Após algumas postagens
nas quais é preconizada a imprescindibilidade do resgate do sentido de comunidade,
esta apresenta uma reportagem-entrevista onde, uma leitura atenta, possibilita-nos enxergar também nela a referida preconização. Publicada na edição de 3 de abril
de 2017 do jornal O Estado de S. Paulo com o título 'As pessoas querem se sentir parte da cidade' ela é assinada por Douglas Gavras.
'As pessoas querem se
sentir parte da cidade'
Para arquiteto, segredo
para cidades agradáveis está em moradia, meio ambiente e oportunidades iguais
para todos
Para o arquiteto Liu Thai Ker, de 79 anos, as
melhores cidades são as que funcionam. Nelas, trabalho e moradia – questões que
devem estar na lista de preocupações do poder público – ficam próximos um do
outro e medidas como a conservação dos recursos naturais e o controle da
poluição não ficam relegadas ao segundo plano. O urbanista é considerado o pai
do projeto que transformou Cingapura em referência internacional de
sustentabilidade e para a qual previu uma concepção urbana totalmente diferente
da que foi herdada dos colonizadores britânicos. Em algumas décadas, a
cidade-Estado implementou um massivo programa habitacional e alcançou soluções
inovadoras, mesmo com um território restrito e superpovoado. Thai Ker é um dos
convidados do Summit Imobiliário 2017, evento promovido em uma parceria do Estado com o Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP) e
que acontece amanhã. A seguir, os principais trechos de sua entrevista.
Quais foram os maiores desafios do plano de
modernização urbana de Cingapura?
Nós tínhamos muitos problemas habitacionais e
ambientais. O nível educacional não era bom e a primeira geração de políticos
depois da independência sentiu que era preciso pensar em novas mudanças para
conseguir transformar um país pobre em um país desenvolvido, como oferecer
moradia de qualidade para todos e boa infraestrutura.
Como vocês resolveram os problemas de moradia?
No começo, construímos as chamadas "habitações
de emergência", apartamentos de cerca de 23 m2. O governo
alugaria esses imóveis para cidadãos sem muitos recursos, mas que poderiam
pagar um valor baixo. Como isso foi aliado a um programa de criação de fábricas
e geração de empregos, as pessoas que antes não tinham condições de pagar
aluguel, a partir daquele momento, já conseguiam. Aos poucos, a indústria da
construção se tornou mais forte e conseguimos recursos para estender a faixa
dos beneficiários aos mais carentes. Outra preocupação era criar uma cidade sem
guetos. As famílias mais pobres eram colocadas para morar ao lado das que
tinham mais recursos. Crianças de realidades diferentes estudavam juntas,
conviviam o tempo todo. Isso também foi pensado para que o país pudesse superar
a desigualdade.
Um programa semelhante poderia ser aplicado no
Brasil?
É difícil falar com propriedade, por não
conhecer a fundo as políticas públicas de habitação das cidades brasileiras. De
maneira geral, a chave do nosso programa em Cingapura foi criar uma política
sustentável, que não falisse o Estado e nos permitisse oferecer moradias com
qualidade cada vez maior para os cidadãos. Esse princípio pode ser usado como
referência para qualquer país, inclusive o Brasil.
Por que muitos brasileiros, quando viajam ao
exterior, se empolgam com soluções que outras cidades desenvolveram, mas não
tentam replicar alguns dos conceitos ao voltar ao País?
Esse é um fenômeno interessante e que não
acontece apenas com os brasileiros. Muitas pessoas se impressionam quando
visitam uma cidade no exterior que passou por um projeto bem estruturado de
planejamento e que conseguiu superar alguns dos problemas que são comuns à
maioria das grandes cidades. O que ocorre é que elas tendem a ver apenas a
superfície sem levar em conta o esforço necessário para se chegar a uma cidade
mais agradável de se morar, sem considerar os erros de percurso, os esforços
para corrigir distorções e sem a disposição para replicar esse trabalho, que
não é visível. Uma boa forma de se evitar isso é tentar entender as razões que
levam as nossas cidades a ter determinados problemas.
O que fazer para que uma grande cidade, como
São Paulo, com todos os seus problemas, se torne melhor?
As melhores cidades são aquelas que funcionam.
Além da questão da moradia, elas precisam resolver questões de mobilidade, que
passam pelo conceito de oferecer opções de trabalho mais próximas dessas
moradias. Morar em uma cidade preocupada com o meio ambiente é outra forma de
se conservar a beleza. De diferentes maneiras, as pessoas querem se sentir
parte da cidade. Uma questão que eu entendo ter sido muito discutida
recentemente em São Paulo é a dos grafiteiros. Em Cingapura, há uma lei que
determina que os edifícios sejam pintados a cada cinco anos – dessa forma, tudo
sempre parece limpo e novo. A pichação é crime, mas a cidade mantém muros para
os grafiteiros, em que a expressão artística é permitida e valorizada.
*************
Considerado o pai do projeto que transformou
Cingapura em referência internacional de sustentabilidade, o arquiteto Liu Thai
Ker, de 79 anos, compartilha conosco sua "estranha receita" para
criar cidades que funcionem, pois, segundo ele, essas são as melhores. Quais são
os ingredientes de sua "estranha receita"?
Proximidade entre trabalho e moradia, conservação
dos recursos naturais, controle da poluição e inexistência de guetos, ou seja,
superação da desigualdade. Colocar famílias mais pobres para morar ao lado das
que tinham mais recursos. Colocar crianças de realidades diferentes para
estudarem juntas, para conviverem o tempo todo. Que receita sinistra, não?! Ela
contém, simplesmente, tudo o que não se vê na maioria das cidades, não é mesmo?
Colocar famílias mais pobres para morar ao
lado das que tinham mais recursos. Colocar crianças de realidades diferentes
para estudarem juntas, para conviverem o tempo todo. Vocês enxergam nessas
ações o resgate do sentido de comunidade, citado no primeiro parágrafo da
postagem?
Oportuníssima a pergunta do repórter - Por que
viajantes ao exterior empolgam-se com soluções que outras cidades
desenvolveram, mas não tentam replicar alguns dos conceitos ao voltar ao País?
-. Pergunta que o arquiteto respondeu assim:
"O que ocorre é que eles tendem a ver
apenas a superfície sem levar em conta o esforço necessário para se chegar a
uma cidade mais agradável de se morar, sem considerar os erros de percurso, os
esforços para corrigir distorções e sem a disposição para replicar esse
trabalho, que não é visível. Uma boa forma de se evitar isso é tentar entender
as razões que levam as nossas cidades a ter determinados problemas."
Ver apenas a superfície de cidades melhoradas
por outros, sem levar em conta o esforço necessário para se chegar ao grau de
agradabilidade por elas alcançado, eis um equívoco dos viajantes ao exterior,
segundo o pai do projeto que transformou Cingapura em referência internacional
de sustentabilidade. "Tentar entender as razões que levam as nossas
cidades a ter determinados problemas.", eis uma boa forma de se evitar a
equivocada visão dos viajantes, segundo o competente arquiteto. Dá para
discordar de Liu Thai Ker?
Nenhum comentário:
Postar um comentário