Faltando cinco dias e
algumas horas para aquele momento do ano em que os orixás ficam sobrecarregados
com a lista de pedidos feitos repetidamente há uma infinidade de anos, encerrando
as postagens de 2018, segue um daqueles textos que, ficando mais interessantes
à medida que são lidos, apresentam um epílogo interessantíssimo. Publicado na coluna
da jornalista e escritora Milly Lacombe na edição 279 da revista Trip, disponibilizada em novembro de
2018, enxergo na primeira frase de seu último parágrafo uma excelente sugestão
para um pedido inédito a ser feito aos orixás no referido momento.
Tudo o que importa dura um instante
Só acumulamos ódio e
coisas descartáveis. Como vamos desistir disso e finalmente lidar com as nossas
dores?
Eu estava na Praça da República, no centro de São Paulo, entregue à
recém-descoberta arte de virar votos e completamente envolvida com a atividade,
quando vi pela primeira vez nos olhos de outro ser humano um tipo de ódio que
eu não achava possível ser percebido em manifestação física. Já conhecia esse
ódio das redes sociais, mas até ali era apenas verbal, impessoal e distante. Só
que naquela tarde de sexta-feira, 26 de outubro, o percebi cara a cara, e isso
me assustou.
O sol começava a se pôr e já estava abordando pedestres fazia duas horas
quando notei duas moças e um rapaz indo para a estação do metrô. Eles estavam
conversando e rindo, e fui andando na direção deles usando a frase que até ali
tinha sido bem-sucedida para fazer as pessoas me darem atenção. "Oi. Vocês
já decidiram em quem vão votar no domingo?". Os três seguiram caminhando,
o rapaz da ponta sorriu e disse que sim, a menina da outra ponta fez o mesmo e
foi nessa hora que a mulher que estava no meio virou o rosto para mim. Em seus
olhos vi todo o ódio do mundo, e ele era dirigido a mim.
Por reflexo, em vez de me mandar, comecei a andar ao lado deles, mas de
costas porque estávamos indo em direções opostas. Sorrindo, disse: "Não me
olha assim, por favor. Sou apenas uma sapatão que gostaria muito que vocês
votassem no candidato que não quer que eu morra. Não faço mal não, tô só em
campanha pela minha vida". Em segundos, o olhar de ódio foi desarmado. Ela
não disse nada, mas sorriu para mim enquanto descia as escadas da estação do
metrô.
Não foi uma virada de voto, mas foi uma virada de ódio.
À noite, voltando para casa depois de passar algumas horas praticando o
exercício da democracia, tentava entender por que a mulher tinha me olhado
daquele jeito. Por que odiar tanto alguém que você não conhece? O que eu
representava? Que tipo de ameaça ela enxergou em mim?
Em casa, uma simples passada de olhos pelas redes sociais já me fez ter
contato com avalanches de mensagens de ódio, que agora me remetiam àquele
olhar. De onde vem todo esse ódio? Quem são os que conseguem entrar em perfis
de rede social e sair vomitando preconceitos e ameaças? O que os move? Como
fazer para livrá-los desse sentimento?
Ter olhado nos olhos daquela mulher, ter podido dizer a ela que eu não
era uma ameaça e vê-la sorrir foi bonito, ainda que nada no voto dela tivesse
mudado. Mas como fazer com os demais, esses nos quais não podemos causar
empatia?
"O ódio, que tantas coisas pode destruir, nunca falhou em destruir o
homem que odeia, e essa é uma lei imutável", disse o escritor americano
James Baldwin.
Temos uma multidão de pessoas se autodestruindo, e destruindo tudo ao
redor. "Acho que um dos motivos pelos quais as pessoas se agarram a seus
ódios tão teimosamente", escreveu Baldwin, "é porque, de certa forma,
se o ódio for embora elas serão forçadas a lidar com suas dores". Como
vamos interromper essa avalanche de ódio para finalmente começar a lidar com as
nossas dores?
CAIXA DE ÓDIO
Me peguei pensando nesse acúmulo de ódio e de como algumas coisas na vida
não são acumuláveis. Afetos, amores, atenção, disciplina, liberdade, justiça,
momentos. Não se acumulam as coisas essenciais; apenas as descartáveis, o que é
uma ironia. Acumula-se dinheiro, e com ele, preocupações. Acumula-se dívidas, e
com elas, servitude. Acumula-se poder, e com ele, a eterna dependência de
desejar ainda mais poder. Acumula-se fama, e com ela, o angustiante desespero
de não perdê-la.
Mas não se acumula uma manhã de domingo na cama ao lado da pessoa que
amamos, ou uma tarde preguiçosa de sexta-feira quando apenas você, um livro e
uma taça de vinho estão em casa, nem o abraço do sobrinho que aparece para
visitar sem avisar, muito menos os seis ovos do omelete que ele pede para que
você faça porque foi invadido por uma fome súbita e o omelete de um jovem
faminto de 20 anos leva seis ovos. Não se acumulam carinho, gentileza, atenção.
Essas são práticas diárias, que exigem algum esforço e muita disciplina. Odiar
é fácil; o difícil, nessa vida tão corrida, é exercer afetos, pois fazer isso
exige entrega e foco.
Não se acumulam também os minutos de meditação ou as práticas matinais de
ioga vendo o dia nascer, não se acumula sequer consciência, porque essa,
devidamente trabalhada, se expande. Mas ódio se acumula. Amargura se acumula.
Rancor também. E o acúmulo é justamente o que mata o acumulador de forma lenta
e esgarçada.
Tudo o que importa dura um instante. Tudo o que importa, como aquele
olhar que a eleitora do presidente eleito e eu trocamos, dura um segundo.
Desvendar o eterno no agora talvez seja o grande segredo, o sentido do que
estamos fazendo aqui mergulhados nesse caos, a serviço de coisas que não nos
fazem bem, não nos aproximam, não nos elevam.
Em tempos tão estranhos e sombrios, fiquemos com a palavra do poeta: "Eu
fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por
isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios; amo
os restos". Manoel de Barros.
Que os orixás nos afastem de tanto ódio e nos ajudem a encontrar o
caminho do afeto, do amor, da solidariedade, da justiça social e da liberdade,
do único tipo de liberdade que importa: aquela que enxerga o outro. Porque só
seremos livres quando todos forem livres. Nesse mundo, ninguém existe sozinho.
Ninguém. Que consigamos então, como sugere o poeta, cuidar de nossos restos,
que consigamos apanhar nossos desperdícios e fazer com eles, e deles, o amanhã.
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"Desvendar o eterno no agora talvez seja o grande segredo, o sentido do que estamos fazendo aqui mergulhados nesse caos, a serviço de coisas que não nos fazem bem, não nos aproximam, não nos elevam.", diz Milly Lacombe.
Colocarmo-nos a serviço de coisas
que não nos fazem bem, não nos aproximam, não nos elevam! Será que é
difícil enxergar nessa estúpida prática a origem da cultura de ódio que assola
este planeta?
"O ódio, que tantas coisas pode destruir, nunca falhou em destruir o
homem que odeia, e essa é uma lei imutável. Acho que um dos motivos pelos quais
as pessoas se agarram a seus ódios tão teimosamente é porque, de certa forma,
se o ódio for embora elas serão forçadas a lidar com suas dores.", disse o
escritor americano James Baldwin, conforme citado no texto de Milly.
"Temos uma multidão de pessoas se autodestruindo, e destruindo tudo
ao redor. Como vamos interromper essa avalanche de ódio para finalmente começar
a lidar com as nossas dores?", indaga Milly Lacombe. Indagação para a qual
enxergo, no próprio texto de Milly, o início da resposta. Qual é a primeira
coisa a fazer para interromper essa
avalanche de ódio?
Incluir nos nossos pedidos o que Milly pede no dela: "Que os orixás (ou
aqueles a quem costumamos fazer pedidos) nos afastem de tanto ódio e nos ajudem
a encontrar o caminho do afeto, do amor, da solidariedade, da justiça social e
da liberdade, do único tipo de liberdade que importa: aquela que enxerga o
outro." Pedido por ela justificado assim: "Porque só seremos livres
quando todos forem livres. Nesse mundo, ninguém existe sozinho. Ninguém." Será
que faz sentido discordar do pedido e da justificativa de Milly Lacombe?
O que mais precisa ser feito para concluir minha resposta à indagação de
Milly? Após ter encontrado o caminho do
afeto, do amor, da solidariedade, da justiça social e da liberdade, aplicar
à nossa vida dois ensinamentos passados pelo personagem Morpheus no primeiro
filme da trilogia Matrix. O primeiro:
há uma
grande diferença entre saber qual é o caminho e percorrer o caminho. O segundo:
mostrar-nos o caminho é algo que alguém pode fazer; percorrer o caminho é algo
que tem que ser feito por cada um de nós.
Dito isso, deixo-lhes a seguinte pergunta: - Qual é a resposta de vocês à
indagação de Milly Lacombe?
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