sábado, 5 de janeiro de 2019

A jornada rumo a esse lugar que se chama "alguém melhor"

Viver em um mundo melhor, eis algo que creio ser um desejo da quase totalidade dos integrantes de qualquer mundo. Estar consciente de que o mundo não passa de um reflexo do que são aqueles que o integram, eis algo que, infelizmente, creio ser um estágio atingido por uma pequena quantidade de seus integrantes. Ter a pretensão de aumentar tal quantidade, eis a intenção do espalhamento de mais um texto da jornalista e escritora Milly Lacombe.
Extraído da edição 280 da revista Trip, o texto apresentado a seguir tem duas diferenças em relação ao original: apresenta apenas a segunda metade do texto publicado na coluna de Milly Lacombe e o título que dei a ele é uma frase usada por Milly, digamos, como subtítulo.
Embora seja baseado na história de vida da autora, enxergo no texto a capacidade de propiciar inúmeras reflexões a qualquer pessoa que se disponha a ler coisas que possam oferecer-lhe a oportunidade de encetar uma jornada rumo a esse lugar que se chama "alguém melhor".
A jornada rumo a esse lugar que se chama "alguém melhor"
É um movimento que exige esforço constante, desconstruções, reparações
Nasci e cresci dentro de uma família tradicional. Católica, conservadora, direitista, totalmente branca, bastante europeia e ligeiramente rica. Estudei nas melhores escolas, tive acesso a clubes privados, onde pude praticar esportes e conhecer muitas pessoas como eu. Viajei para a Europa antes dos 18, aprendi outras línguas, li muitos livros. Não precisei fazer as camas onde dormi, nem lavar a louça que sujei ou guardar as roupas que usei. Havia quem fizesse isso por mim. Eram, quase sempre, corpos negros a me servir.
Uma criança que se forma nessas circunstâncias naturaliza preconceitos e tem sua configuração-padrão programada para acreditar ser melhor do que outros: pobres, excluídos, periféricos. A vida, aliás, vai dando a você a certeza de ser isso mesmo. Os melhores empregos são seus, os salários mais altos, também, as casas mais glamurosas, idem, e sempre localizadas em bairros cheios de conveniências e oportunidades culturais.
Mundo real
É preciso um bocado de atenção e de disciplina para perceber que o mundo real não é bem aquele em que tentaram fazer você acreditar. O mundo real é injusto, cruel, desigual e a sua volta existem milhões de pessoas que, ao contrário de você, não tiveram oportunidades. Nessa hora, é fundamental que nos perguntemos como teria sido a vida delas se tivessem tido as chances que tivemos.
Claro que é mais fácil acreditar que eu me dei bem na vida porque sou mesmo talentosa. Que ganhei dinheiro porque ralei. Que sou culta porque me esforcei. Não é conveniente acreditar que só ganhei dinheiro e status porque tive oportunidades e privilégios, ou uma herança, ou consegui meu primeiro emprego porque meu pai era amigo do dono da empresa. Ou, quem sabe, era até o dono da empresa. As pessoas mais esforçadas que eu conheço são pobres e se esforço fosse garantia de sucesso e riqueza, elas seriam bem mais ricas do que eu.
Mas é preciso muita atenção e disciplina para se desfazer da configuração-padrão e pensar por conta própria. Trata-se, como sugeriu o escritor David Foster Wallace, da verdadeira liberdade: a liberdade de enxergar o outro.
Todos somos feitos de inúmeros preconceitos. Somos falíveis porque somos humanos e nossa beleza é inseparável de nossas fragilidades. Nada disso é novo ou surpreende. O que surpreende é ser criado com tanta escolarização e ainda assim não reconhecer o preconceito estrutural introjetado em cada um de nós, e então fazer o que for preciso para se livrar dele.
O racismo, o machismo e a homofobia são estruturas de poder que vão além de desvios de caráter individuais. Dar os ombros e dizer coisa como "mas eu não sou racista" é deixar de enxergar o racismo como estrutura de poder, deixar de perceber que, apesar de querermos nos considerar pessoas boas, estamos impregnados desses preconceitos porque eles foram introjetados em todos nós quando éramos crianças.
Estruturas de poder fazem uso de todos nós para que, doutrinados e automatizados, possamos perpetuar a hegemonia de quem sempre nos oprimiu. Com elas seguimos alimentando, ainda que inconscientemente, os valores de uma sociedade patriarcal que celebra tudo o que é masculino, branco e heteronormativo e tenta marginalizar e deslegitimar qualquer coisa que não seja. A jornada rumo a esse lugar que se chama "alguém melhor" é longa e está longe de ser um evento; é um movimento que exige esforço constante, desconstruções, reparações. Que exige coragem para sentir vergonha da pessoa que um dia você foi e, depois, uma certa saudade daquela pessoa que você ainda não é.
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"Claro que é mais fácil acreditar que eu me dei bem na vida porque sou mesmo talentosa. Que ganhei dinheiro porque ralei. Que sou culta porque me esforcei. Não é conveniente acreditar que só ganhei dinheiro e status porque tive oportunidades e privilégios, ou uma herança, ou consegui meu primeiro emprego porque meu pai era amigo do dono da empresa. Ou, quem sabe, era até o dono da empresa.", diz Milly Lacombe.
Vocês percebem no parágrafo acima uma crítica ao conceito de meritocracia difundido pelos privilegiados com a intenção de fazer os "fundidos" (!) resignarem-se diante das condições de vida (sic) que lhes cabem neste mundo?
Sim, como afirma Milly Lacombe, "é preciso muita atenção e disciplina para se desfazer da configuração-padrão, pensar por conta própria e conseguir atingir o que o escritor David Foster Wallace disse ser a verdadeira liberdade: a liberdade de enxergar o outro".
"A jornada rumo a esse lugar que se chama 'alguém melhor' é longa e está longe de ser um evento; é um movimento que exige esforço constante, desconstruções, reparações. Que exige coragem para sentir vergonha da pessoa que um dia você foi e, depois, uma certa saudade daquela pessoa que você ainda não é.", diz Milly Lacombe.
"Longa, longe de ser um evento, um movimento que exige esforço constante (e interminável, acrescento eu), desconstruções e reparações", eis uma boa descrição da "jornada rumo a esse lugar que se chama 'alguém melhor'". Lugar pelo qual cada um de nós, inevitavelmente, terá que passar para tornar-se apto a cooperar na construção desse lugar que se chama 'um mundo melhor'. Aptidão que (usando aqui algumas palavras de Milly Lacombe), exige de cada um, inicialmente, "a coragem para sentir vergonha da pessoa que foi um dia e, posteriormente, uma certa saudade daquela pessoa que ainda não é", mas que, inevitavelmente, terá que ser se, verdadeiramente, almejar viver em 'um mundo melhor'.

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