quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O discurso de Vaclav Havel

A busca de que ideias espalhar na primeira postagem do ano levou-me a um discurso proferido no primeiro dia do ano 1990. Um brilhante discurso do escritor, intelectual e dramaturgo Vaclav Havel (1936 – 2011) em sua posse como presidente da Checoslováquia. O que me levou a ele? A equivocada crença que as pessoas têm de que a simples chegada de um novo ano será capaz de lhes trazer soluções para os males que as afligem. O que as palavras de Havel têm a ver com a equivocada crença? A possibilidade de fazer as pessoas enxergarem que - sem a nossa participação - jamais nos livraremos dos males que nos afligem.
Ao apresentar apenas trechos, e não a íntegra do discurso, a pretensão é, com a diminuição do tamanho da postagem, aumentar a probabilidade de ela ser lida. O discurso de Vaclav Havel é um dos escolhidos pelo poeta, contista, tradutor e redator Carlos Figueiredo para fazer parte de seu livro intitulado 100 Discursos Históricos, publicado em 2002.
O discurso de Vaclav Havel
Vivemos sob um ambiente moralmente contaminado. Caímos moralmente doentes, porque costumamos dizer coisas diferentes daquilo que pensamos. Aprendemos a acreditar em nada, a ignorar uns aos outros, a nos importar somente com nós mesmos. Conceitos como amor, amizade, compaixão, humildade ou perdão perderam sua profundidade e dimensões, e para muitos de nós representavam somente peculiaridades psicológicas, ou eram iguais às saudações que se perderam no tempo, um pouco ridículo nesta era de computadores e espaçonaves. Somente poucos de nós fomos capazes de levantar a voz e dizer que os poderes não podem ser todo-poderosos, e que as fazendas especiais, que produziram alimentos ecologicamente puros e de alta qualidade somente para eles, deveriam mandar seus produtos para as escolas, orfanatos e hospitais, caso a nossa agricultura não fosse capaz de suprir todo mundo.
(...) Quando falo de um ambiente moralmente contaminado, não estou me referindo somente às pessoas que comem vegetais orgânicos, que não olham pela janela do avião. Estou falando de todos nós. Todos nós nos acostumamos a este sistema totalitário como um fato consumado, ajudando na sua perpetuação. Em outras palavras, somos todos – mais ou menos – responsáveis pela operação desta máquina totalitária; nenhum de nós é somente vítima: somos todos seu criador.
Por que digo isso? Não seria nada razoável entendermos esta triste herança dos últimos quarenta anos como algo estranho, alguma coisa deixada por um parente distante. Pelo contrário, temos que aceitar esta herança como um pecado que cometemos contra nós mesmos. Se aceitarmos assim, compreenderemos que resta a todos nós, e somente a nós, fazermos algo sobre a situação. Não podemos culpar os regentes anteriores por tudo, não só pelo fato de que seria mentira, mas também porque tiraria a urgência daquilo que temos que fazer aqui hoje, que é a obrigação de agirmos de modo independente, livremente, razoavelmente e rapidamente. Não vamos nos enganar: O melhor governo do mundo, o melhor parlamento e o melhor presidente não conseguem fazer muita coisa sozinhos. E também seria errado esperar um remédio contra todos nossos males que viesse somente deles. Liberdade e democracia incluem participação e, consequentemente, responsabilidade de todos.
(...) Vamos tentar, nestes novos tempos, novas maneiras de restaurar esse conceito de política. Vamos ensinar a nós e aos outros qual política deveria ser uma expressão do desejo de contribuir para a felicidade da comunidade, ao invés da necessidade de fraudar ou estuprar a comunidade. Vamos ensinar a nós e aos outros que política pode ser não só a arte daquilo que é possível, especialmente se isto significa especulação, cálculo, intriga, assuntos secretos e manobras pragmáticas, mas também pode ser a arte daquilo que é impossível, ou seja, a arte de melhorarmos a nós mesmos e o mundo...
(...) Não deixem que o desejo de servir a si próprios brote debaixo da máscara de querer servir ao bem da comunidade. Não é tão importante agora qual o partido, clube, ou grupo ganha as eleições. O mais importante é que o vencedor seja o melhor entre nós, no sentido moral, cívico, político e profissional, independentemente de sua afiliação partidária. As políticas futuras e o prestígio de nosso Estado dependerão das personalidades que escolhermos e depois elegermos para serem nossos representantes...
(...) Poderão perguntar que tipo de república é meu sonho. Deixem que eu responda: sonho com uma república independente, livre, socialmente justa, em suma, uma república humana que sirva o indivíduo e que, consequentemente, espera que o indivíduo a sirva também. Uma república de pessoas íntegras, uma vez que sem as quais fica impossível resolver nossos problemas, sejam eles humanos, econômicos, ecológicos, sociais ou políticos.
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E aí? O discurso de Vaclav Havel pode ser considerado uma boa escolha para a primeira postagem do ano? Vocês conseguem enxergar nele algumas afirmações segundo as quais as soluções para os males que nos afligem, e a consequente melhora não só deste ano, mas também de todos os que virão, é uma tarefa que cabe a todos nós, e não algo que nos será dado com a simples chegada de um novo ano? Para quem não conseguiu, sugiro a leitura dos dois próximos parágrafos como uma nova tentativa para enxergar. Para quem conseguiu, a leitura poderá servir como um exercício de fixação de algumas das ideias de Vaclav Havel.
"Não vamos nos enganar: o melhor governo do mundo, o melhor parlamento e o melhor presidente não conseguem fazer muita coisa sozinhos. E também seria errado esperar um remédio contra todos nossos males que viesse somente deles. Liberdade e democracia incluem participação e, consequentemente, responsabilidade de todos.
Vamos ensinar a nós e aos outros que política pode ser não só a arte daquilo que é possível, especialmente se isto significa especulação, cálculo, intriga, assuntos secretos e manobras pragmáticas, mas também pode ser a arte daquilo que é impossível, ou seja, a arte de melhorarmos a nós mesmos e o mundo... "

3 comentários:

Anônimo disse...

Tenho uma certa fixação pelos discursos de Havel -- já li alguns deles, traduzi um (para meu uso) e cataloguei todos -- e por esse motivo cheguei a seu site. Esses trechos que você postou eu ainda não tinha lido, por isso, muito obrigado.

Quanto às ideias dele, acho-o um tanto sonhador. Num discurso de 1995 ele propõe, para evitar o que ele chama de "conflitos de civilizações", espalhar os valores ocidentais pelo mundo, isto é, a democracia, o livre-mercado, a liberdade de imprensa e expressão, etc. Mas para isso, faz-se necessário, antes, diz ele, lograr uma profunda (re)espiritualização da sociedade ocidental. Mas com o ocidente do jeito que está, essa "espiritualização", penso, só poderia acontecer no momento em que o estado deixasse de ser laico e a universidade "ateia". Talvez aja outra solução, mas não a vejo no momento.

Que você acha dessa proposta de Havel?

Guedes disse...

"Quanto às ideias dele (Havel), acho-o um tanto sonhador", diz você em seu comentário, fazendo-me entender que ser sonhador, talvez, seja um defeito. Corrija-me se entendi errado, ok?

Tenho, sobre sonhadores, a seguinte opinião: Para uma civilização (sic) cada vez mais imersa em pesadelos, sonhadores são indivíduos imprescindíveis. Indivíduos que sozinhos jamais serão capazes de mudar qualquer realidade, mas que juntos com outros que disponham-se a sonhar juntos com eles, algum dia ainda conseguirão tornar este mundo algo que faça jus ao termo civilização.

São de Miguel de Cervantes, romancista, dramaturgo e poeta castelhano... e sonhador, as seguintes palavras: "Quando se sonha sozinho, é apenas um sonho.... Quando sonhamos juntos, é o começo da realidade".

Creio que um dos maiores obstáculos para mudar para melhor o mundo em que vivemos é o fato de nenhum dos extraordinários sonhadores que passaram por ele ter tido uma quantidade significativa de indivíduos dispostos a sonhar juntos com eles os seus belos sonhos.

Já publiquei, neste blog, duas postagens focalizando sonhadores: Legado de Obama é oposto ao de Martin Luther King e Lembrando outro famoso integrante do time dos sonhadores. Já publiquei também duas postagens que citam Vaclav Havel: Vale a pena viver? e Reflexões provocadas por "Propósito".

Interessante é que, segundo o seu comentário, na proposta de Havel para evitar o que ele chama de "conflitos de civilizações", o espalhamento dos valores ocidentais pelo mundo necessita ser precedido por uma profunda (re)espiritualização da sociedade ocidental.

Mas será que essa profunda (re)espiritualização não alteraria os próprios valores ocidentais a serem espalhados? No meu entender, sim. Até porque sendo criações de seres imperfeitos - democracia, livre-mercado, liberdade de imprensa e expressão – são coisas que jamais poderão ser consideradas como prontas e que precisarão ser sempre aperfeiçoadas, porém sem jamais atingirem a perfeição, pois sua qualidade será sempre diretamente proporcional à qualidade dos indivíduos que as praticam.

Interessante talvez seja perceber que evitar "conflitos de civilizações" passa não por uma das partes adotar os valores da outra, e sim por cada uma respeitar os valores da outra, e com o passar do tempo, quem sabe, juntas, encontrarem valores comum às duas.

E para encerrar este comentário segue uma afirmação de Arnaud Riou da qual gosto muito. "Não deixe a vida impedir seus sonhos. Lembre-se de que são seus sonhos que inspiram sua vida."

Se a resposta não lhe satisfez, fique à vontade para fazer um novo comentário ou se quiser me escrever use o endereço de e-mail indicado no blog: lendoeopinando@gmail.com

Abraços,
Guedes

wilson moreira disse...

Falar de sonho e de sonhos -- quem sabe -- seja a manifestação de um romantismo aplicado à filosofia social e política que já está meio defasado. Suporia o étimo UTOPIA que é a possibilidade de fazermos o impossível ser passível de análises proativas que estabeleçam parâmetros a serem instrumentalizados por eventuais corajosos que nominaríamos de 'criadores de realidades'. Parece que foi Oscar Wilde quem escreveu que o "o progresso é a realização de utopias qque conseguiram se concretizar". Observando a história da humanidade nós podemos ver que todas as idéias avançadas que se realizaram foram propostas de pessoas desajustadas com seus meios ambientes, quebradores de consensos que letargizam o dito e redito rebanho humano feito de conformistas e de escravos felizes. Pensem nisso enquanto subscrevo este comentáriozinho: wilson moreira, hoje em curitiba, brasil.