segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Entre o espiritual e o material

Neste período do ano em que – embalada pela comemoração do nascimento de um ser que veio a esta dimensão com o propósito de estimular a humanidade a desenvolver seu lado espiritual - a maioria das pessoas atinge o ápice nas suas práticas materialistas, a busca de alguma ideia que eu considere merecedora de espalhamento levou-me ao encontro, em meus alfarrábios, de um interessante artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo em 31 de outubro de 2010, época em que este blog ainda não existia. Seis anos depois ele permanece atualíssimo. Intitulado "Entre o espiritual e o material" é assinado por Marcelo Gleiser, um físico brasileiro que é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, EUA e autor de uma série de livros da qual o mais recente é intitulado A Simples Beleza do Inesperado.
Entre o espiritual e o material
Existimos nessa fronteira, não muito bem delineada, entre o material e o espiritual. Somos criaturas feitas de matéria, mas temos algo mais. Somos átomos animados capazes de autorreflexão, de perguntar quem somos.
Devo dizer, de saída, que espiritual não implica algo sobrenatural e intangível. Uso a apalavra para representar algo natural, mesmo intangível, pelo menos por enquanto. Pois, se olharmos para o cérebro como o único local da mente, sabemos que é lá, na dança eletro-hormonal dos incontáveis neurônios, que é gerado o senso do "eu".
Infelizmente, vivemos meio perdidos na polarização artificial entre a matéria e o espírito e, com frequência, acabamos optando por um dos dois extremos, criando grandes crises sociais que podem terminar em atrocidades. Vivemos numa época onde o materialismo acentuado – do querer antes de tudo, do eu antes do outro, do agora antes do legado -, está por causar consequências sérias.
Lembro-me das sábias linhas do filósofo Robert Pirsig, no clássico "Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas": "Nossa racionalidade não está movendo a sociedade para um mundo melhor. Ao contrário, ela a está distanciando disso".
Ele continua: "Na Renascença, quando a necessidade de comida, de roupas e de abrigo eram dominantes, as coisas funcionavam bem. Mas agora, que massas de pessoas não têm mais essas necessidades, essas estruturas antigas de funcionamento não são adequadas. Nosso modo de comportamento passa a ser visto como de fato é: emocionalmente oco, esteticamente sem sentido e espiritualmente vazio.
O ponto é claro: atingimos uma espécie de saturação material. Para chegar a isso, sacrificamos o componente espiritual. O material é reptiliano: "Eu quero, eu pego. Se não consigo, eu mato (metaforicamente ou de fato). O que quero é mais importante do que o que você quer".
Claro, progredimos muito, dando conforto a milhões de pessoas, mas, no frenesi do sucesso, deixamos de lado o que nos torna humanos. Não só nossas necessidades, mas nossa generosidade, nossa capacidade de dividir e construir juntos. Quando nossa sobrevivência está garantida, recaímos em nosso modo reptiliano de agir – autocentrado – e esquecemos da comunidade.
A diferença entre nossa realidade e a de Pirsig, que escreveu essas linhas acima em 1974, é que um novo tipo de conscientização está surgindo, em que o senso de comunidade está migrando do local ao global. Isso me deixa otimista. Em todo o planeta, um número cada vez maior de pessoas entendeu já que os excessos materialistas da nossa geração precisam terminar. Não é apenas porque o materialismo desenfreado é superficial. É porque é letal, tanto para nós quanto para a vida à nossa volta.
O sucesso do filme "Avatar" não teria sido o mesmo em 1990.Olhamos para nosso planeta de modo que não olhávamos 20 anos atrás. O sucesso do filme "Avatar" não teria sido o mesmo em 1990.
O momento está chegando para um novo tipo de espiritualidade, que nos levará a uma existência mais equilibrada, onde o material e o espiritual mantêm um balanço dinâmico. O material sem o espiritual é cego, e o espiritual sem o material é fantasia. Nossa humanidade reside na interseção dos dois.
*************
"Somos átomos animados capazes de autorreflexão, de perguntar quem somos.", diz Marcelo Gleiser. Capazes, sim, mas com tal capacidade inibida em decorrência da nossa predileção pelo material em detrimento do espiritual, digo eu.
"Vivemos numa época onde o materialismo acentuado está por causar consequências sérias.", diz Gleiser. (...) "Nossa racionalidade não está movendo a sociedade para um mundo melhor. Ao contrário, ela a está distanciando disso", são, segundo Marcelo Gleiser, sábias linhas do filósofo Robert Pirsig, no clássico "Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas".
Sábias linhas que me fazem lembrar sábias palavras de Eduardo Marinho que podem ser ouvidas nos três minutos finais do vídeo que encontrei no endereço https://www.youtube.com/watch?v=I7arqW5luKc&feature=youtu.be&t=46m41s, e que constituem o próximo parágrafo.
"A minha razão eu subalternizei ao sentimento. É o sentimento que decide. A razão arruma um jeito de fazer o que o sentimento decidiu. A razão não tem poder de decisão. Ela sozinha fica psicopática. A razão construiu esse mundo em que a gente vive. A razão explica que a pobreza é necessária. A razão dos grandes cria a miséria para pressionar os trabalhadores a aceitarem qualquer condição de trabalho, com medo de ir para a miséria. O sentimento jamais permitiria existirem pessoas abandonadas num mundo que tem plenas condições de atender a todo mundo. De produção, de distribuição, de tecnologia, de conhecimento. O mundo tem todas as condições de não ter um miserável, mas a razão implantada convence as pessoas de que isso é assim mesmo, que não tem jeito.".
Sim, "convencendo as pessoas de que não tem jeito", de que as coisas sempre foram assim, de que sempre serão assim, e de que nada se pode fazer, "nossa racionalidade jamais moverá a sociedade para um mundo melhor. Ao contrário, ela a estará cada vez mais distanciando-a disso". Sim, enquanto nossa razão não for subalternizada ao nosso sentimento são simplesmente nulas as nossas possibilidades de vivermos em uma sociedade que preste.
"Progredimos muito, (...), mas, no frenesi do sucesso, deixamos de lado o que nos torna humanos. Não só nossas necessidades, mas nossa generosidade, nossa capacidade de dividir e construir juntos. Quando nossa sobrevivência está garantida, esquecemos da comunidade. (...) mas um novo tipo de conscientização está surgindo, em que o senso de comunidade está migrando do local ao global. Isso me deixa otimista. Em todo o planeta, um número cada vez maior de pessoas entendeu já que os excessos materialistas da nossa geração precisam terminar. Não é apenas porque o materialismo desenfreado é superficial. É porque é letal, tanto para nós quanto para a vida à nossa volta."
"O momento está chegando para um novo tipo de espiritualidade, que nos levará a uma existência mais equilibrada, onde o material e o espiritual mantêm um balanço dinâmico. O material sem o espiritual é cego, e o espiritual sem o material é fantasia. Nossa humanidade reside na interseção dos dois.", diz Marcelo Gleiser.
"O material sem o espiritual é cego, e o espiritual sem o material é fantasia. Nossa humanidade reside na interseção dos dois.", diz Marcelo Gleiser (1959 - ....). Guardando as devidas proporções entre espiritualidade e religião, e entre materialismo e ciência, recordo aqui uma conhecida frase de Albert Einstein (1879 - 1955): "A ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega.". E de recordação em recordação, o método das recordações sucessivas traz-me uma afirmação de Teilhard de Chardin (1881 – 1955) que é usada neste blog como uma das citações que ilustram uma coluna intitulada E, para o resto da vida..., localizada abaixo da Citação da semana. Qual é a afirmação? "Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual; somos seres espirituais vivendo uma experiência humana.".
Lido isto, respondam a seguinte indagação: Ainda resta-lhes alguma dúvida de que "Nossa humanidade reside na interseção dos dois"? Do espiritual e do material?
Com previsão de nova postagem apenas no dia 4 de janeiro, comunico-lhes o meu desejo de que consigam sobreviver, em bom estado, aos festejos de final de ano, pois o ano que se aproxima exigirá demais de todos os que por aqui ele encontrar. Compreendido?

Nenhum comentário: