terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Reflexões provocadas por "Os donos do mundo" (I)

Segundo o escritor Antonio Muñoz Molina, no livro intitulado Dark Money, a jornalista investigativa Jane Mayer "publicou um estudo corajoso e rigoroso sobre a maneira com que alguns bilionários financiaram desde o começo dos anos setenta a guinada teórica e política que levou ao desmantelamento das conquistas sociais, às maciças diminuições de impostos a favor dos ricos e à eliminação das regulamentações que desde a época da New Deal limitavam a capacidade de especulação e manipulação dos grandes bancos e das agências financeiras de Wall Street".

Nesse livro, adjetivado por Molina como instrutivo e aterrorizante, Jane Mayer "dedica muitas páginas aos irmãos David e Charles Koch, dos quais pouca gente havia ouvido falar até então, mas que possuíam um dos grupos empresariais mais poderosos do mundo, e há décadas financiavam cadeiras universitárias, centros de estudo, campanhas políticas, toda uma máquina formidável dedicada a um único objetivo: o descrédito e a anulação da capacidade reguladora e de redistribuição do Estado, e de qualquer limite fiscal, social e ambiental à exploração dos recursos naturais e ao enriquecimento dos mais ricos".
Ainda segundo Molina, em Kochland, "outro livro que dá ainda mais medo, talvez porque se concentre exclusivamente na história desses dois irmãos e do gigante empresarial que levantaram", o jornalista investigativo Christopher Leonard, faz um amedrontador conjunto de revelações que são reproduzidas nos próximos cinco parágrafos.
"A Koch Industries tem negócios em 60 países e mais de 100.000 empregados. Possui refinarias, fábricas de gás natural, redes de oleodutos, fábricas de fertilizantes e de ração, de toalhas de rosto, de papel higiênico, até de cartões de aniversário."
"Gastaram centenas de milhões em financiamentos de campanhas de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos direitos sindicais e a qualquer tipo de controle de emissões de gases de efeito estufa. Em suas empresas fizeram todo o possível para minar qualquer tipo de ativismo sindical e implantaram métodos de controle e de produtividade que não dão respiro aos trabalhadores e que os forçam a competir uns com os outros."
"Financiaram e organizaram campanhas contra qualquer projeto de transporte público colocado em andamento em qualquer grande cidade americana. Nos anos oitenta se descobriu que a Koch Industries roubava as tribos indígenas em cujas reservas explorava petróleo, declarando quantidades inferiores às que extraíam; também lançavam resíduos tóxicos e águas contaminadas nas matas e rios próximos a sua maior refinaria de petróleo. Pagaram multas ridículas."  
"Nos anos oitenta a Koch Industries sofreu contratempos por burlar as leis. A estratégia dos Koch a partir de então foi assegurar-se de que nenhuma lei ficasse em seu caminho, e de comprar quantos políticos fossem necessários para consegui-lo. São revolucionários porque só se contentam com tudo."
"Anular a resistência dos trabalhadores sempre foi outro de seus objetivos principais. A Koch Industries é uma empresa revolucionária: não querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo. A produtividade aumentou mais de 70%, mas os salários continuam congelados e perdem valor há anos."
Nossa! É impressionante a extensão da lista de ações deploráveis incluídas no modus operandi dos irmãos Koch. Despertada pela revelação desse enorme saco de maldades (feita em um livro, que, curiosamente, foi publicado no mês e ano da morte de David Koch: agosto de 2019), minha curiosidade levou-me a procurar na Wikipédia as identificações atribuídas a esses dois donos do mundo. Para David Koch, o principal deles, o surpreendente resultado que obtive é reproduzido a seguir, e até o momento da publicação desta postagem não havia sido alterado.
"David Hamilton Koch (3 de maio de 1940 - 23 de agosto de 2019) foi um empresário americano, ativista político, filantropo e engenheiro químico." O grifo é meu.
Pasmo diante de tal resultado, minha primeira reação foi questionar se sei o que significa filantropo. Uma pesquisa com a intenção de resolver a questão trouxe-me o seguinte resultado. Filantropo: que ou quem age em favor do seu semelhante; que ou quem pratica a filantropia; altruísta. Diante da confirmação de que sei o que significa filantropo, o velho método das recordações sucessivas levou-me a lembrar de um antigo livro de Oswaldo Soares intitulado Pequeno Dicionário Burguês - Proletário. Um livro em que na primeira orelha há a seguinte informação: "A mesma palavra pode ter diferentes significados, dependendo do contexto em que é utilizada. Essa diferença, deixa frequentemente de ser semântica para ser ideológica. É o que Oswaldo Soares procura mostrar neste Pequeno Dicionário Burguês - Proletário.", diz Decio Drummond.
Embora tal livro não apresente o significado de filantropo, encontrei pelo menos uma explicação para o uso de tal palavra na identificação atribuída a David Koch na Wikipédia. O significado de filantropo que conheço talvez se refira à visão proletária. Visão que uso para, mutatis mutandis, imaginar qual seja o significado de filantropo na visão burguesa. Filantropo: que ou quem age para ferrar (para não usar um verbo mais contundente) seu semelhante; que ou quem pratica a pilantropia; egoísta.
Diante de tudo que é revelado por Jane Mayer e por Christopher Leonard, considerar David Koch um filantropo é algo que chega a parecer-me um autêntico deboche. E ao falar em burguesia e em proletariado, destaco aqui o seguinte trecho extraído do início do primeiro parágrafo do texto de Molina:
"Perguntaram a Warren Buffet, um dos três ou quatro homens mais ricos do mundo, se acreditava na guerra de classes e ele respondeu com naturalidade: 'Claro que sim. Nós vencemos'."
Ou seja, em termos de guerra de classes, na opinião de Buffet, o tempo correto para conjugar o verbo existir não é o presente, e sim o passado, pois ela já foi vencida por um dos lados: pelo lado em que ele está; pelo lado dos endinheirados.
Diante do que se vê e o que se ouve (por aqueles que tenham capacidade para ver e ouvir) nesta insana sociedade, será que faz sentido concordar com Warren Buffet e acreditar que a batalha final da guerra de classes já tenha sido travada? Para responder a esta indagação, segue um trecho extraído de um artigo de Mauro Santayana publicado na edição de 22 de junho de 2008 do Jornal do Brasil sob o título A guerra entre os ricos e os pobres.
"Entre as assustadoras denúncias de projetos do neoliberalismo e da globalização, para a exclusão, há a de um encontro ocorrido na Califórnia, nos anos 80, em que alguns economistas e sociólogos americanos e europeus, sob o patrocínio dos banqueiros, concluíram que era necessário afastar do consumo 4/5 da população mundial, a fim de garantir o padrão de vida dos 20% de ricos restantes. Os demais deveriam ser marginalizados da comunidade planetária, até sua extinção, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra. Os fatos parecem confirmar esse monstruoso projeto, que a consciência ética (a cada dia mais escassa) abomina."
"A Koch Industries é uma empresa revolucionária: não querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo.", diz Christopher Leonard, em Kochland. Não, a batalha final da guerra de classes ainda não foi travada, pois a pretensão dos que estão vencendo (os donos do mundo) não é a rendição dos vencidos, e sim a sua destruição; a sua extinção.
Considerando que a minha pretensão não é a extinção dos leitores deste blog, o melhor a fazer neste momento é não alongar mais esta postagem e deixar para a próxima o espalhamento de mais reflexões provocadas por Os donos do mundo.

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