"Esta postagem traz um conto apresentado no
livro O Tiro e o Alvo – Aforismos para resolução de problemas de
negócios, de Horácio Soares Neto. Explicando o
título, o tiro é o domínio da tecnologia; o alvo é o conhecimento
do problema. Conhecimento que possibilita a enunciação do problema. Enunciação
que constitui o ponto nevrálgico para a solução do problema, pois, como afirma
Horácio Soares, "O maior desafio
para se resolver um problema é desvendar seu enunciado. Enunciados pobres
jamais produzirão boas soluções, por mais competentes que sejam os
profissionais envolvidos e poderosa a tecnologia empregada. Todavia, observa-se
muito mais empenho no domínio da tecnologia do que no conhecimento profundo dos
problemas. Dá-se mais importância ao tiro que ao alvo."
Por que tal acontece? Porque, ainda usando palavras de Horácio Soares, "O que mais importa para alcançar boas
soluções é o pensar permanente, consciente, livre, coletivo, proativo e
criativo, focado no problema. Porém, o que se vê é que o homem recusa-se
a pensar, e quando pensa, prefere fazê-lo com a cabeça dos outros."
Preferência que faz com que ele, inadvertidamente, saia por aí desacompanhado
de sua própria (ou seria imprópria?) cabeça. "A título de motivação ou –
quem sabe? – provocação", o autor convida os leitores a viajarem com ele 'No
trem', o conto que precede a Parte I de seu excelente livro. Aceitem o convite
e tirem de tal viagem o melhor proveito é a sugestão que lhes dou.
No trem
Só havia um assento
vago, exatamente o que o Sr. X menos gostava, pois ficava cara a cara com outro
passageiro. No caso, um cidadão de meia-idade, elegantemente vestido, com os
olhos fechados. Não dava pra perceber se dormindo ou meditando.
Como estava cansado,
sentou-se ali mesmo. Notou que o outro abriu os olhos e observou-o com
curiosidade. Minutos depois falou:
- Senhor. Posso ter um
momento de sua atenção?
- Pois não - respondeu
educadamente o Sr. X.
- Desculpe
importuná-lo, mas o senhor está sem cabeça.
- O quê?
- Isso mesmo, sem
cabeça. Deve tê-la perdido ou esquecido em algum lugar.
Atônito, o Sr. X ficou
sem saber o que dizer. O outro continuou.
- Não gosto de me
meter na vida dos outros, mas andar sem a cabeça pode trazer graves
consequências.
- O senhor é maluco?
- Ora, claro que não.
Estou só lhe avisando. O senhor podia não ter notado.
- Diga-me uma coisa,
meu amigo. Como posso estar falando com o senhor se não tenho cabeça?
- Isso eu não sei
explicar. Só sei que hoje em dia é comum pessoas andarem por aí sem cabeça.
- O senhor é maluco
mesmo.
- Não faça julgamentos
precipitados, afinal o senhor não tem cabeça.
- Amigo, me desculpe,
mas não tenho é tempo para essa conversa fiada.
- Sua impaciência é
típica dos sem-cabeça.
- Isso é um problema
meu!
- Senhor, por que
tanta soberba? Eu posso lhe ajudar a encontrar sua cabeça. Tenho experiência
nisso. Onde o senhor esteve?
- Onde estive como?
- Onde o senhor esteve
hoje de manhã? Lembra? Pode ter deixado sua cabeça lá.
- Ai meu Deus!
Sr. X resolveu seguir
o velho conselho de não contrariar os loucos.
- Tudo bem. Vou lhe
responder. Hoje pela manhã fui à igreja e depois passei na universidade. Na
hora do almoço, encontrei minha namorada.
- Hum...
- Hum o quê?
- Três ocasiões
esplêndidas para se perder a cabeça.
- Como assim?
- A namorada nem
preciso explicar; é óbvio. A paixão é a maior causa de perda de cabeça que se
tem notícia.
- Talvez. Mas por que
a igreja?
- Porque a fé proíbe
questionamentos. É pecado duvidar dos dogmas religiosos. A fé não usa a cabeça
e ela se torna um apêndice inútil. Perde-se a cabeça por falta de uso.
- É, faz algum
sentido. Só não entendo como a universidade poderia fazer alguém perder a
cabeça.
- Realmente, essa é
difícil de entender. Afinal, na universidade prevalece a razão: é onde são
investigados os porquês das coisas. O problema é que a razão acadêmica anda sem
autocrítica. Aceita "qualquer porquê".
- "Qualquer porquê"?
- Acredite. Não há
nada mais equivocado hoje em dia do que os porquês.
- Como assim?
- Veja, por exemplo,
os porquês ideológicos. São dogmáticos, binários, inflexíveis, quase iguais aos
da fé. Não admitem dúvidas; não usam a cabeça.
- É.
- Há também os porquês
"vira-latas". Incluem os precipitados, simplistas, ingênuos, imediatistas,
apressados, preguiçosos, acomodados, parciais e preconceituosos. São resultado
do pensamento superficial, não vão à raiz dos problemas.
Sr. X começava a se
interessar pela conversa.
- Há ainda os piores,
os mal-intencionados. Os interesseiros, tendenciosos, corruptos,
propositalmente falsos, todos nocivos. O resultado está aí. É crise pra todo
lado. A humanidade está na UTI. Falência múltipla dos órgãos.
- ...
- O amigo já notou
como cabeças são preguiçosas? Com muita facilidade aceitam os porquês dos
outros. Da mídia, das autoridades, do guru de ocasião, do capeta.
Sr. X já não
interrompia seu companheiro incidental.
- Cada um desses
fornecedores de porquês tem seus próprios interesses. Mas raramente alguém
questiona o porquê dos porquês.
- Porque dos porquês?
- Infelizmente, também
na Academia vende-se pensamentos únicos, prontos e incontestáveis. Resultado,
cabeças entulhadas de porquês de segunda mão, mas vazias de ideias próprias.
Aproximava-se o
destino do Sr. X. O diálogo com o suposto louco tinha feito o tempo passar
rápido.
- Devo me despedir,
senhor. Está chegando minha estação. Foi um prazer.
- O prazer foi todo
meu, amigo. Boa sorte. Espero que encontre logo sua cabeça.
X sorriu e
levantou-se, dando lugar a outro passageiro. Antes de saltar do vagão, porém,
ouviu o seu antigo interlocutor dizer:
- Cavalheiro, o senhor
já notou que está sem a sua cabeça?
*************
Lido o conto, faço-lhes
a seguinte indagação: Vocês costumam viajar de trem?
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