"Tudo
me é lícito, mas nem tudo me convém."
(Paulo de Tarso [0005 - 0067])
Negligenciando a sábia
afirmação atribuída a Paulo de Tarso, a maioria da pretensa espécie inteligente
do universo segue pela vida trocando (sem qualquer questionamento) coisas que ainda
lhe poderiam ser extremamente úteis por toda e qualquer novidade que lhe seja
oferecida como algo ao qual seja inevitável aderir. E nessas trocas ela vai
perdendo coisas como a citada por Lúcia Guimarães em seu artigo publicado na
edição de 14 de setembro de 2015 do jornal O
Estado de S. Paulo sob o título Perdendo
a voz.
Perdendo a voz
Acordei coberta de suor de madrugada. Estava cansada do impasse que
acontecia num sonho e alguma região no sótão do meu cérebro interrompeu o sono
para por fim à angústia. Os personagens eram velhos conhecidos. Estavam
furiosos comigo por causa de um e-mail enviado sobre o assunto mais mundano
possível. A recipiente, uma artista, interpretou a mensagem como um pedido
disfarçado para obter uma obra sua com desconto. Fiquei mortificada, reli o
e-mail e não sugeria isso, mas minhas explicações de nada adiantavam. Quanto
mais eu falava, a indignação das pessoas à volta crescia. Como nestes sonhos em
que você corre e não sai do lugar.
No escuro do quarto, eu me censurei: devia ter telefonado para evitar o
mal entendido. Para, em seguida, cair na risada, não se telefona para
personagem de sonho.
Espere aí, não se telefona mais, ponto. Uma geração chega à idade
adulta sem falar até mesmo com quem está a metros de distância. Volta e meia,
testo esta marcha para a obsolescência das cordas vocais dando um telefonema. E
confesso me divertir com a surpresa, até a clara exasperação da pessoa do outro
lado da linha. Mesmo ela, se está sentada num escritório, ociosa, e sua função
é atender o público.
Como o funcionário de uma corporação digital. Fui convidada para uma
sessão grátis de orientação sobre designs de website. Sabemos que não existe o
grátis, a intenção da empresa é me fazer mais ativa e pagar uma taxa de
manutenção mensal. Durante a meia hora com o especialista que supostamente quer
me fazer comprar serviços, chegava a duvidar se estava falando com alguém ao
vivo ou se dialogava com um software programado para responder perguntas de
maneira genérica. O rapaz obviamente entendia tudo de linguagem HTML e detalhes técnicos, mas interagia
comigo como um robô. Um robô intimidado pela estranha proximidade da voz. Às
vezes, angustiada com as pausas, perguntava, estou fazendo algum sentido para
você? "Com certeza", ele respondia lacônico e sem convicção. Percebi
que o diálogo teria sido muito mais loquaz via SMS.
A mensagem de texto é o modo predominante de comunicação e vai
eliminado o e-mail, cujo formato ao menos exige um grau mais alto de coerência.
Concordo com linguistas que consideram a mensagem de texto uma forma de
escrita. As frases curtas teriam muito mais erros gramaticais, não fossem os
autocorretores. Mas há uma diferença no fluxo de diálogo escrito entre pessoas
que têm passado analógico, de presença física, e a troca entre quase estranhos.
Noto que a mensagem de texto virou um território de falsa intimidade.
Como sou frequentadora recente do Facebook, não sabia o quanto as pessoas usam
a mensagem direta do website para se dirigir a estranhos. Do momento em que
aceito ser "amiga" de alguém, posso ser destinatária de mensagens
informais que vão do "visite minha página," até a extraordinária
desfaçatez de um sujeito que lançou uma revista digital e me escreveu uma
mensagem sucinta pedindo um texto e dando logo o prazo. Pequeno detalhe: ele
estava me recrutando para escrever de graça.
A falta de contato humano foi usada como tema de campanha publicitária
de um grande banco americano. Aos clientes, cansados de interagir com zombies
digitais, prometiam um serviço com funcionários de carne e osso.
Como uma expatriada com família em três continentes, sou usuária
intensa da mensagem de texto. Mas não suporto grupos do WhatsApp porque pouco
tenho a dizer para vinte pessoas ao mesmo tempo.
Sei que falo de um mal-estar da minha geração. Continuo a não abrir mão
da voz, sabedora de que posso me esconder atrás do texto. Sei que uma geração
verborrágica em caracteres e lacônica em pessoa não sente falta do diálogo
vocal. Mas não sentir a ausência não é o mesmo que saber o que está sendo perdido.
*************
"Percebi que o diálogo teria sido muito mais loquaz via SMS.", diz Lúcia Guimarães me fazendo lembrar do
seguinte trecho da postagem intitulada Homem-máquina publicada em 30 de
março de 2011.
"Comecei a pensar seriamente sobre isso no dia em que encontrei pessoalmente um grande amigo que conversava toda noite comigo pelo Messenger, foi tão estranho... Na época e pelo tipo de conversa que tínhamos, eu poderia dizer que ele era meu melhor amigo, e de repente nos vimos ali, completamente sem graça, sem saber sobre o que falar, então eu dei o primeiro passo e perguntei se ele estava melhor. Ele riu e falou:
- Te respondo mais tarde no MSN."
Imaginar que um
verdadeiro diálogo pode fluir melhor via SMS, MSN ou qualquer outro trio de
letras do que por voz - ao vivo ou via telefone -, eis algo que creio jamais
passará pela minha cabeça. Até porque, como defendo em uma postagem publicada
em 31 de maio de 2011, conversar é uma necessidade humana.
"Sei que uma
geração verborrágica em caracteres e lacônica em pessoa não sente falta do
diálogo vocal. Mas não sentir a ausência não é o mesmo que saber o que está
sendo perdido.", diz Lúcia Guimarães.
Sim, não sentir a
ausência não é o mesmo que saber o que está sendo perdido. Mas será que algum dia
os integrantes da geração que não sente a ausência do diálogo vocal conseguirão
saber o que está sendo perdido? Será que existe alguma condição que uma vez
atingida os fará saberem o que está sendo perdido? Para responder tais indagações,
apenas com o que é dito no texto de Lúcia Guimarães, recorro ao trecho apresentado
abaixo.
"A falta de contato humano foi usada como tema de campanha publicitária de um grande banco americano. Aos clientes, cansados de interagir com zombies digitais, prometiam um serviço com funcionários de carne e osso."
"Cansar-se de interagir com zombies digitais e sentir falta de
contato humano"! Será essa a condição que, uma vez atingida, fará com que
os integrantes da "geração que não sente a ausência do diálogo vocal"
percebam "o que está sendo perdido"? Será que no dia em que tal condição
for atingida eles conseguirão recuperar a voz? Será que ao recuperá-la eles
partirão para interações com indivíduos "de carne e osso"?
E ao encadear os três "Será"s apresentados no parágrafo
acima, o método das recordações sucessivas traz à minha mente uma belíssima
canção da banda Legião Urbana. Uma canção da qual extraí três "Será"s
a serem aplicados às indagações feitas no parágrafo anterior.
"Será só imaginação? Será que nada vai
acontecer? Será que é tudo isso em vão?
Três "Será"s que - se respondidos de forma afirmativa
– levam-me a mais um trecho da referida canção. O trecho? "Nos perderemos
entre monstros da nossa própria criação."
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