"Interpretar o passado é a
melhor maneira para entender o presente e para construir o futuro sem reincidir
em comportamentos equivocados."
(Bernard Shaw [1856 – 1950], dramaturgo, crítico,
polemista e ativista político irlandês)
"Como será o dia depois da pandemia?", eis a pergunta com
que Daniel Aarão inicia seu excelente artigo. Pergunta que ele começa respondendo assim: "Há opiniões positivas. (...) Artistas anunciam dias
melhores. (...) Reconhecimento do papel do Estado na organização dos serviços
públicos essenciais – saúde, educação e segurança". E aí eu pergunto: O
que são serviços públicos? São serviços aos quais, em uma autêntica sociedade,
todos teriam direito e não apenas aqueles que por eles possam pagar. Saúde,
educação e segurança, eis os serviços públicos essenciais. Hospitais, escolas e
penitenciárias, eis as instituições que jamais deveriam funcionar em busca de
lucros. Mas as coisas não são bem assim como evidencia, por exemplo, uma
"pérola" apresentada a partir do final do 18º minuto do episódio do
programa GREG
NEWS intitulado Desvio na Saúde (https://www.youtube.com/watch?v=B2XqF3aWobA&t=1s), exibido em 29 de maio de 2020.
"Os hospitais estão quase quebrando porque eles perderam no seu movimento normal as cirurgias eletivas, aquelas que não são emergenciais, os acidentes de trânsito caíram muito, também eram um motivo de faturamento dos hospitais e a covid não está ocupando na maioria do país os leitos. Então, nós estamos ainda quebrando todo o nosso sistema hospitalar financeiramente porque eles não podem fazer o seu trabalho normal e também não tem clientes covid em todo o país pra ocupar os leitos."
O autor da "pérola"? Ricardo Barros. Quem é ele? Segundo a Wikipédia,
um engenheiro civil, empresário e político brasileiro que foi ministro da saúde
no governo Temer e, atualmente, é deputado federal pelo estado do Paraná. Será
que, diante da reclamação pela queda na quantidade de acidentes de trânsito, faz
sentido ter "opiniões positivas" sobre a saúde? E o que dizer da
denominação "clientes covid"? Será que faz sentido um empresário ser ministro
da saúde? E um militar? Será que faz sentido transformar o ministério da saúde
em um milistério? A reclamação do empresário
ex-ministro será atendida pelo afrouxamento das leis do trânsito. Dito isto,
passemos a um exemplo no que se refere à segurança.
"Uma executiva do ramo, Diane McClure, tranquilizou os acionistas, em outubro de 1997, com uma boa notícia: 'Nossas análises do mercado mostram que o crime juvenil continuará crescendo'. (...) 'Afinal, presídio quer dizer dinheiro', diz Nils Christie, um criminologista citado na mesma página em que é citada a executiva."
Onde encontrei a referida página? No livro De Pernas Pro Ar – A Escola do Mundo ao
Avesso, do extraordinário Eduardo Galeano (1940 – 2015). Será que de 1997
para cá a ideia de "presídio querer dizer dinheiro" foi abandonada ou
está ainda mais pujante? O que vocês acham? Será que a frase poderia ser "Afinal,
criminalidade quer dizer dinheiro"?
Será que a paráfrase - "Afinal, educação quer dizer dinheiro" -
também descreve a maneira como a educação é tratada neste mundo em que
sobrevivemos? E ao ver serviços públicos essenciais (saúde, educação e
segurança) serem tratados como "algo querendo dizer dinheiro", será
que faz sentido discordar da seguinte afirmação de Nuccio Ordine, feita em 2014:
"Reduzir o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar
um mundo melhor."?
"Pesquisa realizada na França aponta para a
expectativa de um mundo mais solidário, sóbrio, democrático, preocupado com o
meio ambiente.", diz Daniel Aarão. E ao ler "a expectativa
de um mundo mais solidário e democrático", o método das recordações sucessivas faz-me
lembrar algo apontado por Noam Chomsky em entrevista concedida a um canal do YouTube
intitulado Tutaméia, nele publicada em 23 de abril de 2020 (https://www.youtube.com/watch?v=twUinwhHL-k). Os
grifos são meus.
"Falando sobre como as forças políticas e econômicas estão se movimentando neste momento, quando muitos intelectuais, observadores políticos e econômicos falam que o mundo pode sair melhor, pode ter um aprendizado de liberdade, de democracia, de empatia e solidariedade, Noam Chomsky apontou que os poderosos do mundo, as forças do poder já estão se movimentando no sentido de que o mundo ao sair dessa pandemia esteja mais próximo do mundo que era antes da pandemia, que as estruturas sejam mantidas, as estruturas de dominação, apesar de todos esses exemplos de como o neoliberalismo fracassa em responder aos problemas da humanidade."
"São perspectivas construtivas, animadoras, viáveis.
Em tese. Se forem enfrentadas e neutralizadas outras tendências, ameaçadoras.", diz Daniel Aarão. Será que o que é apontado por
Chomsky pode ser enquadrado nas tendências ameaçadoras a que se refere Aarão? E
as comparações entre o que é apontado por Chomsky e o que é dito por Aarão
prosseguem.
"Uma delas (das tendências ameaçadoras) é o assustador crescimento da concentração da renda e das desigualdades sociais. (...) Stéphane Lauer, em recente artigo, apontou para uma economia em crise face a sólidos mercados financeiros. Milhões de desempregados, dezenas de milhares de mortos, parentes, amigos e entes queridos angustiados e enlutados, empresas em dificuldades, à beira da falência. Entretanto, as bolsas de valores vão bem, obrigado. (...) Os lucros das grandes empresas suscitam euforia. A especulação com títulos e moedas corre livre e sem freios. É razoável? Não, não é razoável. (...) A receita formulada para combater a crise de 2008 é adotada mais uma vez. Produzirá os mesmos resultados: os ricos ficarão mais ricos. Os poderosos mais fortes.", diz Aarão.
"As forças do poder já estão se movimentando no sentido de que o mundo ao sair dessa pandemia esteja mais próximo do mundo que era antes da pandemia, que as estruturas sejam mantidas, as estruturas de dominação, apesar de todos esses exemplos de como o neoliberalismo fracassa em responder aos problemas da humanidade.", aponta Chomsky.
Será que Daniel Aarão e Noam Chomsky dizem,
basicamente, a mesma coisa?
"Nestes
horizontes sombrios, contudo, há luzes piscando.", diz Aarão antes
de encerrar seu excelente artigo com dois parágrafos alentadores que eu não
deveria deixar de reproduzir nestas reflexões.
"Na Holanda, 170 intelectuais assinaram um manifesto propondo caminhos a serem considerados no futuro imediato: questionar a economia obcecada com o crescimento do PIB, selecionar o que deve ou não crescer, segundo as necessidades das pessoas; redistribuir a riqueza; transformar a agricultura, valorizando a biodiversidade e a produção local; reduzir o consumo e as viagens; congelar as dívidas de trabalhadores, pequenos empresários e países mais pobres. O italiano Franco Berardi, o Bifo, propõe meditar sobre uma sociedade livre da compulsão da acumulação e do crescimento econômico: 'precisamos de comida, afeto e prazer, ternura, solidariedade e frugalidade'. Revalorizar o útil, o valor de uso em contraposição à abstração do valor de troca imposto pela dinâmica de um sistema capitalista predador."
"Para depois da pandemia, à espera das que virão, Bifo e os holandeses sugerem sendas. Não será fácil tomá-las. Se tomadas, porém, mais do que salvar vidas, poderão tornar a vida melhor."
"Meditar
sobre uma sociedade livre da compulsão da acumulação e do crescimento
econômico: 'precisamos de
comida, afeto e prazer, ternura, solidariedade e frugalidade'", eis a proposta do italiano
Franco Berardi (1949 - ....), filósofo, escritor e agitador cultural, segundo a
Wikipédia. Será que em um mundo em que a vida ocorra em função de "comida,
afeto e prazer, ternura, solidariedade e frugalidade" ocorrem pandemias?
No meu entender, não.
"Para
depois da pandemia, à espera das que virão, Bifo e os holandeses sugerem
sendas. Não será fácil tomá-las. Se tomadas, porém, mais do que salvar vidas,
poderão tornar a vida melhor." E ao falar em "tornar a vida
melhor", o método das recordações sucessivas ataca outra vez. Espalhar idéias que ajudem a
interpretar a vida e provoquem ações para torná-la cada vez melhor, eis a
intenção deste blog. Interpretar a vida
e perceber que torná-la melhor é algo que jamais deverá ser deixado,
exclusivamente, nas mãos de terceiros, pois, como é dito no meu perfil no blog,
acredito que a qualidade de uma sociedade é resultado das ações de todos os
seus componentes.
Interpretar a vida
e perceber que se o mundo é da forma que é deve-se ao fato de tal forma ser
conveniente aos que dele julgam-se donos; aos que, usando uma expressão de
Chomsky, constituem "as
forças do poder". Nossa! O
método das recordações sucessivas ataca outra vez! Já que "tornar a vida melhor" é algo que compete a todos e a cada um de
nós, com a intenção de estimulá-los a participar de tal tarefa, e sabendo que
para tal será imprescindível dispor-se a enfrentar "as forças do poder", encerro
esta já longa postagem convidando-os a
ler a postagem publicada em 17 de dezembro de 2018. O título da postagem? O poder criador.
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