Conforme prometido, segue a postagem alusiva ao Dia do Silêncio,
transcorrido ontem. O texto nela apresentado foi publicado na edição de 02 de
junho de 2013 do jornal O Estado de S. Paulo, no caderno intitulado Aliás.
Considerando o tamanho do texto e o do fôlego para leitura apresentado pela
maioria das pessoas, com a intenção de não espantar leitores de menor fôlego,
dele retirei alguns trechos que, no meu entender, não tiram dele a ideia que
desejo espalhar com esta postagem: a importância do silêncio. Se alguém desejar
ler a íntegra do ensaio, posso enviá-la por e-mail, ok? Lembram de uma postagem
recente intitulada "E o e-mail, hein?"? Pois é.
Intitulado Ecos
da modernidade o texto apresenta um ensaio assinado por David Le Breton. Sobre
o autor, é apresentada, no final do texto, a seguinte qualificação. Professor
de Sociologia na Universidade de Estrasburgo (França). Autor, entre outros, de Du
Silence (Métailié). Suas últimas obras traduzidas no Brasil foram Antropologia
do Corpo e Modernidade (Vozes), As Paixões Ordinárias (Vozes) e Adeus
ao Corpo (Papirus). A tradução do ensaio é atribuída a Alexandre Hubner.
Ecos da modernidade
Em ensaio exclusivo para o 'Aliás', antropólogo francês
discute as fronteiras entre o silêncio e o barulho na modernidade
O barulho é um som de valor negativo, uma agressão ao silêncio ou
simplesmente à tranquilidade necessária à vida em comum. Causa um incômodo
àquele que o percebe como um entrave ao seu sentimento de liberdade e se sente
agredido por manifestações que não controla e lhe são impostas, impedindo-o de
repousar e desfrutar sossegadamente de seu espaço.
O barulho é uma zona sensível da sociabilidade. Na França, muitas das
queixas registradas nas delegacias de polícia referem-se a conflitos entre
vizinhos em torno da questão do barulho: televisão, rádio, dispositivos
musicais em volume alto, festas noturnas, etc., que invadem a intimidade. A
vítima do barulho se sente expulsa da própria casa, invadida, seu espaço
interior destruído. Ela é forçada a recuar até suas últimas trincheiras, e o
barulho se impõe como uma forma insidiosa de violência. E, reagindo a essa
sensação de estar sendo atormentada, vez por outra a vítima toma uma atitude
radical. Mas os barulhos produzidos por nós mesmos não são percebidos como
incômodo: eles têm um sentido. Quem faz barulho são sempre os outros.
O sentimento do barulho se difundiu, sobretudo, com o nascimento da
sociedade industrial – e a modernidade o intensificou de maneira desmesurada. O
desenvolvimento técnico caminhou de mãos dadas com a penetração ampliada do
barulho na vida cotidiana e com uma crescente impotência para controlar os
excessos. Novos sons adentraram os apartamentos com o rádio, a televisão, os
eletrodomésticos, o telefone, os aparelhos cada vez mais possantes de
reprodução musical, etc. E isso no interior de apartamentos ou casas que não
foram projetados para represar esses ruídos, sem os impor à vizinhança,
degradando assim a tranquilidade do lar.
À profusão de barulhos produzidos pela cidade, à circulação incessante
dos automóveis, nossas sociedades acrescentam novas fontes sonoras com os
televisores ligados e a música ambiente que toca no interior das lojas, dos
cafés, dos restaurantes, dos aeroportos, etc., como se fosse preciso afogar
permanentemente o silêncio em lugares onde a palavra se troca no interior de um
universo de sons que ninguém escuta, que enervam às vezes, as que teriam o
benefício de emitir uma mensagem tranquilizante. Antídoto ao medo difuso de não
se ter o que dizer, infusão acústica de segurança cuja súbita ruptura provoca
um desconforto redobrado. A música ambiente tornou-se uma arma eficaz contra
certa fobia do silêncio.
A modernidade inventou a constância da sonoridade e a capacidade de
propagá-la por meio de alto-falantes. O sujeito que não suporta o silêncio tem
a oportunidade de recorrer, na totalidade de fatos e gestos da vida cotidiana,
a um ruído de fundo. Ao chegar em casa, pode ligar seu rádio ou sua televisão,
pode assistir um vídeo ou escutar uma fita cassete ou um CD. O barulho tem um
efeito narcótico tanto no interior do apartamento, como no meio da rua, ele
tranquiliza quanto à permanência de um mundo sempre incólume. Projeta uma linha
de audição controlável e reconhecível, à maneira de uma tela que põe fim à
turbulência e à profundidade perturbadora do mundo.
Nossas cidades são particularmente vulneráveis às agressões sonoras. O
barulho se propaga e atravessa grandes distâncias. As operações de liquidação
do silêncio abundam. Não são deliberadas, mas agregam os barulhos do meio
urbano ou simplesmente técnico; sitiam os lugares ainda preservados, incultos,
abandonados à pura gratuidade da meditação e do silêncio. A modernidade
assinala uma tentativa difusa de saturação do espaço e do tempo por uma emissão
sonora sem fim. Sendo uma zona não explorada, em estado de suspensão, livre de
uso, o silêncio provoca uma sensação de preenchimento, de animação, que tem por
intuito dissolver a provocação do "inútil" por ele acobertada. Pois,
aos olhos de uma lógica produtiva e comercial, o silêncio não serve para nada,
ocupa um tempo e um espaço que poderiam se beneficiar de um uso mais rentável.
Para a modernidade, o silêncio é um resíduo à espera de utilização mais
lucrativa, assemelha-se a um terreno baldio no centro da cidade, representa uma
espécie de desafio lançado ao imperativo de torná-lo rentável, de fazê-lo
retribuir com uma utilidade qualquer, pois, enquanto não o faz, o silêncio é
pura perda. Anacrônico, um domínio onde o barulho ainda não penetrou, o
silêncio é um arcaísmo que precisa encontrar seu remédio. Soa como uma pane
ensurdecedora do sistema. O silêncio é um resto, aquilo que o barulho ainda não
conseguiu invadir ou degradar, aquilo que os meios ou as consequências das
técnicas ainda poupam.
O contexto barulhento das nossas cidades e a transformação que as
sensibilidades coletivas sofreram nesse aspecto ao longo dos últimos anos
induzem a uma irritação crescente com o barulho. As pessoas com frequência se
mobilizam contra projetos envolvendo a construção de estradas, aeroportos,
etc., que desfiguram a acústica de um determinado lugar. E a legitimidade
social de tais reivindicações já não sofre muita objeção. O direito ao conforto
acústico (a preservação de parte do silêncio) tornou-se uma zona sensível da
sociabilidade, um valor unânime em resposta à amplificação ambiental do
barulho.
O mais extraordinário é que, assediado de todos os lados, o silêncio
pouco a pouco se tornou uma referência comercial de peso na promoção de
produtos, regiões e passeios turísticos. As empresas e agências publicitárias
também se deram conta da necessária valorização do silêncio numa vida cotidiana
perseguida pelo barulho.
Atualmente, valorizamos o silêncio do motor de um carro, dos
eletrodomésticos, dos cortadores de grama, etc. Cada um se esforça, em
princípio, para reduzir suas produções sonoras e espera, em retribuição, que os
vizinhos tenham a mesma preocupação. O silêncio torna-se riqueza moral,
comercial, turística, ecológica, etc. Espécie em via de extinção, seu preço sobe
diariamente e mobiliza uma atitude de preservação mais ou menos eficaz e
interessada.
Por outro lado, centenas de milhões de pessoas que gostam de caminhar
na natureza deixam as cidades em busca de paz, de silêncio, de conversas, de
descobertas, de lentidão. Querem deixar para trás o barulho e os ritmos que
lhes são impostos na vida atual, encontrando, por fim, o apaziguamento e a
interioridade.
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Deixar para trás o
barulho e os ritmos que nos são impostos na vida atual, encontrando, por fim, o apaziguamento e a interioridade. Será que
isso é algo que todos nós devemos almejar?
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