"Eu não acredito em caridade. Acredito em
solidariedade. A caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. A
solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A
maioria de nós tem muito que aprender com as outras pessoas."
(Eduardo Galeano [1940 – 2015], jornalista e escritor
uruguaio)
Após
uma postagem em que é dito não fazer sentido esperar que os privilegiados nesta
sociedade extremamente desigual façam algo em prol dos privados de uma condição
de vida decente, segue uma que traz o relato de uma experiência que constitui
uma raríssima exceção ao que é dito no início desta frase. O texto foi obtido no livro A Arte de
Pertencer – Os invisíveis do nosso século de, publicado em 2015 pela
editora Novas Ideias, de autoria de
Fernando Moraes, um ativista social e humanista.
A experiência de
Robert Owen
Há algum tempo, li um livro chamado A História Social dos Direitos Humanos, cujo autor, José Damião de
Lima Trindade, expõe uma linha do tempo para explicar a origem e todas as
transformações históricas na luta de várias pessoas e nações no fortalecimento
do estado de direito e de sua garantia. Os parágrafos a seguir reproduzem o
pensamento desse autor.
Em dado momento do texto, ele cita Robert Owen (1771 –
1858), grande industrial inglês que por quase trinta anos desenvolveu um
projeto de enorme êxito na sua fábrica de fios de algodão, localizada na comunidade
miserável de New Lanark, na Escócia, que chegou a ter dois mil e quinhentos operários.
De forma ousada, ele reduziu a jornada para dez horas e meia de trabalho (a
jornada comum na época era de até dezoito horas), recusou-se a empregar menores
de dez anos, criou jardins de infância e escolas para os filhos de seus
funcionários, serviços de saúde para a comunidade e implantou armazéns para a
venda de gêneros alimentícios e outros bens a preço de custo, nos quais o
dinheiro foi substituído por bônus representativos de horas trabalhadas. Os
resultados foram surpreendentes. A fábrica converteu-se numa colônia exemplar
autogerida, de onde desapareceram o alcoolismo e as brigas, sem necessidade de
policiamento, de asilo para os pobres ou de instituições de caridade.
Inesperadamente para a mentalidade da época, os lucros cresceram como nunca
antes visto.
Após reavaliar sua experiência, ele chegou à conclusão de
que os meios de produção poderiam servir ao bem-estar social, desde que se
tornassem propriedades coletivas, pertencendo a toda a sociedade. Foi um grande
passo para uma crítica consistente do modelo capitalista vigente e se tornou
para ele sua própria ruína.
Enquanto se comportava como um homem rico de "alma
nobre", que se compadecia dos pobres, para quem oferecia a sua ajuda pelo
simples espírito de caridade, Owen foi objeto de muita bajulação, tal qual uma
celebridade, nos salões de toda a Europa, mas, quando deu o passo fatal, passou
a ser execrado como um homem detentor de ideias perigosíssimas, perdendo todo o
apoio daqueles que o bajulavam. A imprensa o condenou ao silêncio.
Nos dias de hoje não é diferente. Alguns veículos de
comunicação, por meio do poder que constituíram de manipulação das massas,
tentam cada vez mais afirmar o estado de situações que o capital produz,
reforçando a noção de que tudo que acontece hoje é fruto de um desenvolvimento
natural no percurso e "evolução" da humanidade. Isso infelizmente,
acaba intervindo no que poderíamos chamar de estado de Pertencimento Social,
permitindo que assuntos de ordem econômica definam o nosso caráter e quem
somos, e a qual grupo devemos Pertencer.
*************
Qual a lição mais óbvia que se pode tirar da experiência
de Robert Owen? Que acreditar que, nesta sociedade extremamente desigual, a
melhoria das condições de vida (sic) dos explorados será realizada por aqueles
que os exploram é algo para aqueles indivíduos classificáveis em algum (ns) dos
três seguintes grupos: ingênuos, desinformados ou mal intencionados. Até porque
o que tal experiência mostra é que, se um raro representante dos exploradores
se compadece dos explorados e passa a tratá-los com alguma dignidade, ele logo será
"execrado como um homem detentor de ideias perigosíssimas", e
afastado da convivência com os demais componentes de sua classe social.
Ao ler "Enquanto se comportava como um homem
rico de 'alma nobre', que se compadecia dos pobres, para quem oferecia a sua
ajuda pelo simples espírito de caridade, Owen foi objeto de muita bajulação, (...),
mas, quando deu o passo fatal, passou a ser execrado como um homem detentor de
ideias perigosíssimas, perdendo todo o apoio daqueles que o bajulavam.", imediatamente,
vem-me à mente um trecho do episódio 51 da temporada 20 do programa Saia Justa, apresentado em dezembro de
2021 e que tem o padre Júlio Lancellotti como convidado. Trecho que ocorre
entre os minutos 27 e 28 no qual a apresentadora Astrid Fontenelle diz o
seguinte:
"Ano passado, na benção de Natal, o Papa
Francisco citou Dom Hélder Câmara, que falava: 'Quando eu dou comida aos pobres
me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de
comunista'."
Vocês concordam que Robert Owen e Dom Hélder Câmara são duas
pessoas cujo comportamento é visto da mesma forma? E tome método das
recordações sucessivas! Ao ler "Alguns veículos de comunicação, por
meio do poder que constituíram de manipulação das massas, tentam cada vez mais
afirmar o estado de situações que o capital produz, reforçando a noção de que
tudo que acontece hoje é fruto de um desenvolvimento natural no percurso e "evolução" da humanidade.",
vêm-me à mente as seguintes palavras do extraordinário dramaturgo, poeta e
encenador alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). (os
grifos são meus)
"Desconfiai do mais trivial, na
aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos
expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo
de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de
humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar." (os grifos
são meus)
Aliás, em
termos de ser ou não ser natural, há em outra passagem do excelente livro de
Fernando Moraes um trecho que eu não poderia deixar de citar em prosseguimento
aos dois parágrafos imediatamente acima.
"Os
próprios gregos chegaram à conclusão de que não poderiam depender dos deuses
para tudo a fim de se organizar na Terra, logo criaram o conceito de sociedade,
com parâmetros morais e uma determinada ordem social. Percebemos, então, que o conceito de viver em sociedade não é
natural, mas artificial, criado pelos homens, o que nos faz concluir o
óbvio: se a sociedade é criada por homens, também pode ser transformada por
eles." (os grifos são meus)
Conforme conclusão dos gregos, os seres humanos não podem
depender dos deuses para tudo a fim de se organizar na Terra. E, pelo que
podemos perceber, muito menos de humanos que por serem endinheirados acham que
são deuses. Como diz Bertolt Brecht, "nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de
mudar". Como percebe Fernando Moraes, baseado na
conclusão dos gregos, "o conceito de viver em sociedade não é natural, mas
artificial, criado pelos homens, o que nos faz concluir o óbvio: se a sociedade
é criada por homens, também pode ser transformada por eles."Juntando gregos, Bertolt Brecht e Fernando Moraes, chego à
seguinte conclusão. Para se transformar a Terra (para melhor), considerando que
nada deve parecer natural nada deve parecer impossível mudar, não se pode
depender dos deuses, muito menos dos falsos deuses, pois tendo sido criada por
homens é por homens que a sociedade pode e deve ser transformada. E para quem
discordar do que acaba ser dito, segue uma afirmação feita pela Anistia
Internacional, em 2011: "Aqueles que dizem que indivíduos não são capazes
de mudar nada estão apenas buscando desculpas". Compreendido?
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