"Medicina, Direito, Administração, Engenharia, são atividades nobres, necessárias à vida. Mas poesia, beleza, romance, amor são as coisas pelas quais vivemos."
(John Keating, o nada convencional professor de inglês do filme Sociedade dos Poetas Mortos)
O que levou-me a publicar esta postagem com o paradoxal título A utilidade do inútil?
A leitura de um livro homônimo de autoria de Nuccio Ordine (Itália,
1958), professor de literatura italiana na Universidade da Calábria, publicado em 2016 pela editora Zahar com tradução de Luiz Carlos Bombassaro. O
texto apresentado a seguir é um trecho intermediário da Introdução. Texto que pode ser lido como uma espécie de degustação para despertar a vontade de ler todo o livro, que considero extraordinário.
A utilidade do inútil
No mundo
em que vivemos, dominado pelo homo oeconomicus,
certamente não é fácil compreender a utilidade do inútil e a inutilidade do
útil (quantas mercadorias desnecessárias são consideradas úteis e
indispensáveis?). Dói ver os seres humanos, que ignoram a desertificação
crescente que sufoca o espírito, consagrarem-se exclusivamente a acumular
dinheiro e poder. Dói ver triunfarem, nas redes de televisão e na mídia, as
novas representações do sucesso, encarnadas no empresário que consegue criar um
império blefando ou no político impune que humilha um parlamento fazendo votar
leis de interesse pessoal. Dói ver homens e mulheres ocupados numa corrida
louca em direção à terra prometida do lucro fácil, enquanto tudo que está ao
seu redor – a natureza, os objetos, os outros seres humanos – não lhes suscita
interesse algum. O olhar focado no objetivo a ser alcançado não permite mais
desfrutar a alegria dos pequenos gestos cotidianos e descobrir a beleza que
pulsa na nossa vida. Muitas vezes, percebe-se melhor a grandeza exatamente nas
coisas mais simples.
"Se
não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se
compreende a arte", observou acertadamente Eugène Ionesco. E se "é absolutamente necessário que a arte sirva para qualquer coisa", conclui Ionesco, "eu direi que deve servir para ensinar às pessoas que existem atividades que não servem para nada e que é indispensável que elas existam". E não por
acaso, muitos anos antes, ao descrever o ritual do chá, Kakuzo Okakura havia
identificado no prazer de colher uma flor para oferecê-la à sua companheira o
momento preciso no qual o homem havia se elevado acima dos animais. "Penetrou
no reino da arte quando percebeu o sutil uso do inútil", explica o
escritor japonês em O livro do chá.
Num só golpe, um prazer redobrado: a flor (o objeto) e o ato de colhê-la (o
gesto) representam o inútil, questionando o necessário e o lucro.
Os
verdadeiros poetas sabem muito bem que somente longe do cálculo e da pressa é
possível cultivar a poesia. "Ser artista", confessa Rainer Maria
Rilke numa passagem das Cartas a um jovem
poeta, "não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a
árvore, que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquilamente as tempestades da
primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão." Os versos
não se dobram ante a lógica da pressa e do inútil. Em vez disso, às vezes o
inútil é necessário para tornar as coisas mais belas, como sugere Edmond
Rostand no final de sua peça Cyrano de
Bergerac: "Que dizeis?... É inútil?
Pois que o seja! / Não está só no sucesso a glória da peleja; / Não! Não! É
ainda melhor quando o sucesso é inútil!"
Precisamos
do inútil como precisamos das funções vitais essenciais para viver. "A
poesia, a necessidade de imaginar e de criar", lembra-nos mais uma vez
Ionesco, "é tão fundamental quanto respirar. Respirar é viver e não
fugir da vida." Exatamente esse respirar, como mostra Pietro Barcellona,
exprime "a vida que excede à própria vida", tornando-se "energia que
circula em forma invisível e que ultrapassa a vida, mesmo sendo imanente
a ela". É nas dobras daquelas atividades consideradas supérfluas que,
de fato, podemos encontrar o estímulo para pensar um mundo melhor, para
cultivar a utopia de poder atenuar, se não eliminar, as injustiças que
se propagam e as desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como uma
pedra em nossa consciência. Especialmente nos momentos de crise
econômica, quando as tentações do utilitarismo e do egoísmo mais
sinistro parecem ser a única estrela e a única tábua de salvação, é
preciso compreender que exatamente aquelas atividades que não servem
para nada podem nos ajudar a escapar da prisão, a salvar-nos da asfixia,
a transformar uma vida superficial, uma não vida, numa vida fluida e
dinâmica, numa vida orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas.
Se o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy nos convida a
refletir sobre o fato de que "na escala dos seres, somente o homem
realiza atos inúteis", dois psicoterapeutas (Miguel Benasayag e Gérard
Schmit) sugerem que "a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da
criação, do amor, do desejo", porque "o inútil produz aquilo que é o
mais útil, que se cria sem atalhos, sem ganhar tempo, muito além da
miragem criada pela sociedade". Eis por que Mario Vargas Llosa, ao
receber o prêmio Nobel em 2010, afirmou que "um mundo sem literatura se
transformaria num mundo sem desejos, sem ideais, sem desobediência, um
mundo de autômatos privados daquilo que torna humano um ser humano: a
capacidade de sair de si mesmo e de se transformar em outro, em outros,
modelados pela argila dos nossos sonhos".
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"Às vezes o
inútil é necessário para tornar as coisas mais belas, como sugere Edmond
Rostand no final de sua peça Cyrano de
Bergerac", relata Nuccio Ordine.
"É nas dobras daquelas atividades consideradas supérfluas que,
de fato, podemos encontrar o estímulo para pensar um mundo melhor, para
cultivar a utopia de poder atenuar, se não eliminar, as injustiças que
se propagam e as desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como uma
pedra em nossa consciência.", diz Nuccio Ordine.
"A utilidade do inútil é a utilidade da vida, da
criação, do amor, do desejo", porque "o inútil produz aquilo que é o
mais útil, que se cria sem atalhos, sem ganhar tempo, muito além da
miragem criada pela sociedade", sugerem Miguel Benasayag e Gérard
Schmit, dois psicoterapeutas, relata Nuccio Ordine.
Diante desses trechos do texto de Nuccio Ordine, inevitavelmente a velha prática das recordações sucessivas trouxe-me à mente um memorável discurso feito em 18 de março de 1968 por Robert Kennedy, então candidato à presidência dos Estados Unidos, na Universidade do Kansas. Um discurso sobre o Produto Interno Bruto (PIB) no qual são ditas coisas que, no meu entender, têm tudo a ver com a paradoxal utilidade do inútil, e do qual extraí os dois próximos parágrafos.
"O nosso PIB não compreende a beleza da nossa poesia ou a solidez de nossos casamentos, a inteligência de nossas discussões ou a honestidade de nossos funcionários públicos. Não mede nem a nossa argúcia, nem a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem o nosso conhecimento, nem a nossa compaixão, nem a devoção ao nosso país.""Em poucas palavras, mede tudo, exceto aquilo que torna a vida digna de ser vivida; e pode nos dizer tudo sobre a América, exceto se somos orgulhosos de sermos americanos."
Será que faz sentido afirmar que o PIB mede tudo, exceto aquilo que torna a vida digna de ser vivida - o inútil?
Sim, como diz o nada convencional professor de inglês do filme Sociedade dos Poetas Mortos, existem coisas que são atividades nobres, necessárias à vida (coisas úteis), mas existem outras pelas quais vivemos (as inúteis).
(†) Lamentavelmente, dois meses e meio
depois do memorável discurso, em 06 de junho de 1968, Robert Kennedy seria assassinado, aos 42 anos.
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