domingo, 23 de outubro de 2016

A Carta de Despedida de Santos Dumont

"Não quero patentes, recompensas, nem construo meus aviões para vender. Coloco-os à disposição de todos."
(Alberto Santos Dumont)
Neste dia em que é comemorado o Dia do Aviador a postagem deste blog reverencia o aeronauta e inventor Alberto Santos Dumont. E para lhe fazer tal reverência escolhi o espalhamento de sua carta de despedida. O porquê da escolha? O fato de Santos Dumont tê-la considerado "uma mensagem que serve de ferramenta para, mesmo que minimamente, altere os nossos dia-a-dias e suprima, a partir do momento em que nos tornemos conscientizados de tais verdades, a corrupção do mundo". Onde encontrei a carta? Em um livro intitulado Os Caminhos da Ciência e os Caminhos da Educação, de autoria de Laís dos Santos Pinto Trindade e Diamantino Fernandes Trindade, no capítulo Os Caminhos da Ciência Brasileira: Santos Dumont. Além da carta, dele copiei também três parágrafos que a antecedem, por considerá-los utilíssimos para interpretá-la.
Alberto viveu aproximadamente 15 anos após o final da guerra, mas raramente teve um momento de serenidade. Viajava frequentemente da Europa para o Brasil onde construiu, em 1918, a casa denominada a Encantada, em Petrópolis. (...) Em 1927, foi morar em uma vila campestre que adquiriu em Gilon, na Suíça. Em uma de suas viagens ao Brasil, em 1928, sua saúde emocional piorou muito. As autoridades programaram uma homenagem para a sua chegada. Membros importantes da Escola Politécnica embarcaram no hidroavião Santos Dumont e voaram em direção ao navio Cap-Anaconda. A aeronave perdeu o controle e caiu na Baía de Guanabara, não havendo sobreviventes. Perturbado pela tragédia disse: Quantas vidas sacrificadas pela minha humilde pessoa!
Em 1931, retornou ao Brasil e, na Encantada, passou a dedicar-se aos projetos aeronáuticos avançados e à Astronomia. Ficou perturbado quando soube que os aviões estavam sendo utilizados para bombardear os seus conterrâneos durante a Revolução Constitucionalista. Em 1932, a família transferiu-o para um hotel no Guarujá, em função do agravamento do seu estado de saúde. Em 23 de julho de 1932, quando estava no saguão do hotel, ouviu um avião bombardeando um alvo próximo; retirou-se e entrou no elevador de volta à suíte. Olympio Peres Munhoz, o ascensorista relata as palavras angustiadas de Alberto: eu nunca pensei que minha invenção fosse causar derramamento de sangue entre irmãos.
Vestiu um terno e revirou o armário até encontrar duas gravatas vermelhas que usava na época dos seus voos épicos em Paris. Amarrou-as em torno do pescoço, pegou uma cadeira e enforcou-se, pendurado no chuveiro. São várias as hipóteses para o seu suicídio, mas as evidências recaem sobre a esclerose múltipla, a depressão, o uso do seu invento para fins militares e, provavelmente, pelos conflitos que o atormentaram durante toda a sua vida.
A Carta de Despedida
"O que adianta, senhores, viver e não interferir na vivência das pessoas? O que adianta passarmos nesta vida como uma flecha, rápida e imperceptível?"
A verdade da vida consiste em fazermos parte, de atuarmos pelo bem do homem, e não como uma triste lembrança de mau agouro, que amarga os sonhos, assim como os ditadores do passado, a fome do presente e o pessimismo do futuro.
Viver consiste no dia-a-dia, e não no amanhã. É atuar descompromissadamente a favor do próximo, pois já dizia o poeta "belo dar ao ser solicitado, porém é mais belo dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido".
Senhores, muito sofri. Fui utilizado como joguete, intensificando um panorama caótico e antropofágico.
A escravidão mental é um dos nossos males, o apego ilimitável à materialidade nos corrompe, como a relva exposta ao fogo. Perdemos a noção do que é ético, pois a ética capitalista não preserva a existência da humanidade, ela é em si e por si. É a essência daquilo que de mal temos.
Onde, digam-me, podemos encontrar um refúgio, um subterfúgio, a fim de nos mantermos invulneráveis daquilo que nos aflige? No amor.
No amor pelo próximo, no amor pela vida, no amor desapegado e sem interesse, pois daqui nada se leva, somente as boas (ou más) lembranças voluptuosas que levaremos para o Jardim do Éden, ou para algum lugar diametralmente oposto, mais profundo e odioso.
Como sabem, associam minha imagem à daquele instrumento, que, doravante, o considero um mero instrumento supérfluo e de utilização, sobretudo beligerante.
De quanto vale, pergunto-lhes, todo desenvolvimento tecnológico se o homem não é a medida e o fim dessas coisas? Que ordem é essa que obriga o homem àquilo de mais desprezível e assustador? Se essa exacerbada materialidade nos conduz a um fim nocivo, por que tudo isso tornou um vício?
Senhores, despeço-me de vossas mercês deixando uma mensagem que sirva de ferramenta para, mesmo que minimamente, altere os seus dia-a-dias e suprima, a partir do momento em que se tornem conscientizados de tais verdades, a corrupção do mundo: "O homem somente se faz homem na relação com o próximo. O alicerce nas relações é a confiança recíproca. E às vezes somos iludidos pela confiança, mas a desconfiança faz com que sejamos enganados por nós mesmos."
Alberto Santos Dumont
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Conheci a Carta de Despedida de Santos Dumont no início deste ano e, imediatamente, senti vontade de espalhá-la, pois lê-la possibilitou-me conhecer o modo fraterno como Santos Dumont enxergava a vida e, de certa forma, entender seu trágico ato.
Para alguém que crê que "A verdade da vida consiste em fazermos parte, de atuarmos pelo bem do homem", constatar que sua invenção passou a ser usada exatamente para o contrário, ou seja, para o mal é algo cuja dificuldade em lidar, eu não consigo avaliar.
Para quem "Não quer patentes, recompensas, nem constrói seus aviões para vender e os coloca à disposição de todos", perceber que "à materialidade nos corrompe e que perdemos a noção do que é ético, pois a ética capitalista não preserva a existência da humanidade, ela é em si e por si. É a essência daquilo que de mal temos" é mais uma coisa cuja dificuldade em lidar, eu não consigo avaliar.
Para quem questiona "De quanto vale todo desenvolvimento tecnológico se o homem não é a medida e o fim dessas coisas? Que ordem é essa que obriga o homem àquilo de mais desprezível e assustador? Se essa exacerbada materialidade nos conduz a um fim nocivo, por que tudo isso se tornou um vício?", ver-se como alguém que contribuiu para todo esse desenvolvimento tecnológico, é uma coisa que, para mim, é impossível avaliar.
Considerando o que é dito nos três parágrafos anteriores, vejo o trágico ato de Santos Dumont como algo que tirou desta dimensão um ser que já conseguira entender certas coisas que a imensa maioria dos que aqui estão, ainda não é capaz de entender. Coisas como:
- "A verdade da vida consiste em fazermos parte, de atuarmos pelo bem do homem. (...) Viver consiste no dia-a-dia, e não no amanhã. É atuar descompromissadamente a favor do próximo, pois já dizia o poeta "belo dar ao ser solicitado, porém é mais belo dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido".
- "É no amor pelo próximo, no amor pela vida, no amor desapegado e sem interesse, que podemos encontrar um refúgio, um subterfúgio, a fim de nos mantermos invulneráveis àquilo que nos aflige."
- "O homem somente se faz homem na relação com o próximo. O alicerce nas relações é a confiança recíproca. E às vezes somos iludidos pela confiança, mas a desconfiança faz com que sejamos enganados por nós mesmos."
Encontrar em uma desgraça algo do qual se possa tirar algum proveito, creio que pode ser visto como um lampejo de sabedoria. Sabedoria que possibilita ver a Carta de Despedida de Santos Dumont como uma oportunidade de nela aprender o modo fraterno como ele enxergava a vida. Um modo fraterno sem o qual jamais conseguiremos construir algo que possa fazer jus ao termo civilização.
"A civilização não tem como finalidade o progresso das máquinas, mas, sim o do homem.", afirma Alexis Carrel (1873 - 1944) "De quanto vale todo desenvolvimento tecnológico se o homem não é a medida e o fim dessas coisas?", questiona Alberto Santos Dumont (1873 – 1932). Nascidos no mesmo ano, e quase no mesmo mês, Carrel nasceu em 28 de junho e Santos Dumont em 20 de julho, em alguma coisa os dois concordavam. Vocês concordam com esta afirmação? Para os que responderem afirmativamente, segue outra indagação: Vocês concordam com eles?

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