quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Tudo o que importa dura um instante

Faltando cinco dias e algumas horas para aquele momento do ano em que os orixás ficam sobrecarregados com a lista de pedidos feitos repetidamente há uma infinidade de anos, encerrando as postagens de 2018, segue um daqueles textos que, ficando mais interessantes à medida que são lidos, apresentam um epílogo interessantíssimo. Publicado na coluna da jornalista e escritora Milly Lacombe na edição 279 da revista Trip, disponibilizada em novembro de 2018, enxergo na primeira frase de seu último parágrafo uma excelente sugestão para um pedido inédito a ser feito aos orixás no referido momento.
Tudo o que importa dura um instante
Só acumulamos ódio e coisas descartáveis. Como vamos desistir disso e finalmente lidar com as nossas dores?
Eu estava na Praça da República, no centro de São Paulo, entregue à recém-descoberta arte de virar votos e completamente envolvida com a atividade, quando vi pela primeira vez nos olhos de outro ser humano um tipo de ódio que eu não achava possível ser percebido em manifestação física. Já conhecia esse ódio das redes sociais, mas até ali era apenas verbal, impessoal e distante. Só que naquela tarde de sexta-feira, 26 de outubro, o percebi cara a cara, e isso me assustou.
O sol começava a se pôr e já estava abordando pedestres fazia duas horas quando notei duas moças e um rapaz indo para a estação do metrô. Eles estavam conversando e rindo, e fui andando na direção deles usando a frase que até ali tinha sido bem-sucedida para fazer as pessoas me darem atenção. "Oi. Vocês já decidiram em quem vão votar no domingo?". Os três seguiram caminhando, o rapaz da ponta sorriu e disse que sim, a menina da outra ponta fez o mesmo e foi nessa hora que a mulher que estava no meio virou o rosto para mim. Em seus olhos vi todo o ódio do mundo, e ele era dirigido a mim.
Por reflexo, em vez de me mandar, comecei a andar ao lado deles, mas de costas porque estávamos indo em direções opostas. Sorrindo, disse: "Não me olha assim, por favor. Sou apenas uma sapatão que gostaria muito que vocês votassem no candidato que não quer que eu morra. Não faço mal não, tô só em campanha pela minha vida". Em segundos, o olhar de ódio foi desarmado. Ela não disse nada, mas sorriu para mim enquanto descia as escadas da estação do metrô.
Não foi uma virada de voto, mas foi uma virada de ódio.
À noite, voltando para casa depois de passar algumas horas praticando o exercício da democracia, tentava entender por que a mulher tinha me olhado daquele jeito. Por que odiar tanto alguém que você não conhece? O que eu representava? Que tipo de ameaça ela enxergou em mim?
Em casa, uma simples passada de olhos pelas redes sociais já me fez ter contato com avalanches de mensagens de ódio, que agora me remetiam àquele olhar. De onde vem todo esse ódio? Quem são os que conseguem entrar em perfis de rede social e sair vomitando preconceitos e ameaças? O que os move? Como fazer para livrá-los desse sentimento?
Ter olhado nos olhos daquela mulher, ter podido dizer a ela que eu não era uma ameaça e vê-la sorrir foi bonito, ainda que nada no voto dela tivesse mudado. Mas como fazer com os demais, esses nos quais não podemos causar empatia?
"O ódio, que tantas coisas pode destruir, nunca falhou em destruir o homem que odeia, e essa é uma lei imutável", disse o escritor americano James Baldwin.
Temos uma multidão de pessoas se autodestruindo, e destruindo tudo ao redor. "Acho que um dos motivos pelos quais as pessoas se agarram a seus ódios tão teimosamente", escreveu Baldwin, "é porque, de certa forma, se o ódio for embora elas serão forçadas a lidar com suas dores". Como vamos interromper essa avalanche de ódio para finalmente começar a lidar com as nossas dores?
CAIXA DE ÓDIO
Me peguei pensando nesse acúmulo de ódio e de como algumas coisas na vida não são acumuláveis. Afetos, amores, atenção, disciplina, liberdade, justiça, momentos. Não se acumulam as coisas essenciais; apenas as descartáveis, o que é uma ironia. Acumula-se dinheiro, e com ele, preocupações. Acumula-se dívidas, e com elas, servitude. Acumula-se poder, e com ele, a eterna dependência de desejar ainda mais poder. Acumula-se fama, e com ela, o angustiante desespero de não perdê-la.
Mas não se acumula uma manhã de domingo na cama ao lado da pessoa que amamos, ou uma tarde preguiçosa de sexta-feira quando apenas você, um livro e uma taça de vinho estão em casa, nem o abraço do sobrinho que aparece para visitar sem avisar, muito menos os seis ovos do omelete que ele pede para que você faça porque foi invadido por uma fome súbita e o omelete de um jovem faminto de 20 anos leva seis ovos. Não se acumulam carinho, gentileza, atenção. Essas são práticas diárias, que exigem algum esforço e muita disciplina. Odiar é fácil; o difícil, nessa vida tão corrida, é exercer afetos, pois fazer isso exige entrega e foco.
Não se acumulam também os minutos de meditação ou as práticas matinais de ioga vendo o dia nascer, não se acumula sequer consciência, porque essa, devidamente trabalhada, se expande. Mas ódio se acumula. Amargura se acumula. Rancor também. E o acúmulo é justamente o que mata o acumulador de forma lenta e esgarçada.
Tudo o que importa dura um instante. Tudo o que importa, como aquele olhar que a eleitora do presidente eleito e eu trocamos, dura um segundo. Desvendar o eterno no agora talvez seja o grande segredo, o sentido do que estamos fazendo aqui mergulhados nesse caos, a serviço de coisas que não nos fazem bem, não nos aproximam, não nos elevam.
Em tempos tão estranhos e sombrios, fiquemos com a palavra do poeta: "Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios; amo os restos". Manoel de Barros.
Que os orixás nos afastem de tanto ódio e nos ajudem a encontrar o caminho do afeto, do amor, da solidariedade, da justiça social e da liberdade, do único tipo de liberdade que importa: aquela que enxerga o outro. Porque só seremos livres quando todos forem livres. Nesse mundo, ninguém existe sozinho. Ninguém. Que consigamos então, como sugere o poeta, cuidar de nossos restos, que consigamos apanhar nossos desperdícios e fazer com eles, e deles, o amanhã.
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"Desvendar o eterno no agora talvez seja o grande segredo, o sentido do que estamos fazendo aqui mergulhados nesse caos, a serviço de coisas que não nos fazem bem, não nos aproximam, não nos elevam.", diz Milly Lacombe.
Colocarmo-nos a serviço de coisas que não nos fazem bem, não nos aproximam, não nos elevam! Será que é difícil enxergar nessa estúpida prática a origem da cultura de ódio que assola este planeta?
"O ódio, que tantas coisas pode destruir, nunca falhou em destruir o homem que odeia, e essa é uma lei imutável. Acho que um dos motivos pelos quais as pessoas se agarram a seus ódios tão teimosamente é porque, de certa forma, se o ódio for embora elas serão forçadas a lidar com suas dores.", disse o escritor americano James Baldwin, conforme citado no texto de Milly.
"Temos uma multidão de pessoas se autodestruindo, e destruindo tudo ao redor. Como vamos interromper essa avalanche de ódio para finalmente começar a lidar com as nossas dores?", indaga Milly Lacombe. Indagação para a qual enxergo, no próprio texto de Milly, o início da resposta. Qual é a primeira coisa a fazer para interromper essa avalanche de ódio?
Incluir nos nossos pedidos o que Milly pede no dela: "Que os orixás (ou aqueles a quem costumamos fazer pedidos) nos afastem de tanto ódio e nos ajudem a encontrar o caminho do afeto, do amor, da solidariedade, da justiça social e da liberdade, do único tipo de liberdade que importa: aquela que enxerga o outro." Pedido por ela justificado assim: "Porque só seremos livres quando todos forem livres. Nesse mundo, ninguém existe sozinho. Ninguém." Será que faz sentido discordar do pedido e da justificativa de Milly Lacombe?
O que mais precisa ser feito para concluir minha resposta à indagação de Milly? Após ter encontrado o caminho do afeto, do amor, da solidariedade, da justiça social e da liberdade, aplicar à nossa vida dois ensinamentos passados pelo personagem Morpheus no primeiro filme da trilogia Matrix. O primeiro: há uma grande diferença entre saber qual é o caminho e percorrer o caminho. O segundo: mostrar-nos o caminho é algo que alguém pode fazer; percorrer o caminho é algo que tem que ser feito por cada um de nós.
Dito isso, deixo-lhes a seguinte pergunta: - Qual é a resposta de vocês à indagação de Milly Lacombe?

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