Mundo é ignorante sobre realidade, diz pesquisa, é o título da
postagem anterior. E ignorante sobre a realidade ele segue aceitando, passivamente,
coisas contra as quais deveria rebelar-se. Coisas como a citada pelo filósofo
João de Fernandes Teixeira em artigo publicado na edição nº 120 da revista Filosofia, publicada pela editora Escala. Vocês sabem o que é a uberização da vida? Se não sabem, leiam
a transcrição do excelente artigo de João Teixeira apresentada abaixo. Os grifos são
meus.
A uberização da vida
A tecnologia e o trabalho vivem, nos últimos
séculos, uma relação pontuada por uma série de episódios surpreendentes, quase
sempre marcados pelo conflito.
Desde o início da era industrial, no século
XVIII, os operários de fábricas são assombrados pelo espectro de sua
substituição por máquinas. Naquela época, havia boatos, na Inglaterra, sobre o
lendário general Ned Ludd, que incitava a invasão das tecelagens e a destruição
das máquinas para conter o desemprego em massa.
Nunca saberemos ao certo se Ned Ludd realmente
existiu. Contudo, o termo ludismo
passou a ser incorporado pela literatura sociológica e filosófica como
designando a revolta contra a tecnologia. Nas últimas décadas já se fala até em
neo-ludismo, um movimento radical que defende a reversão da humanidade para um
estádo pré-tecnológico.
É provável que ocorra algo semelhante a uma
revolta ludita hoje em dia, se algumas promessas da tecnologia se
concretizarem. Uma delas é a substituição dos motoristas profissionais pelo
piloto automático do Google. Se isso ocorrer, presenciaremos a maior onde de
desemprego dos últimos séculos. O fantasma, dessa vez, seria a inteligência
artificial.
No entanto, já existe uma outra revolução em
curso, que chega liderada pelo aumento crescente dos aplicativos. Além de nos
disponibilizar serviços no esquema 24/7 (24 horas por dia, sete dias da
semana), a internet começa, agora, a preencher nichos de tempo livre com
trabalho. Chamo a esse fenômeno de uberização.
Frequentemente, o Uber é um aplicativo
associado com a substituição dos taxis nas grandes cidades, mas é muito mais do
que isso. Inicialmente, o projeto do Uber era organizar caronas solidárias nas
grandes cidades. No entanto, alguns empresários perceberam que poderiam
aproveitar o fato de que, hoje em dia, praticamente todas as pessoas dirigem
carros e que, se essa força de trabalho fosse aproveitada e organizada por um
aplicativo, os motoristas amadores poderiam, praticamente, assumir o mercado
preenchido pelos táxis, bastando, para isso, fazer "bicos" em horas
vagas.
Em pouco tempo, o Uber se tornou uma daquelas
empresas arquibilionárias do vale do silício, cujo endereço é apenas alguma
caixa-postal de algum paraíso fiscal caribenho. Com ele, vieram outros
aplicativos para preencher com trabalho as horas vagas de muitas outras
atividades profissionais. A advogada que está com poucos clientes pode
compensar essa situação se souber fazer maquiagem. Há um aplicativo para
chamá-la nas vésperas de eventos. Ela não precisa ser uma maquiadora
profissional e, por isso, sabe-se que ela cobrará a metade do preço. Se você
tem uma moto, pode maximizar seu uso fazendo entregas aos sábados em vez de
deixá-la ociosa na garagem do seu prédio. Todo
mundo está disposto a fazer "bicos", e todo mundo, também, fica feliz
quando pode pagar menos por um serviço.
A uberização é o
trabalho em migalhas. Ela começa com a profissionalização do amadorismo, pois todos
podemos ser motoristas, jardineiros ou entregadores nas horas vagas. Contudo, o
inverso, ou seja, o rebaixamento de profissionais a amadores, já está
acontecendo. Muitos profissionais qualificados estão se inscrevendo em
aplicativos que os selecionam para prestar serviços a preços reduzidos em
determinados horários ou dias da semana. É
possível que, em pouco tempo, o trabalho qualificado se torne parte do precariado.
Ainda é difícil prever os resultados da
uberização do trabalho. A relação contínua entre empregados e patrões tenderá a
desaparecer, sobretudo no setor de serviços. A babá de seu filho, quando você
for ao cinema com sua esposa, será escalada por um aplicativo e, dificilmente,
será a mesma em todas as ocasiões. Não haverá mais o taxista de confiança ou o
garçom que te reconhece sempre que você entra em um determinado restaurante.
Com a uberização, a liberdade e a coação se
tornam coincidentes, pois todos se tornarão patrões de si mesmos. A dialética
senhor-escravo, tão cara ao hegelianos e a seus herdeiros marxistas,
desaparecerá. Pois todos seremos sempre ao mesmo tempo senhores e escravos. Exploraremos
a nós mesmos de forma implacável.
A demarcação entre tempo livre por oposição ao
horário de trabalho será ainda mais diluída. Todos se sentirão culpados por
tirar uma soneca após o almoço de domingo em vez de aproveitar o tempo fazendo
uma corrida de táxi para alguém que precisa ir ao aeroporto para viajar,
provavelmente, a trabalho.
Na Antiguidade, os gregos desprezavam o
trabalho. No mundo cristão, sobretudo com a reforma protestante, ele passou a
ser associado com dignidade. Não ter emprego, não ter trabalho passou a corroer
a autoestima de muitas pessoas. O homem contemporâneo
ainda associa trabalho com dignidade, embora, paradoxalmente, esteja aceitando
trabalhos cada vez mais indignos para sobreviver.
O sociólogo sul-coreano Byung-Chul Han aponta
no seu livro A sociedade do cansaço
(Vozes, 2015), que não é por acaso que enfrentamos uma pandemia de depressão.
De um lado, há metas inatingíveis, e de outro, apenas oferta de trabalho
precário.
A precariedade da vida tende a se tornar um
padrão. As novas gerações já sabem que o sonho da estabilidade ficou para trás.
Como trabalhadores efêmeros e também consumidores efêmeros, a ideia de uma vida
melhor no futuro, como resultado de uma carreira, tende a desaparecer.
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Para quem ainda
consegue resistir à adesão ao "comportamento de manada", creio que a uberização da vida seja capaz de dar o
que pensar. Em conformidade com a intenção de estimular as pessoas a refletirem
sobre o que lêem, as ideias espalhadas pelo blog são acompanhadas de reflexões provocadas
pelas ideias. O problema é que muitas vezes o tamanho atingido pelas postagens
pode desestimular leitores com pouco fôlego e quando tal acontece o jeito é recorrer
ao método Jack: "vamos por partes". E ao ir por partes a prática
adotada é espalhar as reflexões por meio de postagens do tipo Reflexões provocadas por "...".
Sendo assim, na esperança de que vocês consigam encontrar algum tempo para fazerem
suas reflexões sobre a uberização da vida,
a próxima postagem espalhará algumas das minhas.
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