quinta-feira, 30 de julho de 2020

O perdão nos tempos do ódio

"O fraco jamais perdoa. Perdão é um atributo dos fortes."
(Mahatma Gandhi)
Após uma sequência de postagens focalizando os temas solidão, saudade e amizade, nestes tempos em que uma coisa denominada redes sociais (sic), equivocadamente, é usada para manifestações de ódio, a busca pela próxima ideia a ser espalhada fez-me lembrar de uma reportagem-entrevista que guardei por acreditar que algum dia a espalharia por meio deste blog.
Publicada na edição de 28 de novembro de 2018 do jornal O Globo, com autoria atribuída a Lizandra Magalhães, a reportagem-entrevista tem o seguinte subtítulo: "A mulher que perdoou o assassino de sua filha e neto fala sobre como superar a dor e o ódio depois de uma tragédia". O título da reportagem? "O doloroso caminho da reparação." Quanto ao título escolhido para a postagem, segue a seguinte explicação. Tendo o dom de escrever romances, Gabriel García Márquez escreveu O Amor nos Tempos do Cólera. Desprovido desse dom, o máximo que consigo é publicar uma postagem intitulada por uma paráfrase do título do referido romance.
O doloroso caminho da reparação
A mulher que perdoou o assassino de sua filha e neto fala sobre como superar a dor e o ódio depois de uma tragédia
É melhor estar firme diante de Agnes Furey. A pequena octogenária de aparência frágil tem um abraço forte e histórias de tirar o fôlego. Irlandesa radicada nos Estados Unidos, moradora da cidade de Tallahassee, no estado da Flórida, Agnes inspira gente por onde passa. A enfermeira aposentada assumiu a missão de ensinar que o diálogo entre vítima e agressor pode ajudar a reparar os danos causados por uma tragédia. No mês de novembro, participou do projeto Inspira BB, promovido pelo Banco do Brasil. No Rio, o encontro foi realizado em parceria com o jornal O Globo e contou com a presença de brasileiros que perderam os familiares tragicamente e conseguiram transformar o sofrimento em amor.
Agnes conheceu a dor da perda de um filho pela primeira vez ainda jovem, em 1960, quando a pequena Margaret morreu aos três meses, provavelmente vítima da doença hoje conhecida como Síndrome de Morte Súbita. O filho Frank, portador do vírus HIV, não resistiu a um tumor no cérebro, em 1996.
Em 1998, Patricia, a filha mais velha, e o neto Chris, de 6 anos, foram assassinados por um homem chamado Leonard Scovens, viciado em crack. Patricia o conhecera em um programa de reabilitação e tentava ajudá-lo.
Em março de 1999 Leonard foi condenado à prisão perpétua. Agnes Furey passou por um período de depressão e grande dificuldade para suportar a dor.
- Nos dias após o assassinato, eu disse a um amigo: um dia ainda falarei com aquele homem e ele vai me ouvir – conta Agnes.
Scovens recebeu a primeira carta de Agnes em 2005 e ambos seguiram trocando correspondências. Ele contou sua trajetória de abuso na infância e como se viciou em drogas. O conteúdo das cartas transformou-se no livro Wildflowers in the Median, lançado em 2012 nos Estados Unidos e agora traduzido em português pela Agência O Globo.
Os dois construíram uma relação baseada no conceito da Justiça Restaurativa, segundo a qual o diálogo e o perdão podem ajudar a aplacar a dor decorrente de uma tragédia. Fundaram juntos o Achieve Higher Ground, organização que defende investimentos em recuperação, prevenção e reabilitação de traumas.
Agnes enfatiza que nenhuma dor pode ser comparada a outra:
- Cada sofrimento é único e exclusivo, impossível fazer qualquer comparação entre as pessoas.
Arrependido, Scovens nunca teve coragem de pedir perdão a Agnes. Mas ela o perdoou. E espera que um dia possa encontrá-lo pessoalmente, pois atualmente a penitenciária onde está preso não permite o encontro entre vítimas e agressores.
Agnes, 81 anos, trabalhou como enfermeira no atendimento de viciados em drogas.
Entrevista: Agnes Furey
Que tipo de sentimentos ou emoções a fizeram começar a se comunicar com Leonard?
Queria conversar com Leonard, pois sabia que minha filha tinha motivos suficientes para tentar ajudá-lo. Ela queria que ele voltasse a um programa de tratamento. Eu o encontrei brevemente antes do crime e não tive uma boa impressão. Após tudo o que aconteceu queria saber quem era aquele jovem e como ele poderia ter feito uma coisa dessas. Eu também queria quer ele soubesse que seu ato prejudicou muitas pessoas.
Você se tornou uma defensora da Justiça Restaurativa. Você já conhecia esse movimento? Quais são os seus benefícios?
Eu tinha ouvido falar tanto da Justiça Restaurativa quanto do diálogo vítima / ofensor, nem sempre a mesma coisa. Costumo falar das ondas de dano e das ondas de cura. Quando o dano for feito e a pessoa responsável estiver disposta a conversar com a pessoa prejudicada, muitas vezes são tomadas providências para reparar o dano. Quando a pessoa prejudicada toma a iniciativa, o causador do dano concorda e ambos recebem a assistência de um facilitador, pode ocorrer uma conversa.
Por que acha que as pessoas ficam tão impressionadas com a sua atitude?
Porque é contrário ao que é frequentemente expresso na mídia. Na maioria das vezes a primeira reação é a raiva. Mesmo quando as pessoas boas querem ajudar, elas reagem com ódio. Muitas vezes a pessoa afetada, vítima ou sobrevivente, começa a perceber que não há nada que possa desfazer o terrível acontecimento e pensa: "OK, e agora?" Então começa a fazer um movimento de explorar possibilidades como, por exemplo, realizar ações que possam impedir que outros eventos terríveis como este ocorram novamente.
Foi assim que surgiu o Achieve Higher Ground? Quantas pessoas já participam desta organização?
O Achieve Higher Ground foi a forma que eu e Leonard encontramos para tentar alcançar outras pessoas feridas. Hoje são 947 membros on-line no facebook e de 20 a 35 pessoas participando de grupos de apoio. Várias centenas participaram de apresentações. O livro Wildflowers in the Median atraiu a atenção internacional e inspirou documentários que foram exibidos na TV na Europa e no Reino Unido e em grupos, igrejas e uma universidade na Flórida.
Você é religiosa? A religião a ajudou a lidar com suas perdas?
Eu me considero uma pessoa espiritualista, pois não sigo mais uma religião específica. Deixei de ser católica e hoje posso dizer que acredito em todas as religiões. Acho que todas elas têm um objetivo comum. A fé me ajudou a lidar com as perdas, mas o perdão é um sentimento interior e particular, e não deve ser imposto pelas religiões.
Você conhece mais pessoas que agiram como você? Acha que podem conseguir a cura?
Conheço várias pessoas e famílias que se engajaram em diálogo com o infrator. Descobri que o impulso de conversar e ouvir o ofensor não é incomum. Uma conversa voluntária pode ajudar a repara o dano. Isso não é cura. Algumas coisas não podem ser desfeitas e não podem ser curadas.
*************
"Por que acha que as pessoas ficam tão impressionadas com a sua atitude?" – pergunta a repórter. Pergunta que a entrevistada começa a responder assim: "Porque é contrário ao que é frequentemente expresso na mídia.".
Será que vale a pena refletir sobre o que é perguntado e respondido na excelente reportagem-entrevista de Lizandra Magalhães? –, eis a pergunta que lhes deixo ao terminar esta postagem.

Nenhum comentário: