"... mas
também pode ser a arte daquilo que é impossível, ou seja, a arte de melhorarmos
a nós mesmos e o mundo...". Por que inicio esta postagem com as palavras
finais da anterior?
Por entender que "melhorarmos a nós mesmos" tem tudo a ver com o tipo
de viagem sugerido por Frei Betto em seu belo artigo publicado na edição de 13
de julho de 2005 do Jornal do Brasil e
reproduzido abaixo.
Viagens interiores
Todos os pecados capitais, sem exceção, são
tidos como virtudes nessa sociedade neoliberal corroída pelo afã consumista.
Basta ligar a TV e confirmar. A inveja é estimulada no anúncio da moça que,
agora, possui um carro melhor do que o do vizinho. A avareza é o mote das
aplicações financeiras. A cobiça inspira todas as peças publicitárias, do
Carnaval a bordo no Caribe ao tênis de grife das crianças. O orgulho é sinal de
sucesso dos executivos bem-sucedidos, que possuem secretárias cinematográficas
e planos de saúde eterna. A preguiça fica por conta das sandálias que nos fazem
relaxar, cercados de afeto, numa lancha ao Sol ou da revista que emite bons
fluidos. A luxúria é outra marca registrada da maioria dos clipes
publicitários, onde jovens esbeltos e garotas esculturais desfrutam uma vida
saudável e feliz ao consumirem bebidas, cigarros, roupas e cosméticos. Enfim, a
gula subverte a alimentação infantil na forma de chocolates, refrescos, biscoitos
e margarinas, induzindo-nos a crer que sabores são prenúncios de amores.
Há nas tradições religiosas uma sabedoria de
vida. Despidos de preconceitos, ao refletir sobre os sete pecados capitais,
veremos que cada um deles se refere a uma tendência egoísta que traz frustração
e infelicidade. A cobiça nos faz reféns do mercado e dos modismos, atraindo-nos
ao buraco negro das maracutaias que, miragens no deserto, nos prometem dinheiro
fácil e status de Primeiro Mundo. A avareza ensina a acumular dinheiro mesmo
quando ele precisaria ser investido na melhoria de nossa qualidade de vida.
Rendimentos passam a ser mais importantes que investimentos, como o caramujo
que, por carregar a casa nas costas, arrasta-se pela vida.
A luxúria nasce nos olhos, agita a mente e
perturba o coração. O objeto do desejo aliena do amor enquanto projeto de vida,
aprisionando-nos no jogo narcísico da sedução. A gula aumenta o colesterol,
deforma o corpo e entristece o espírito. O orgulho é a terrível consciência de
que queremos parecer o que não somos e, cheios de empáfia, nossa alma trafega
apoiada em frágeis muletas.
A preguiça traz incapacidade e atiça os
devaneios, induzindo a trocar a realidade pela fantasia. A inveja, essa
tristeza por não possuir o bem alheio, é o espelho de nossa covardia em ser do
tamanho que somos, nem maiores nem menores.
Há um conflito entre o princípio nº 1 da
sociedade em que vivemos – ganhar dinheiro – e os valores que sedimentam a
existência. Nessa guerra, são sacrificados os valores éticos e os princípios
morais, a educação das crianças e as relações conjugais, os vínculos familiares
e a nossa própria qualidade de vida.
Por que a ambição de uma viagem ao exterior
não se reflete também no desejo de viajar para dentro de si mesmo? Mundo
desconhecido, esse que trazemos no espírito. Mas, como turistas ocasionais,
ficamos sem saber qual "agência" pode nos assegurar uma viagem de
melhor proveito: a Igreja Católica ou o budismo? O candomblé ou o espiritismo?
Os rosacruzes ou o Santo Daime?
Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós
mesmos. Recolher-se ao silêncio interior é sempre um excelente ponto de
partida. Para quem nunca fez essa viagem, dar o primeiro passo assusta, porque
não nos é dado o roteiro, e a paisagem exterior convida-nos a abandonar o trem.
Se controlamos "a louca da casa", a imaginação, logo o silêncio
interior se faz Voz. Então, somos apresentados ao nosso verdadeiro Eu, que nos
impele ao nós. E experimentamos inefável felicidade, a imponderável leveza do
Espírito.
Hoje é o primeiro dia do resto de nossas
vidas. Com certeza uma boa data para embarcar rumo ao lado avesso de nós
mesmos. Reavaliar o que, em nossa vida, são de fato valores e virtudes. Época
propícia às viagens interiores. Sem medo de eventuais vertigens, pois as
regiões interiores, como os picos das montanhas, provocam reações no corpo e no
espírito. A diferença é que, ao mergulhar no fundo de nós mesmos, é melhor
fechar os olhos para ver melhor.
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"Há um conflito entre o princípio nº 1 da sociedade em que vivemos – ganhar dinheiro – e os valores que sedimentam a existência. Nessa guerra, são sacrificados os valores éticos e os princípios morais, a educação das crianças e as relações conjugais, os vínculos familiares e a nossa própria qualidade de vida.", diz Frei Betto.
Valores éticos e princípios morais aos quais, embora
"sacrificados no conflito nº 1 da sociedade em que vivemos – ganhar
dinheiro -", ainda resta uma possibilidade de regeneração: as viagens para
dentro de nós mesmos. Viagens que, segundo Frei Betto, "apresentando-nos
ao nosso verdadeiro Eu, impele-nos ao nós". Conhecer o verdadeiro Eu para
tornar-se capaz de viver em função do nós. Ou seja, para tornar-se capaz de
conviver! Será que está aí a solução para a totalidade dos males que afligem qualquer
coletividade? No meu entender, sim.
Por que a ambição de uma viagem ao exterior
não se reflete também no desejo de viajar para dentro de si mesmo? – pergunta
Frei Betto. Porque os dois tipos de viagem requerem modos diferentes de olhar.
Enquanto viagens ao exterior requerem olhos abertos para apreciar o que esteja
ao nosso redor, viajar ao fundo de nós mesmos requer olhos fechados para ver
melhor o essencial que lá existe, pois como diz Antoine de Saint-Exupéry,
"o essencial é invisível aos olhos".
Conseguir obter o que é essencial! "Os
jovens têm tudo, só lhes falta o essencial", é uma célebre frase de Robert
Kennedy. Extensível a qualquer faixa etária, mais de quarenta anos depois, tal frase
é cada vez mais verdadeira. Mercê de um estupendo desenvolvimento tecnológico
atingido por esta civilização (sic), é cada vez maior a quantidade de coisas
que pessoas que disponham de boa condição financeira conseguem ter. O problema
é que quanto maior é a quantidade de coisas que se tem, maior é a dificuldade
para obter o essencial.
Se o início desta postagem traz as últimas
palavras da postagem anterior, o fim traz uma afirmação contida no penúltimo
parágrafo da reportagem que provocou a próxima postagem. Uma reportagem de
Nataly Costa publicada na edição de dezembro 2016 / janeiro 2017 da revista PODER – Joyce Pascowitch.
"O empoderamento emocional vem do maior contato possível com o eu, com suas questões internas. O que a tecnologia faz é tirar o foco disso, é deixar você totalmente voltado para fora. Próximo do entorno, mas distantes de nós mesmos", afirma o psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do laboratório de dependência digital do Instituto de Psiquiatria da USP.
"Tirar o foco do maior contato possível
com o eu, com suas questões internas. Deixar você totalmente voltado para fora.
Próximo do entorno, mas distantes de nós mesmos". Ou seja, atuar no
sentido de impedir viagens interiores é o que a tecnologia faz. Viagens
interiores e tecnologia, nada a ver! O título da próxima postagem? Modo Avião. Desperta-lhes alguma
curiosidade?
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