terça-feira, 8 de maio de 2018

Ecos da modernidade

Conforme prometido, segue a postagem alusiva ao Dia do Silêncio, transcorrido ontem. O texto nela apresentado foi publicado na edição de 02 de junho de 2013 do jornal O Estado de S. Paulo, no caderno intitulado Aliás. Considerando o tamanho do texto e o do fôlego para leitura apresentado pela maioria das pessoas, com a intenção de não espantar leitores de menor fôlego, dele retirei alguns trechos que, no meu entender, não tiram dele a ideia que desejo espalhar com esta postagem: a importância do silêncio. Se alguém desejar ler a íntegra do ensaio, posso enviá-la por e-mail, ok? Lembram de uma postagem recente intitulada "E o e-mail, hein?"? Pois é.
Intitulado Ecos da modernidade o texto apresenta um ensaio assinado por David Le Breton. Sobre o autor, é apresentada, no final do texto, a seguinte qualificação. Professor de Sociologia na Universidade de Estrasburgo (França). Autor, entre outros, de Du Silence (Métailié). Suas últimas obras traduzidas no Brasil foram Antropologia do Corpo e Modernidade (Vozes), As Paixões Ordinárias (Vozes) e Adeus ao Corpo (Papirus). A tradução do ensaio é atribuída a Alexandre Hubner.
Ecos da modernidade
Em ensaio exclusivo para o 'Aliás', antropólogo francês discute as fronteiras entre o silêncio e o barulho na modernidade
O barulho é um som de valor negativo, uma agressão ao silêncio ou simplesmente à tranquilidade necessária à vida em comum. Causa um incômodo àquele que o percebe como um entrave ao seu sentimento de liberdade e se sente agredido por manifestações que não controla e lhe são impostas, impedindo-o de repousar e desfrutar sossegadamente de seu espaço.
O barulho é uma zona sensível da sociabilidade. Na França, muitas das queixas registradas nas delegacias de polícia referem-se a conflitos entre vizinhos em torno da questão do barulho: televisão, rádio, dispositivos musicais em volume alto, festas noturnas, etc., que invadem a intimidade. A vítima do barulho se sente expulsa da própria casa, invadida, seu espaço interior destruído. Ela é forçada a recuar até suas últimas trincheiras, e o barulho se impõe como uma forma insidiosa de violência. E, reagindo a essa sensação de estar sendo atormentada, vez por outra a vítima toma uma atitude radical. Mas os barulhos produzidos por nós mesmos não são percebidos como incômodo: eles têm um sentido. Quem faz barulho são sempre os outros.
O sentimento do barulho se difundiu, sobretudo, com o nascimento da sociedade industrial – e a modernidade o intensificou de maneira desmesurada. O desenvolvimento técnico caminhou de mãos dadas com a penetração ampliada do barulho na vida cotidiana e com uma crescente impotência para controlar os excessos. Novos sons adentraram os apartamentos com o rádio, a televisão, os eletrodomésticos, o telefone, os aparelhos cada vez mais possantes de reprodução musical, etc. E isso no interior de apartamentos ou casas que não foram projetados para represar esses ruídos, sem os impor à vizinhança, degradando assim a tranquilidade do lar.
À profusão de barulhos produzidos pela cidade, à circulação incessante dos automóveis, nossas sociedades acrescentam novas fontes sonoras com os televisores ligados e a música ambiente que toca no interior das lojas, dos cafés, dos restaurantes, dos aeroportos, etc., como se fosse preciso afogar permanentemente o silêncio em lugares onde a palavra se troca no interior de um universo de sons que ninguém escuta, que enervam às vezes, as que teriam o benefício de emitir uma mensagem tranquilizante. Antídoto ao medo difuso de não se ter o que dizer, infusão acústica de segurança cuja súbita ruptura provoca um desconforto redobrado. A música ambiente tornou-se uma arma eficaz contra certa fobia do silêncio.
A modernidade inventou a constância da sonoridade e a capacidade de propagá-la por meio de alto-falantes. O sujeito que não suporta o silêncio tem a oportunidade de recorrer, na totalidade de fatos e gestos da vida cotidiana, a um ruído de fundo. Ao chegar em casa, pode ligar seu rádio ou sua televisão, pode assistir um vídeo ou escutar uma fita cassete ou um CD. O barulho tem um efeito narcótico tanto no interior do apartamento, como no meio da rua, ele tranquiliza quanto à permanência de um mundo sempre incólume. Projeta uma linha de audição controlável e reconhecível, à maneira de uma tela que põe fim à turbulência e à profundidade perturbadora do mundo.
Nossas cidades são particularmente vulneráveis às agressões sonoras. O barulho se propaga e atravessa grandes distâncias. As operações de liquidação do silêncio abundam. Não são deliberadas, mas agregam os barulhos do meio urbano ou simplesmente técnico; sitiam os lugares ainda preservados, incultos, abandonados à pura gratuidade da meditação e do silêncio. A modernidade assinala uma tentativa difusa de saturação do espaço e do tempo por uma emissão sonora sem fim. Sendo uma zona não explorada, em estado de suspensão, livre de uso, o silêncio provoca uma sensação de preenchimento, de animação, que tem por intuito dissolver a provocação do "inútil" por ele acobertada. Pois, aos olhos de uma lógica produtiva e comercial, o silêncio não serve para nada, ocupa um tempo e um espaço que poderiam se beneficiar de um uso mais rentável.
Para a modernidade, o silêncio é um resíduo à espera de utilização mais lucrativa, assemelha-se a um terreno baldio no centro da cidade, representa uma espécie de desafio lançado ao imperativo de torná-lo rentável, de fazê-lo retribuir com uma utilidade qualquer, pois, enquanto não o faz, o silêncio é pura perda. Anacrônico, um domínio onde o barulho ainda não penetrou, o silêncio é um arcaísmo que precisa encontrar seu remédio. Soa como uma pane ensurdecedora do sistema. O silêncio é um resto, aquilo que o barulho ainda não conseguiu invadir ou degradar, aquilo que os meios ou as consequências das técnicas ainda poupam.
O contexto barulhento das nossas cidades e a transformação que as sensibilidades coletivas sofreram nesse aspecto ao longo dos últimos anos induzem a uma irritação crescente com o barulho. As pessoas com frequência se mobilizam contra projetos envolvendo a construção de estradas, aeroportos, etc., que desfiguram a acústica de um determinado lugar. E a legitimidade social de tais reivindicações já não sofre muita objeção. O direito ao conforto acústico (a preservação de parte do silêncio) tornou-se uma zona sensível da sociabilidade, um valor unânime em resposta à amplificação ambiental do barulho.
O mais extraordinário é que, assediado de todos os lados, o silêncio pouco a pouco se tornou uma referência comercial de peso na promoção de produtos, regiões e passeios turísticos. As empresas e agências publicitárias também se deram conta da necessária valorização do silêncio numa vida cotidiana perseguida pelo barulho.
Atualmente, valorizamos o silêncio do motor de um carro, dos eletrodomésticos, dos cortadores de grama, etc. Cada um se esforça, em princípio, para reduzir suas produções sonoras e espera, em retribuição, que os vizinhos tenham a mesma preocupação. O silêncio torna-se riqueza moral, comercial, turística, ecológica, etc. Espécie em via de extinção, seu preço sobe diariamente e mobiliza uma atitude de preservação mais ou menos eficaz e interessada.
Por outro lado, centenas de milhões de pessoas que gostam de caminhar na natureza deixam as cidades em busca de paz, de silêncio, de conversas, de descobertas, de lentidão. Querem deixar para trás o barulho e os ritmos que lhes são impostos na vida atual, encontrando, por fim, o apaziguamento e a interioridade.
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Deixar para trás o barulho e os ritmos que nos são impostos na vida atual, encontrando, por fim, o apaziguamento e a interioridade. Será que isso é algo que todos nós devemos almejar?

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