a noção de que tudo que acontece hoje é fruto de um desenvolvimento natural no percurso e "evolução" da humanidade.", vêm-me à mente as seguintes palavras do extraordinário dramaturgo, poeta e encenador alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). (os grifos são meus)
"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar." (os grifos são meus)
Aliás, em termos de ser ou não ser natural, há em outra passagem do excelente livro de Fernando Moraes um trecho que eu não poderia deixar de citar em prosseguimento aos dois parágrafos imediatamente acima.
"Os próprios gregos chegaram à conclusão de que não poderiam depender dos deuses para tudo a fim de se organizar na Terra, logo criaram o conceito de sociedade, com parâmetros morais e uma determinada ordem social. Percebemos, então, que o conceito de viver em sociedade não é natural, mas artificial, criado pelos homens, o que nos faz concluir o óbvio: se a sociedade é criada por homens, também pode ser transformada por eles." (os grifos são meus)
Conforme conclusão dos gregos, os seres humanos não podem depender dos deuses para tudo a fim de se organizar na Terra. E, pelo que podemos perceber, muito menos de humanos que por serem endinheirados acham que são deuses. Como diz Bertolt Brecht, "nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar". Como percebe Fernando Moraes, baseado na conclusão dos gregos, "o conceito de viver em sociedade não é natural, mas artificial, criado pelos homens, o que nos faz concluir o óbvio: se a sociedade é criada por homens, também pode ser transformada por eles."
Juntando gregos, Bertolt Brecht e Fernando Moraes, chego à seguinte conclusão. Para se transformar a Terra (para melhor), considerando que nada deve parecer natural nada deve parecer impossível mudar, não se pode depender dos deuses, muito menos dos falsos deuses, pois tendo sido criada por homens é por homens que a sociedade pode e deve ser transformada. E para quem discordar do que acaba ser dito, segue uma afirmação feita pela Anistia Internacional, em 2011: "Aqueles que dizem que indivíduos não são capazes de mudar nada estão apenas buscando desculpas". Compreendido?

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