"Além de nos disponibilizar
serviços no esquema 24/7 (24 horas por dia, sete dias da semana), a internet
começa, agora, a preencher nichos de tempo livre com trabalho. Chamo a esse
fenômeno de uberização. (...) Todo
mundo está disposto a fazer 'bicos', e todo mundo, também, fica feliz quando
pode pagar menos por um serviço. (...) É possível que, em pouco tempo, o
trabalho qualificado se torne parte do precariado. (...) A uberização é o
trabalho em migalhas. (...) O homem contemporâneo ainda associa trabalho com
dignidade, embora, paradoxalmente, esteja aceitando trabalhos cada vez mais
indignos para sobreviver."
O parágrafo acima é uma compilação de trechos
do excelente texto do filósofo João de Fernandes Teixeira espalhado pela
postagem anterior. E ao dizer que "o homem esteja aceitando trabalhos cada
vez mais indignos para sobreviver.", João Teixeira me faz lembrar uma
afirmação feita pelo extraordinário Sebastião Salgado em uma entrevista
concedida a Roberto D’Ávila, há muitos anos, que é mais ou menos assim: a
louvada capacidade de o ser humano adaptar-se a tudo é, na verdade, um
malefício, pois leva-o a adaptar-se a coisas contra as quais deveria
indignar-se.
E nestes tempos em que todos dão respostas sem jamais se fazerem
perguntas, durante um encontro familiar em que o assunto Uber veio à baila, ao dizer que o objetivo do referido aplicativo é
a aplicação de veículos sem motorista, ouvi uma sobrinha responder (enquanto
interagia com seu smartphone) algo mais ou menos assim: "Agora é assim
mesmo, as máquinas é que farão tudo.". Para mim, foi triste constatar que
algo que deveria dar o que pensar seja tão natural para uma jovem. Uma jovem
que, imediatamente, me fez lembrar algo dito por um antigo ganhador de Prêmio Nobel.
Cirurgião,
fisiologista, biólogo e sociólogo que, em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de
Medicina e Fisiologia, autor de um livro publicado em 1935, com o título O
Homem, Esse Desconhecido, traduzido, reeditado e transformado num grande êxito
mundial até a década de 1950, Alexis Carrel (1873 - 1944) é autor da seguinte afirmação? "A
civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas; mas, sim o do
homem".
O Homem, Esse Desconhecido, eis o título de um livro escrito por alguém
para quem a finalidade da civilização é o progresso do homem, não o das
máquinas. Vocês imaginam qual deveria ser o título de um livro que fosse
escrito por alguém que enxergue como algo natural a entrega do destino do homem
nas "mãos" de máquinas? Será que O Homem, Esse Resignado seria um título adequado?
E de lembrança em lembrança, ao ver a aceitação como natural de
algo que deveria indignar-nos, o método das recordações sucessivas me faz lembrar
a seguinte afirmação de Bertolt Brecht (1898 – 1956): "Nada deve parecer
natural; nada deve parecer impossível de mudar." Afirmação extraída do
seguinte texto:
Nada É Impossível De MudarDesconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
Pois
em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade
consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve
parecer impossível de mudar". Vocês percebem nas
características do tempo a que se refere Bertolt Brecht alguma semelhança com o
tempo em que sobrevivemos? Sinistro, não? O que aconteceu entre aquele tempo e
este? No aspecto tecnológico, uma estupenda evolução; no aspecto comportamental,
uma estúpida estagnação.
Por considerá-lo em
conformidade com o que é dito em "A
uberização da vida", incluo nesta postagem mais um texto de Bertolt
Brecht.
"Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Eu não sou negro.
Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso. Eu também não sou operário.
Depois prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados, mas como tenho meu emprego, também não me importei.
Agora estão me levando, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo."
Primeiro "uberizaram" os
desempregados, mas não me importei com isso. Eu não sou desempregado. Em
seguida "uberizaram" alguns trabalhadores pouco qualificados, mas não
me importei com isso. Eu também não sou trabalhador pouco qualificado. Agora
estão me "uberizando", mas já é tarde. Como eu não me importei com
ninguém, ninguém se importa comigo. Segundo o filósofo João de Fernandes
Teixeira, "uberização" é o trabalho em migalhas. É à luz dessa
definição que deve ser interpretado este parágrafo, OK?
Sobre o assunto Uber já foram publicadas, no blog Lendo e opinando, as seguintes
postagens: Preço
baixo da Uber vai acabar, diz especialista (29.02.2016) / Compartilhando asneiras (12.03.2016)
/ Após táxis, Uber agora enfrenta seus
motoristas (11.04.2016). Considerando que o assunto é deveras
instigante, creio que outras postagens ainda ocorrerão.
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