Cumprindo
o que foi prometido no último parágrafo da postagem anterior, segue um texto
focalizando o modus operandi de dois representantes
da sinistra classe composta pelos indivíduos que se consideram os donos do
mundo. De autoria do escritor espanhol Antonio
Muñoz Molina, ele foi publicado em 23 de setembro de 2019 (um mês após a morte
de um dos dois donos nele citados) na seção Cultura
do jornal EL PAÍS, e até o momento da publicação desta
postagem era encontrável em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/17/cultura/1568729920_158582.html.
Irmãos Koch, os donos do
mundo
Eles gastaram centenas de
milhões no financiamento de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos
direitos sindicais e ao controle de emissões
As revoluções empreendidas em nome dos
trabalhadores e pobres começaram em derramamentos de sangue e acabaram em
despotismo, incompetência e corrupção. São as revoluções dos ricos que têm
sucesso. Perguntaram a Warren Buffet, um dos três ou quatro homens mais ricos
do mundo, se acreditava na guerra de classes e ele respondeu com naturalidade: "Claro
que sim. Nós vencemos". Ao longo do século passado, os movimentos revolucionários
de classe foram se tornando reformistas e, através da pressão sindical e
ativismo político, foram conquistando melhorias que acabaram definindo o Estado
de bem-estar europeu, essa mistura de economia de mercado, saúde e educação
universais, igualdade perante a lei, governança democrática e impulso de
progresso que até recentemente dávamos como certo. Até mesmo nos Estados
Unidos, desde a época do New Deal de Roosevelt, a crueza extrema do capitalismo
e do individualismo a todo custo foi moderada graças às leis que limitavam o
tamanho das grandes empresas, promoviam um nível básico de proteção social e
asseguravam, graças à força dos sindicatos, condições salariais aceitáveis, serviços
de saúde e aposentadorias decentes aos trabalhadores.
Os reformistas consideravam que as coisas
poderiam sempre melhorar, que se poderia avançar na igualdade e nos direitos
civis, que gradualmente, com um esforço contínuo, as mulheres poderiam ser iguais
aos homens e as minorias marginalizadas e perseguidas alcançariam uma cidadania
plena. Os reformistas, entretanto, não contavam com os revolucionários. Mas os
revolucionários não eram os iluminados da extrema esquerda, místicos e
sectários como cristãos primitivos, adoradores de velhos tiranos e de
burocracias esclerosadas. Os revolucionários de verdade, os radicais sem
consideração, os adversários mais temíveis do estabelecido não eram os
militantes intoxicados de catecismos ideológicos, os pobres que não tinham
lugar na sociedade de bem-estar e os imigrantes forçados a arriscar a vida para
fugir da fome e da opressão. Os revolucionários incorruptíveis à toda moderação
reformista foram os ricos, e com eles, seus porta-vozes e propagandistas.
Há pouco mais de dois anos Jane Mayer
publicou um estudo corajoso e rigoroso sobre a maneira com que alguns
bilionários financiaram desde o começo dos anos setenta a guinada teórica e
política que levou ao desmantelamento das conquistas sociais, às maciças
diminuições de impostos a favor dos ricos e à eliminação das regulamentações
que desde a época do New Deal limitavam a capacidade de especulação e
manipulação dos grandes bancos e das agências financeiras de Wall Street. Jane
Mayer dedica em seu livro muitas páginas aos irmãos David e Charles Koch, dos
quais pouca gente havia ouvido falar até então, mas que possuíam um dos grupos
empresariais mais poderosos do mundo, e há décadas financiavam cadeiras
universitárias, centros de estudo, campanhas políticas, toda uma máquina
formidável dedicada a um único objetivo: o descrédito e a anulação da
capacidade reguladora e de redistribuição do Estado, e de qualquer limite
fiscal, social e ambiental à exploração dos recursos naturais e ao
enriquecimento dos mais ricos.
Dark Money é
um livro instrutivo e aterrorizante. Agora estou lendo outro que dá ainda mais
medo, talvez porque se concentre exclusivamente na história desses dois irmãos,
Kochland, de Christopher Leonard, e
do gigante empresarial que levantaram. A Koch Industries tem negócios em 60
países e mais de 100.000 empregados. Possui refinarias, fábricas de gás
natural, redes de oleodutos, fábricas de fertilizantes e de ração, de toalhas
de rosto, de papel higiênico, até de cartões de aniversário. Entre os dois
irmãos — um deles morreu meses atrás— reuniam uma fortuna de mais de 100
bilhões de dólares (414 bilhões de reais). Gastaram centenas de milhões em
financiamentos de campanhas de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos
direitos sindicais e a qualquer tipo de controle de emissões de gases de efeito
estufa. Em suas empresas fizeram todo o possível para minar qualquer tipo de
ativismo sindical e implantaram métodos de controle e de produtividade que não
dão respiro aos trabalhadores e que os forçam a competir uns com os outros.
Pelo dinheiro e tráfico de influências, fizeram fracassar a lei de proteção
ambiental bem moderada promovida por Barack Obama em seu primeiro mandato.
Financiaram e organizaram campanhas contra qualquer projeto de transporte
público colocado em andamento em qualquer grande cidade americana. Nos anos
oitenta se descobriu que a Koch Industries roubava as tribos indígenas em cujas
reservas explorava petróleo, declarando quantidades inferiores às que extraíam;
também lançavam resíduos tóxicos e águas contaminadas nas matas e rios próximos
a sua maior refinaria de petróleo. Pagaram multas ridículas.
Kochland
The secret history of Koch industries
and corporate power in America
Christopher Leonard
Kochland não
é um panfleto. Christopher Leonard é um jornalista econômico dotado desse
invejável talento anglo-saxão para esclarecer o complexo sem simplificá-lo e
para dar ímpeto narrativo à história do crescimento e da expansão de um grupo
empresarial que está disposto a nunca aceitar o menor limite à vontade de
enriquecimento e domínio de seus donos. Nos anos oitenta a Koch Industries
sofreu contratempos por burlar as leis. A estratégia dos Koch a partir de então
foi assegurar-se de que nenhuma lei ficasse em seu caminho, e de comprar
quantos políticos fossem necessários para consegui-lo. São revolucionários
porque só se contentam com tudo.
A Koch Industries é revolucionária: não
querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo. A produtividade
aumentou mais de 70%, mas os salários continuam congelados
Anular a resistência dos trabalhadores sempre
foi outro de seus objetivos principais. O episódio mais triste do livro de
Leonard é a crônica de uma negociação entre os diretores de uma fábrica de
tratamento de papel dos Koch e os representantes sindicais. O sindicato está
dizimado e desmoralizado porque tem cada vez menos membros. Os salários são tão
baixos que os trabalhadores não podem se arriscar a uma greve, sequer a uma
sanção. Do modo reformista, os porta-vozes sindicais procuram uma modesta
melhoria salarial, uma segurança de que poderão manter suas aposentadorias. Nem
mesmo isso conseguem. A Koch Industries é uma empresa revolucionária: não
querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo. A produtividade
aumentou mais de 70%, mas os salários continuam congelados e perdem valor há
anos. É 2016 e nas primárias do Partido Democrata os trabalhadores
sindicalizados votam em Bernie Sanders. Quando chegam as eleições, ainda que a
diretoria sindical que não soube e não pôde defender seus direitos peça o voto
em Hillary Clinton, a maior parte dos trabalhadores da fábrica, vencidos,
amargurados, ressentidos, vota em Trump.
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Nossa! Que texto revelador, inquietador e provocador
de reflexões!
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