Continuação de quarta-feira
Outrora houve um ancião que era respeitado por sua devoção e virtude. Toda vez que alguém lhe perguntava como se tornara tão santo, ele sempre respondia: "Conheço o que está no Alcorão".Certa vez, ele se apresentou mortalmente doente, porém não se queixou de nada. "Como você consegue ficar tão tranquilo em uma situação dessas?", seus discípulos lhe perguntaram."Conheço o que está no Alcorão", disse o velho sufi.Tempos depois, o velho homem foi roubado de tudo que havia em sua cela, até mesmo do colchão e das velas. "Como você manteve seu bom humor?", perguntaram a ele."Conheço o que está no Alcorão", o velho homem lhes respondeu.Em uma estação em que nenhum figo cresceu, o velho homem quase morreu de fome."Como você conseguiu sobreviver?", os discípulos lhe perguntaram, pasmos."Porque conheço o que está no Alcorão", disse o idoso.Assim, quando o velho morreu, eles correram todos para sua cabana a fim de ver o que havia no Alcorão. "Bem, e o que é?", gritaram."O discípulo que segurava o livro levantou os olhos surpreso e disse com espanto: "O que está neste Alcorão são anotações em todas as páginas, duas flores secas e a carta de um amigo."
Há algumas coisas
na vida, quaisquer que sejam seus fardos, por mais que ela seja consumida, que,
se as cultivarmos, nunca morrerão, serão sempre a fonte da nossa alegria, nos
sustentarão em todos os momentos.
"Duas flores
secas", a beleza em forma de flor, as recordações dos últimos dias bons, permanecem
muito tempo na memória e no coração, mesmo depois de terminado o evento. A
beleza espalha sementes de esperança em nós mesmos. Faz-nos lembrar do tempo
que era bom por sua inocência. Traz-nos cara a cara com o natural. Lembra-nos
de que, como as estações, queiramos este momento presente ou não, existe um
lugar em nosso crescimento que no fim florescerá publicamente de maneiras que
não conseguimos enxergar agora.
Esse é o tipo da
beleza que não é comprada nem plantada, à qual não se aderiu e que não foi
amealhada.Que se recusa a chamar o pornográfico de "bonito".
Lembra-nos de que moramos no Jardim ao qual fomos chamados para cuidar, não
para destruir. Ensina-nos a enxergar em nós mesmos a capacidade de criar a
beleza conforme caminhamos e a esperar a beleza do Criador, mesmo que não
possamos sempre reconhecê-la à primeira vista.
"Duas flores
secas" se transformam no tesouro daqueles tempos em que a risada
espontânea garantia um momento rico e inesquecível. Eles ecoam muito tempo em
nossa vida, mesmo depois que os momentos terminam e nos soam como uma lembrança
da beleza incessante e fundamental da vida, por mais que seus dias tristes
sejam longos ou muitos. Eles nos lembram de que existe na vida, bem no fundo e
inesperadamente, uma bondade essencial, básica e bela que resgata todos os
momentos que nós mesmos revestimos de ganância, ódio, raiva ou egocentrismo.
A vida santa
cultiva esses momentos. Eles são o batimento cardíaco do Universo. Fazem-nos
contentes para estarmos vivos. Sustentam-nos em esperança quando tudo o mais
procura nos afundar em desespero.
Eles nos lembram,
qualquer que seja a tendência de hoje, de que uma vez que conhecemos a beleza
podemos encontrá-la novamente.
As "anotações
nas margens das nossas escrituras sagradas" nos elevam acima do mundano e
nos fazem olhar outra vez para aquilo que somos, ao que somos chamados para
ser. Elas exigem que ponderemos sobre o que fazemos e por que o fazemos.
Lembram-nos de que existe um propósito maior na vida do que simplesmente ganhar
dinheiro. A reflexão – essa comparação consciente das metas e esperanças da
minha vida com todos os possíveis propósitos da vida – nos dá um senso novo da
nobreza da vida. Torna-nos mais abrangentes para sermos tudo que podemos ser,
mesmo nas piores circunstâncias. Recusa-se a estar envolvida na busca por poder
e segurança que nos isola do resto da humanidade.
A reflexão sobre
as grandes perguntas da vida coloca tudo o mais em perspectiva. Nosso propósito
é maior do que o dinheiro e a habilidade social. Somos chamados para ser mais
do que simples transeuntes na vida. Estamos aqui para nos esforçarmos ao melhor
de nós mesmos, para chegarmos ao nosso centro, para nos lembrarmos de que somos
decididamente humanos e decididamente mais do que isso, ao mesmo tempo. Temos
dentro de nós a poeira estelar do Universo e estamos a caminho de casa.
Nada menos do que
o cosmos intencionava nos distrair de uma visão divina da vida.
Por fim, a amizade
– o amor – as "cartas de nossos amigos", nos toca de uma forma tal
que no fim poderíamos aprender a tocar os demais. Viemos a este mundo, desde o
momento do nascimento, incapazes de agir sem a ajuda de outros. Crescemos,
então, nesse nosso propósito: cuidar daqueles que estão ao nosso redor, de
forma que, cuidando uns dos outros, possamos todos viver seguros no
conhecimento de que somos protegidos e queridos, necessários e amados.
Nossas cartas nos
lembram do que e de quem amamos, os quais, no fim, dão forma à qualidade da
nossa vida.
Quando todas as
fases da vida passarem por nós, apenas estas coisas permanecerão: o tesouro
espiritual que amplia nossa alma para enxergar o que os olhos não conseguem
ver, a recordação de quão bela a vida realmente é por trás de toda a sua feiúra
e o amor daqueles que estão ao nosso redor que torna a viagem suave conforme
seguimos em frente.
Se a pergunta é:
"Que coisas são realmente importantes na vida?", a resposta depende
do que está no Alcorão do seu coração.
Fazer a viagem da
vida e não cultivar nenhuma dessas coisas é desperdiçar nossos anos. Qualquer
coisa menor do que isso é pura quimera. Agarramo-nos ao mercúrio e ao lamaçal quando
apenas nos concentramos na beleza cosmética e no poder passageiro, nas conexões
sociais e na segurança incerta. Todas essas coisas são reais, claro, até mesmo
necessárias. Elas fazem parte da nossa vida toda, em uma ou outra época. Mas
elas enganam. Apenas vêm e vão. Elas escorrem por nossos dedos como a água
escorre pela peneira, até mesmo conforme falamos.
Se a pergunta é:
"O que é realmente importante na vida?", a resposta é apenas a
própria vida, vivendo-a bem, mergulhando-a na beleza, no amor e na reflexão.
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Se a pergunta é:
"O que é realmente importante na vida?", a resposta é apenas a
própria vida, vivendo-a bem, mergulhando-a na beleza, no amor e na reflexão -
diz Joan
Chittister.
Se a pergunta é:
"O que se leva da vida?", a resposta é a vida que se leva - diz um
antigo ditado popular cuja autoria eu desconheço.
"O que se leva da vida é a vida que se leva.",
é um antigo ditado popular que, no meu entender, tem tudo a ver com o que diz Joan
Chittister, e tem nada a ver com a interpretação popular do ditado. Uma interpretação
equivocada que será comentada na próxima postagem.
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