Esta postagem apresenta uma compilação de
trechos de um capítulo homônimo encontrado no livro intitulado Percepções da
Essência – Filosofia, religião e ciência na busca do sentido da existência, de Cássio Cooke. Um livro que vale a pena ler.
Desvio pelo Torpor
Passamos a maior parte desta vida, quando não esta como um todo,
totalmente afastados de qualquer relação verdadeira e profunda com a nossa
espiritualidade. Agrilhoados à terra, somos impingidos a uma batalha diária
pela manutenção da vida. O dia a dia, a pressa, a tensão, a ansiedade, a luta
diária pela simples sobrevivência, tudo isso nos leva ao automatismo, o viver
sem pensar, o viver sem prestar atenção.
O exercício do buscar a essência da vida para além das aparências
grosseiras e tangíveis é uma tarefa desafiadora, solitária e heroica, que
demanda enormes e constantes esforços. Talvez isso explique por que grande
parte da humanidade avança reptilizada e sem rumo.
É muito difícil buscar a essência divina neste mundo em que vivemos.
Sinto que quase tudo no dia a dia tenta nos afastar dessa busca. Acredito,
entretanto, que o verdadeiro crescimento, o sentido de uma vida, é perseverar
na busca, não nos deixando enfraquecer, não deixando nossa visão obscurecida,
nossas sensações amortecidas e nossas ações automatizadas.
Vamos nos robotizando e deixamos de perceber o que se passa ao nosso
redor, e dentro de nós. Deixamos, assim, de prestar atenção aos outros, às
coisas, à vida e a nós mesmos. Exemplificando, mecanizados e adormecidos, somos
capazes de nos autodefinir com o que fazemos e não com o que somos. Acreditamos
nisso, construímos as nossas carreiras e conquistamos os nossos bens, mas
esquecemos de edificar a nossa felicidade.
Robotizados, seguimos sem personalidade olhando para o que acontece ao
nosso redor e procurando nos amoldar aos costumes, rótulos e lugares-comuns.
Agindo assim, sentimo-nos protegidos. Se errarmos, nos julgaremos menos
desafortunados por percebermos a grande maioria equivocando-se conosco.
A indiferença, a apatia e o distanciamento nos tomam de assalto.
Acreditamos estar despertos, conscientes e vigorosos, mas se olhássemos através
da delgada superfície das aparências materiais, perceberíamos que vagamos como
sonâmbulos, agindo mecanicamente, sem consciência do que fazemos e das razões
por que fazemos.
Seguindo inconscientes, criamos e adoramos ídolos frívolos e
perecíveis, seguimos exemplos estúpidos e estéreis, repetimos sentenças
repugnantes e eméticas, buscamos conhecimentos fugazes e rasteiros e almejamos
conquistas vazias e vulgares.
Ninguém mais ousa ser o que é e, nesta permanente atrofia, os homens,
que formam a horda chamada sociedade, fazem todos o mesmo sob as mesmas
circunstâncias.
O profundo tédio, causado pelo vazio metafísico, impulsiona o Ser à
busca de ilusões, repouso ou esquecimento, por meio de todas as drogas, mais ou
menos letais, disponíveis e utilizadas em toda a história da humanidade.
O que nos sobra então? A necessidade da eterna agitação e distração. A
dilaceração causada por um profundo vazio existencial, pela ausência da
compreensão maior de nossa condição, e da realidade em que nosso ser está
inserido, nos traz uma inquietação avassaladora. O silêncio, a solidão e a
introspecção nos aterrorizam. Nesses raros momentos, sentimos a dor que nos quer
avisar e fugimos, desesperadamente, buscando alucinadamente um constante entorpecimento para as nossas sensações mais profundas. Tentamos, distraindo-nos,
esquecer dos nossos problemas, desafios, objetivos e, por fim, de nós mesmos.
(O negrito é meu).
Desviamo-nos, dessa
forma, dos valiosos propósitos que deveríamos buscar. Com a nossa sensibilidade
adormecida, vagamos sem rumo e buscamos sem foco. Deixamos de procurar por um
sentido para esta breve existência. Sem a coragem e a vontade necessárias, deixamos
de questionar, de buscar, de refletir, de decidir. Optamos então por viver os
padrões. Sem estímulo e força interior, abortamos os nobres e elevados
propósitos e contentamo-nos com o ordinário. Com isso, deixamos a essência dos
momentos vividos passarem e seguimos vivendo sempre no aspecto superficial,
ilusório e transitório das coisas.
*************
Ao falar em "desvio pelo torpor" e ao
usar a expressão "a horda chamada sociedade", Cássio Cooke me faz
lembrar algo que li no livro Um caminho
com o coração, de Jack Kornfield. Atribuída à Anne Wilson Schaef, autora de
When Society Becomes an Addict,
há no livro de Kornfield a seguinte passagem. (Os negritos são meus).
"O elemento mais bem-ajustado da nossa sociedade é a pessoa que não está morta nem viva, apenas entorpecida, enfim um morto-vivo, um zumbi. Quando morta, ela não é capaz de fazer o trabalho da sociedade. Quando plenamente viva, está sempre dizendo 'Não' a muitos dos processos da sociedade, ao racismo, à poluição ambiental, à ameaça nuclear, à corrida armamentista, recusando-se a beber água contaminada e a comer alimentos cancerígenos. Por isso, a sociedade tem o maior interesse em estimular aquelas coisas que tiram o nosso vigor, que nos mantêm ocupados com nossos dilemas e nos conservam ligeiramente entorpecidos e semelhantes a zumbis. Desse modo, nossa moderna sociedade de consumo funciona, ela própria, como um viciado."
Desvio pelo torpor! Será que o entorpecimento pode
ser visto como o desvio que nos afasta do caminho que poderia conduzir-nos a
algo que faça jus ao termo sociedade, em vez de manter-nos agrilhoados a essa "horda
chamada sociedade"? O desvio que, impedindo-nos de compreendermos quem
somos, consequentemente impede-nos de encontrar solução para os nossos conflitos? O que vocês acham?
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