Cumprindo
o que foi dito na última frase da postagem anterior, segue mais um belo texto de Thich Nhat
Hanh em que ele focaliza o interser. Um texto intitulado "Flores e
lixo" extraído de seu livro intitulado "Paz é cada
passo – O caminho da atenção plena", publicado,
no Brasil, pela editora Vozes.
Matérias jornalísticas sobre desastres e
tragédias que contenham imagens costumam conter também a seguinte advertência: as imagens são fortes. Considerando que
um texto que focalize o interser, em última análise, é algo que visa advertir-nos
sobre os desastres e as tragédias decorrentes da "maneira como vivemos nossas
vidas", no meu entender, o texto reproduzido
a seguir deve ser precedido pela seguinte advertência: algumas palavras são fortes.
Flores e lixo
Maculado ou imaculado, puro ou obsceno são
conceitos que formamos em nossa mente. Uma linda rosa que acabamos de cortar e
colocar num vaso é pura. É perfumada e muito viçosa. Uma lata de lixo é o
oposto, fede e está cheia de coisas podres.
Mas isso é só se olharmos superficialmente. Se
examinarmos em maior profundidade veremos que em cinco ou seis dias, a rosa
fará parte do lixo. Não precisamos esperar cinco dias para compreender isso. Se
apenas olharmos a rosa, e olharmos profundamente, podemos ver isso agora. E se
olharmos para uma lata de lixo de resíduos orgânicos, vemos que em alguns meses
o seu conteúdo pode ser transformado em legumes encantadores, e até mesmo numa
rosa. Se você é um bom jardineiro orgânico, ao olhar para uma rosa, você pode
ver o lixo, e vendo o lixo você pode ver uma rosa. Rosas e detritos orgânicos
intersão. Sem rosa, não pode haver lixo; e sem lixo, não pode haver rosa. Ambos
precisam muito um do outro. A rosa e o lixo se igualam. O lixo é tão precioso
quanto a rosa. Se contemplarmos profundamente os conceitos de impureza e
imaculabilidade, nós retornamos à noção da interexistência.
Na cidade de Manila, há muitas prostitutas jovens;
algumas têm apenas quatorze ou quinze anos de idade. Elas são muito infelizes.
Elas não queriam ser prostitutas, mas suas famílias são pobres e essas meninas
foram para a cidade procurar algum tipo de trabalho, como o de vendedora
ambulante, para ganhar dinheiro e ajudar suas famílias. É claro que isso não
acontece só em Manila, mas acontece também na cidade de Ho Chi Minh no Vietnã,
na cidade de Nova York, e em Paris. Depois de apenas algumas semanas na cidade
uma garota vulnerável pode ser persuadida por uma pessoa mais esperta para
trabalhar para ela e ganhar talvez cem vezes mais a quantia que ela conseguiria
ganhar como vendedora ambulante. Por ser muito jovem e não conhecer muito sobre
a vida, ela aceita e se torna uma prostituta. Desde então, ela vem carregando o
sentimento de ser impura, pervertida, e isso lhe causa um grande sofrimento.
Quando olha para outras meninas, bem-vestidas, pertencentes às boas famílias,
brota nela um sentimento infame, um sentimento de profanação que se torna o seu
inferno.
Mas se ela pudesse examinar profundamente a si
mesma e toda a situação, ela compreenderia que é do jeito que é porque as
outras pessoas são do jeito que são. Como poderia uma "boa menina",
pertencente a uma "boa família", se orgulhar? Porque o estilo de vida
da "boa família" é do jeito que é, a prostituta tem que viver como
prostituta. Ninguém entre nós tem mãos limpas. Nenhum de nós pode afirmar que a
responsabilidade não é nossa. A garota em Manila é do jeito que é, porque somos
do jeito que somos. Ao observar a vida daquela jovem prostituta, vemos as vidas
de todas as "não prostitutas". E observando as não prostitutas e a
maneira como vivemos nossas vidas, compreendemos a prostituta. Cada coisa ajuda
a criar a outra.
Vamos olhar para a riqueza e a pobreza. A sociedade
afluente e a sociedade destituída intersão. A riqueza de uma sociedade é feita
da pobreza da outra. "Isso é assim, porque aquilo é 'assado'". A riqueza
é constituída de elementos da não riqueza, e a pobreza é feita de elementos da
não pobreza. É exatamente o mesmo que acontece com a folha de papel. Então
devemos ter cuidado para não nos aprisionarmos em conceitos. A verdade é que
tudo contém tudo o mais. Nós não podemos simplesmente existir, nós só podemos
interexistir. Somos responsáveis por tudo que acontece em torno de nós.
É somente vendo com os olhos do interser que aquela
menina poderá se libertar do seu sofrimento. Só então, ela vai compreender que
ela está suportando o fardo do mundo inteiro. O que mais nós podemos
oferecer-lhe? Examinando profundamente dentro de nós mesmos, nós a vemos, e
compartilhamos a dor dela e a dor do mundo inteiro. Então podemos começar a, de
fato, ajudar.
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"Nós não podemos simplesmente existir, nós só podemos interexistir. Somos responsáveis por tudo que acontece em torno de nós. (...) Ninguém entre nós tem mãos limpas. Nenhum de nós pode afirmar que a responsabilidade não é nossa."."A garota em Manila é do jeito que é, porque somos do jeito que somos. Ao observar a vida daquela jovem prostituta, vemos as vidas de todas as 'não prostitutas'. E observando as não prostitutas e a maneira como vivemos nossas vidas, compreendemos a prostituta. Cada coisa ajuda a criar a outra. (...) É somente vendo com os olhos do interser que aquela menina poderá se libertar do seu sofrimento. Só então, ela vai compreender que ela está suportando o fardo do mundo inteiro. O que mais nós podemos oferecer-lhe? Examinando profundamente dentro de nós mesmos, nós a vemos, e compartilhamos a dor dela e a dor do mundo inteiro. Então podemos começar a, de fato, ajudar."
Considerando
"a maneira como vivemos nossas vidas" e o que é dito no
segundo parágrafo desta postagem, será que
faz sentido considerar as palavras de Thich Nhat Hanh destacadas nos dois
parágrafos anteriores como palavras
fortes?
Será que faz sentido concordar com Thich Nhat
Hanh quando ele diz que "É somente
vendo com os olhos do interser e examinando profundamente dentro de nós mesmos
que, então, podemos começar a, de fato, ajudar." Começar a, de fato, ajudar
não apenas aquela menina de Manila a libertar-se do seu sofrimento, mas também a
criar algo que faça jus ao termo civilização.
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