Viver em um mundo
melhor, eis algo que creio ser um desejo da quase totalidade dos integrantes de
qualquer mundo. Estar consciente de que o mundo não passa de um reflexo do que
são aqueles que o integram, eis algo que, infelizmente, creio ser um estágio atingido
por uma pequena quantidade de seus integrantes. Ter a pretensão de aumentar tal
quantidade, eis a intenção do espalhamento de mais um texto da jornalista e
escritora Milly Lacombe.
Extraído da edição 280
da revista Trip, o texto apresentado
a seguir tem duas diferenças em relação ao original: apresenta apenas a segunda
metade do texto publicado na coluna de Milly Lacombe e o título que dei a ele é
uma frase usada por Milly, digamos, como subtítulo.
Embora seja baseado na
história de vida da autora, enxergo no texto a capacidade de propiciar inúmeras
reflexões a qualquer pessoa que se disponha a ler coisas que possam oferecer-lhe
a oportunidade de encetar uma jornada rumo
a esse lugar que se chama "alguém melhor".
A jornada rumo a esse lugar que se chama "alguém melhor"
É um movimento que
exige esforço constante, desconstruções, reparações
Nasci e cresci dentro de uma família tradicional. Católica, conservadora,
direitista, totalmente branca, bastante europeia e ligeiramente rica. Estudei
nas melhores escolas, tive acesso a clubes privados, onde pude praticar
esportes e conhecer muitas pessoas como eu. Viajei para a Europa antes dos 18,
aprendi outras línguas, li muitos livros. Não precisei fazer as camas onde
dormi, nem lavar a louça que sujei ou guardar as roupas que usei. Havia quem
fizesse isso por mim. Eram, quase sempre, corpos negros a me servir.
Uma criança que se forma nessas circunstâncias naturaliza preconceitos e
tem sua configuração-padrão programada para acreditar ser melhor do que outros:
pobres, excluídos, periféricos. A vida, aliás, vai dando a você a certeza de ser
isso mesmo. Os melhores empregos são seus, os salários mais altos, também, as
casas mais glamurosas, idem, e sempre localizadas em bairros cheios de
conveniências e oportunidades culturais.
Mundo real
É preciso um bocado de atenção e de disciplina para perceber que o mundo
real não é bem aquele em que tentaram fazer você acreditar. O mundo real é
injusto, cruel, desigual e a sua volta existem milhões de pessoas que, ao
contrário de você, não tiveram oportunidades. Nessa hora, é fundamental que nos
perguntemos como teria sido a vida delas se tivessem tido as chances que
tivemos.
Claro que é mais fácil acreditar que eu me dei bem na vida porque sou
mesmo talentosa. Que ganhei dinheiro porque ralei. Que sou culta porque me
esforcei. Não é conveniente acreditar que só ganhei dinheiro e status porque
tive oportunidades e privilégios, ou uma herança, ou consegui meu primeiro emprego
porque meu pai era amigo do dono da empresa. Ou, quem sabe, era até o dono da
empresa. As pessoas mais esforçadas que eu conheço são pobres e se esforço
fosse garantia de sucesso e riqueza, elas seriam bem mais ricas do que eu.
Mas é preciso muita atenção e disciplina para se desfazer da
configuração-padrão e pensar por conta própria. Trata-se, como sugeriu o
escritor David Foster Wallace, da verdadeira liberdade: a liberdade de enxergar
o outro.
Todos somos feitos de inúmeros preconceitos. Somos falíveis porque somos
humanos e nossa beleza é inseparável de nossas fragilidades. Nada disso é novo
ou surpreende. O que surpreende é ser criado com tanta escolarização e ainda
assim não reconhecer o preconceito estrutural introjetado em cada um de nós, e
então fazer o que for preciso para se livrar dele.
O racismo, o machismo e a homofobia são estruturas de poder que vão além
de desvios de caráter individuais. Dar os ombros e dizer coisa como "mas
eu não sou racista" é deixar de enxergar o racismo como estrutura de
poder, deixar de perceber que, apesar de querermos nos considerar pessoas boas,
estamos impregnados desses preconceitos porque eles foram introjetados em todos
nós quando éramos crianças.
Estruturas de poder fazem uso de todos nós para que, doutrinados e
automatizados, possamos perpetuar a hegemonia de quem sempre nos oprimiu. Com
elas seguimos alimentando, ainda que inconscientemente, os valores de uma
sociedade patriarcal que celebra tudo o que é masculino, branco e
heteronormativo e tenta marginalizar e deslegitimar qualquer coisa que não
seja. A jornada rumo a esse lugar que se chama "alguém melhor" é
longa e está longe de ser um evento; é um movimento que exige esforço
constante, desconstruções, reparações. Que exige coragem para sentir vergonha
da pessoa que um dia você foi e, depois, uma certa saudade daquela pessoa que
você ainda não é.
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"Claro que é mais fácil acreditar que eu me dei bem na vida porque sou mesmo talentosa. Que ganhei dinheiro porque ralei. Que sou culta porque me esforcei. Não é conveniente acreditar que só ganhei dinheiro e status porque tive oportunidades e privilégios, ou uma herança, ou consegui meu primeiro emprego porque meu pai era amigo do dono da empresa. Ou, quem sabe, era até o dono da empresa.", diz Milly Lacombe.
Vocês percebem no parágrafo acima uma crítica ao conceito de meritocracia
difundido pelos privilegiados com a
intenção de fazer os "fundidos" (!) resignarem-se diante das condições de vida
(sic) que lhes cabem neste mundo?
Sim, como afirma Milly
Lacombe, "é preciso muita atenção e disciplina para se desfazer da
configuração-padrão, pensar por conta própria e conseguir atingir o que o
escritor David Foster Wallace disse ser a verdadeira liberdade: a liberdade de
enxergar o outro".
"A jornada rumo a esse lugar que se chama 'alguém melhor' é longa e está longe de ser um evento; é um movimento que exige esforço constante, desconstruções, reparações. Que exige coragem para sentir vergonha da pessoa que um dia você foi e, depois, uma certa saudade daquela pessoa que você ainda não é.", diz Milly Lacombe.
"Longa, longe de
ser um evento, um movimento que exige esforço constante (e interminável, acrescento
eu), desconstruções e reparações", eis uma boa descrição da "jornada
rumo a esse lugar que se chama 'alguém melhor'". Lugar pelo qual cada um
de nós, inevitavelmente, terá que passar para tornar-se apto a cooperar na
construção desse lugar que se chama 'um mundo melhor'. Aptidão que (usando aqui
algumas palavras de Milly Lacombe), exige de cada um, inicialmente, "a
coragem para sentir vergonha da pessoa que foi um dia e, posteriormente, uma
certa saudade daquela pessoa que ainda não é", mas que, inevitavelmente,
terá que ser se, verdadeiramente, almejar viver em 'um mundo melhor'.
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