quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A 804ª geração

"A vida só pode ser vivida olhando-se para frente, mas só pode ser compreendida olhando-se para trás."

(Søren Kierkegaard [1813 – 1855], filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês)

Sob o título A 803ª geração, o texto base para esta postagem foi obtido na edição de junho de 2009 da revista Você S/A, na coluna intitulada "Papo de Líder", assinada por Eugênio Mussak.
A 803ª geração
Na década de 70, Alvin Toffler escreveu o best-seller O Choque do Futuro. Nele lemos: "Se os últimos 50.000 anos da existência do homem fossem divididos em gerações de aproximadamente 62 anos cada uma, terá havido cerca de 800 gerações. Dessas 800, 650 foram passadas nas cavernas. Somente durante as últimas 70 gerações foi possível haver uma comunicação efetiva de uma geração para outra, porque a escrita se tornou possível. (...) A esmagadora maioria de todos os bens materiais que usamos foi desenvolvida dentro da atual, a 800ª geração".
Toffler fez essa análise para mostrar a velocidade crescente das transformações da humanidade e a repercussão disso nas diferenças existentes entre as gerações. Os estudiosos do assunto dizem que atualmente há diferenças significativas entre grupos separados por apenas dez anos, como se uma geração nova surgisse a cada década. Se assumirmos essa premissa a partir da data da publicação do livro, estamos vendo chegar ao mundo produtivo a 803ª geração, que tem características muito particulares. A principal é que nasceu e cresceu em contato com a tecnologia, o que fez surgir um novo tipo de relação das pessoas com o mundo, muito mais dinâmico e impessoal.
Falta aos jovens saber mais sobre o humanware
Essa geração teve mais acesso à informação e ao estudo. A consequência é que estão chegando aos cargos de executivos jovens informados, tecnológicos, racionais, rápidos, mas que correm o risco de não aplicar bem esses ótimos atributos por falta de estofo humano, de olho no olho. As empresas e escolas de negócios estão atentas a esse "lado humano" dos profissionais, e não apenas porque têm uma preocupação, digamos, humanista, e sim porque isso impacta nos resultados. Os novos líderes são especialistas em software e hardware, mas deixam a desejar em humanware.
A grande marca da humanidade é a transferência de conhecimento. Guerras, conquistas, erros e acertos dos que vieram antes de nós devem servir de ensinamento aos que estão chegando. Toffler alerta que o grande perigo do choque do futuro é a desumanização pela tecnologia e a alienação pela arrogância. Não caia nessa.
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"Os estudiosos do assunto dizem que atualmente há diferenças significativas entre grupos separados por apenas dez anos, como se uma geração nova surgisse a cada década. Se assumirmos essa premissa a partir da data da publicação do livro, estamos vendo chegar ao mundo produtivo a 803ª geração", diz Eugênio Mussak, em junho de 2009. Em conformidade com o que diz Mussak, já temos no mundo produtivo a 804ª geração, digo eu, em janeiro de 2022.
"(...) a 803ª geração tem características muito particulares. A principal é que nasceu e cresceu em contato com a tecnologia, o que fez surgir um novo tipo de relação das pessoas com o mundo, muito mais dinâmico e impessoal (...)  A consequência é que estão chegando aos cargos de executivos jovens informados, tecnológicos, racionais, rápidos, mas que correm o risco de não aplicar bem esses ótimos atributos por falta de estofo humano, de olho no olho. (...) são especialistas em software e hardware, mas deixam a desejar em humanware.", diz Mussak.
Sim, a 803ª geração tem características muito particulares que enxergo potencializadas na 804ª. Nascer e crescer em contato (cada vez mais intenso) com a tecnologia, eis uma condição que faz uma estupenda diferença no desenvolvimento de um indivíduo, pois o que alguém se torna tem muito a ver com as condições em que vive e com a cultura em que está imerso, como mostra os trechos de um livro intitulado "Amor", de autoria de Leo Buscaglia, reproduzidos a seguir.
Na virada do século, uma criança foi encontrada nas florestas próximas a um pequeno vilarejo na França. Havia sido abandonada por seus pais para morrer. Por algum milagre, não morreu na floresta. Sobreviveu. Não como uma criança, apesar de ser, fisicamente, um ser humano, mas como um animal. Caminhava com os quatro membros, vivia num buraco no chão, não tinha nenhuma linguagem, não conhecia nenhum relacionamento, não se preocupava com ninguém nem com nada, a não ser com a sobrevivência.
Casos como esse, como por exemplo o de Kumala, a garota índia, foram acompanhados desde o início. Têm em comum o fato de que se o homem cresce como um animal, agirá como um animal, pois o homem "aprende" a ser humano. E assim como um homem aprende a ser humano, também aprende a sentir como um ser humano, a amar como um ser humano.
O modo como o homem aprenderá a amar parece estar diretamente relacionado com a sua capacidade de aprender, com aqueles no seu ambiente que o ensinarão, assim como com o tipo, a extensão e a sofisticação de sua cultura.
Nossa cultura valoriza estupidamente (e cada vez mais) a tecnologia o que resulta na desastrosa consequência citada por Eugênio Mussak em seu artigo, e repetida no próximo parágrafo.
"A consequência é que, por falta de estofo humano, de olho no olho, os indivíduos tornam-se especialistas em software e hardware, mas deixam a desejar em humanware."
Deixar a desejar em humanware, eis uma sinistra consequência da troca do "olho no olho" pelo "olho na tela". Interagir muito mais com máquinas do que com pessoas e ter as próprias interações entre pessoas, geralmente, intermediadas por máquinas, eis algo que, no meu entender, dá relevância a seguinte afirmação do psicanalista, filósofo humanista e sociólogo alemão Erich Fromm (1900 – 1980): "O mal do passado foi os homens se tornarem escravos. O perigo do futuro é que eles se tornem robôs". Afirmação que associo a uma de Leo Buscaglia repetida no próximo parágrafo.
"Se o homem cresce como um animal, agirá como um animal", diz Buscaglia, baseado nos exemplos da criança encontrada nas florestas próximas a um pequeno vilarejo na França e o de Kumala, a garota índia, citados alguns parágrafos acima. Analogamente, entendo que se o homem cresce como uma máquina, agirá como uma máquina. Será que tal analogia faz sentido?
"Toffler alerta que o grande perigo do choque do futuro é a desumanização pela tecnologia e a alienação pela arrogância. Não caia nessa.", diz Eugênio Mussak.
Será que um alerta sobre o grande perigo do futuro feito por Leo Buscaglia seria diferente do feito por Toffler? Será que em vez de desumanização, Buscaglia diria que o grande perigo do choque do futuro é a dificultação da possibilidade de o homem conseguir tornar-se humano? Dificultação propiciada pelo fascínio pela tecnologia.
Em uma postagem que fala em humanização e em crianças que foram criadas convivendo com animais, segue um episódio envolvendo Chuck Jones, cartunista autor do Pernalonga, entre outros clássicos do desenho animado americano. Perguntado por que ele desenhava bichos em vez de gente, Jones respondeu que era mais fácil humanizar animais do que humanizar humanos.
Será que tal facilidade tem a ver com o fato de animais ainda não terem sido atingidos pelo fascínio pela tecnologia? Não, não se trata de demonizar a tecnologia, e sim de aprender a lidar com ela. Segundo a antropóloga digital Amber Case, "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária.". Será que algum dia surgirá uma geração que concorde com ela?

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